quarta-feira, 2 de setembro de 2015

VILLA FARNESINA – OS TRIUNFOS DE RAFAEL

Dos mais impressionantes museus que já visitei, pela riqueza, pela delicadeza e pelo conteúdo (e pela tranquilidade!), é uma “Villa” romana, ao que eu saiba pouco conhecida, ao menos pelas pessoas com quem conversei, chamada Villa Farnesina.
            Dela tomei conhecimento a partir de um estudo que estou terminando sobre o Fausto, de Goethe. O poeta incluiu, no Fausto II, uma cena construída a partir do mito grego “Galatea e Polifemo”, ou “O Triunfo de Galatea”, no afresco de Rafael.
Segundo os estudiosos da obra goethiana, tal passagem do Fausto teria sido inspirada exatamente nesse afresco que trata da cena mitológica e que fica nessa Villa visitada pelo poeta, quando de sua longa viagem à Itália. 
Sobre a Farnesina escreveu Goethe, em “Viagem à Itália”, relatando, porém, outro mito ali pintado por Rafael, sobre o qual também nos deteremos abaixo: “Na Farnesina vi a história de Psiqué, cujas reproduções coloridas alegraram meus aposentos há tanto tempo (...). Velhas conhecidas, como amigos que fazemos por carta no exterior e, então, conhecemos pessoalmente. Mas a convivência é algo inteiramente diferente: concordâncias e discordâncias revelam-se de imediato”.
            Tinha toda razão o velho poeta, se eu também só conhecia o afresco do “Triunfo de Galatea”, por reproduções, que impacto ao vê-lo pessoalmente! E também a narrativa pictórica da história de “Eros e Psique”. E, melhor, num museu praticamente esquecido, onde, em pleno verão romano, quando a cidade enlouquece de turistas, podemos deles fruir com a merecida e necessária calma, sem que, subitamente, sejamos empurrados por hordas de orientais e seus guias.
            Falemos um pouco sobre a Villa.



            A casa, por si própria linda, às margens do Tevere (Tibre), com um jardim magnífico, foi construída em 1505, por Agostino Chigi, nascido em 1466, filho de nobre família de banqueiros e mercadores, ele próprio banqueiro, riquíssimo e patrocinador de campanhas de papas (como se percebe, nada muito diferente de nossos dias) e patrono das artes.

            Querendo decorá-la, Chigi chamou alguns artistas, dentre eles, os mais importantes foram Peruzzi, Sebastiano Del Piombo, jovem discípulo de Bellini, e Rafael, dando-lhes relativa liberdade e autonomia.
            Essa (relativa) liberdade traduziu-se, principalmente, a meu ver, na possibilidade de experimentar pictoricamente tudo, ou quase tudo, que à época se tentava, do erotismo às novas técnicas, como, por exemplo, Peruzzi e o uso da perspectiva, técnica aprofundada no Renascimento que, particularmente, me parece uma afirmação ao gosto daquele período quanto ao homem ter sido feito à imagem e semelhança do Criador, sendo capaz, portanto, de “recriar” o plano da tridimensionalidade.
Mas deixemos isso para especialistas.
A sala de Peruzzi, apropriadamente denominada “Sala da Perspectiva”, era a sala onde o patrono realizava seus jantares. Tem-se a nítida (e ilusória) impressão que o piso descortina-se numa janela, de onde se pode ver a paisagem do Tastevere, lindo bairro romano.

Dizem que ali há menções, não as vi, à espetacular fuga do Papa Nicholas V pelos subterrâneos do Vaticano até o Castelo de Sant’Angelo, durante a invasão de Charles V, da Alemanha; e também algumas alusões ao cisma protestante (1517) e outras questões político-religiosas. São curiosidades, todavia, esteticamente, a sala me incomoda um pouco, pois me soa algo de preciosismo decorativo, interessante, contudo disso não passando, salvo pelo inegável impacto que se tem quando se a descortina. 
            Porém, o impacto é muito maior logo no início da visita, com a Galatea, e talvez por isso mesmo, a “Sala da Perspectiva” perca muito em força e expressão estética, comparada ao que já visto.  

            Logo que se entra na casa, numa sala que marcava a passagem entre os aposentos privados de Agostino e as partes públicas, e que, em dia de festas e cerimônias, era usada como antecâmara para os convidados, dando-lhes boas vindas, ali está ela, como dizer de imediato ao visitante da força do que ali verá: “O Triunfo de Galatea”.


O Triunfo de Galatea


O Triunfo de Galatea

            O mito de Polifemo e Galatea, ou Galateia, relatado (e latinizado) por Ovídio, em “A Metamorfose”, e que, como todo mito, em especial os gregos, se presta a inúmeras interpretações, é belíssimo. Polifemo, o ciclope horroroso, de um só olho – o mesmo que será enganado por Ulisses, numa passagem da Odisséia - apaixona-se perdidamente pela nereida Galatea, uma das cinquenta filhas de Nereu, ninfa dos mares, cujo nome significa “moça branca como o leite”, que navega pelos mares numa “concha-carruagem”, numa clara alusão à sexualidade feminina, puxada por golfinhos.
Foi amor contrariado, pois a deusa já se enamorara do belo Ácis, filho de Pan (ou Fauno, na adaptação latina de Ovídio).
            Um dia, o casal namorava à beira-mar, quando surge o horrendo Polifemo, Ácis tenta fugir, mas é esmagado por uma gigantesca pedra lançada por aquele. Galatea transforma o amante morto no rio Ácis, de água muito pura: “Ácis era, mas assim também era, contudo, Acis, em caudal / transformado, e seu antigo nome, retiveram suas correntes” (Ovídio, Metamorfosis, v. 851/852).
            Assim, tendo eternizado seu amado, “em caudal transformado”, Galatea triunfará sobre a força de Polifemo. Há outra versão do mito em que os dois se unem, mas a acho, além de antipoética, bastante impertinente.
Goethe, muito mais tarde, com já enunciei, se aproveitará do mito - e do afresco - e o recriará, fazendo que sua enigmática personagem do Fausto II, o também monstruoso Homúnculo, ser criado em laboratório, se apaixone pela deusa, mas o encontro entre os dois será desastroso, ele consumindo-se ao contato físico com a bela, que triunfa, e que, definitivamente, não era dada a homens monstruosos. Ali escrevi: Seu orgasmo serão as chamas. Morre, não de, mas pelo amor.
Mas deixemos Goethe e este precário poeta que vos fala, e voltemos à Villa Farnesina e a Rafael.
Diz o curador do catálogo da Villa que esse afresco da Galatea alude à Margherita Gonzaga, por quem o banqueiro estava apaixonado, e recusava seus insistentes pedidos de casamento. Não, claro, que Rafael comparasse seu patrono a Polifemo, ele não seria o suficiente louco, mas certamente retrata a indecisão de Margherita na expressão de Galatea.
E aqui entra a, como disse acima, a – relativa - liberdade que o patrono dava aos artistas, pois se os deixava esteticamente livres, que, afinal, era o que lhes interessava, fazia, narcisicamente, com que toda temática a ser pintada girasse em torno dele, Chigi, como veremos também em outros afrescos.
Dentro desses propósitos, digamos, de fazer o papel de “cupido”, Rafael omite o assassinato de Ácis, tema que, convenhamos, não cairia bem às propostas do banqueiro à sua ninfa. E também, bastante inteligentemente, não retrata, ele próprio, Polifemo, deixando-o para outro pintor, Sebastiano Del Piombo.
E aqui surge uma interessante questão. Del Piombo, conforme se verá nessa sala, não era um artista medíocre, ao contrário, os mitos recriados nas lunetas superiores comprovam grande maestria, mas Polifemo já era mesmo um monstro, e o seu resulta bem grotesco.

       
Não se pode saber se proposital, ou não, mas parece que tudo foi acertado com o pintor mais jovem, que, claro, reverenciava o respeitado Rafael. O Polifemo de Piombo, apesar de “dialogar” com a linda figura de Galatea, faz, por anteposição, que a maestria de Rafael sobressaia em toda sua genialidade.


A personagem principal do afresco, Galatea, volta-se para a figura ao lado, com o monstruoso ciclope, e parece estar tentando com ele se comunicar. Além disso, o vento do lado esquerdo também sopra na direção do gigante, criando assim um interessante estado de tensão que nos atrai quase violentamente, em anteposição ao afresco vizinho. Galatea triunfa e parece crescer, e cresce, como cresce e também triunfa a maestria de Rafael, quando sua pintura é vista em conjunto com o afresco do jovem Sebastiano.

Rafael faz sobressaltar aqui toda sua genialidade. A recriação do mito, pictoricamente fascinante, e até por isso mesmo, se dá numa composição que nos hipnotiza, com uma “linha de força” subindo da esquerda para direita, com duas personagens secundárias, o estupro de uma nereida por um tritão, 
conduzindo nosso olhar, inexoravelmente, para Galatea, dando uma ligeira parada no seu rosto, para que possamos imaginar sua comunicação triunfal (não há medo em seu rosto, nem raiva pela morte do amado) com Polifemo, nos direcionando, após, para o querubim no alto da tela à direita. Ali, contudo, nosso olhar não se dilui, mas é levado, numa voluta, aos outros dois anjinhos que, circularmente, com suas flechas, apontam e nos conduzem de volta à personagem principal, nos aprisionando, fazendo com que Galatea triunfe, não só sobre Polifemo, mas sobre o espectador, a essa altura definitivamente conquistado, e sequer pela ninfa olhado... Tudo observado por outro querubim, que parece a todos observar (Rafael? Chigi?)



     Mas, como já adiantei, Sebastiano, o discípulo de Bernini terá sua oportunidade de brilhar, embora quase sempre em órbita de Rafael e da vaidade de Chigi. Em cada luneta ele representou uma divindade grega, sempre, claro, a partir da leitura latina, a maior parte, ligada à pessoa do banqueiro.
Um belo exemplo de seu talento é a representação de Dédalo e Ícaro.





Curiosamente, e não por acaso, del Piombo pinta a deusa Juno (Hera, para os gregos) deusa que, por doentiamente ciumenta, sabe-se lá porque (ou se sabe), era considerada a deusa protetora dos casamentos legítimos, bem acima da Galatea, o que reforça a idéia de que o afresco de Rafael visava ao amor de Margherita, que recusava sua mão ao rico banqueiro.


Numa outra luneta, aparece, meio deslocada, a belíssima “Cabeça de um Jovem”.

Em torno dessa cabeça há uma história muito curiosa. Na parte inferior da sala há uma série de espaços em arco que não foram pintados, talvez, como veremos em Eros e Psiqué, por Rafael não ter tido tempo útil. Infelizmente, esses “arcos” não são franqueados à visitação do público, entretanto, descobre-se, no filme que a RAI fez sobre o museu, que, sob a superfície visível, há vários esboços, feitos na própria parede, de Rafael. Num deles, bem abaixo da Galatea, o desenho de um homem, dizem, parecido com Michelangelo. Então, dada a similitude do traço da “Cabeça de um Jovem” com o do autor da Capela Sistina, que, por essa época, a realizava, dizia-se que um dia, aproveitando-se da ausência de Rafael, Michelangelo visitou os trabalhos em andamento, e, impressionado com o que viu, deixou por lá um “recado” ao colega: a linda “Cabeça” desenhada numa das lunetas.
Assim, e talvez exatamente por fugir a todo contexto da sala, foi por longo tempo atribuída a Michelangelo. Hoje, especialistas e restauradores afirmam ter a prova que o afresco era de Peruzzi. Como me fascina a ideia de um súbito impulso de Michelangelo, deixo, por isso, e por não ser um especialista, mas mero espectador e poeta, que me conduza a imaginação... Fica sendo de Michelangelo, e não se fala mais nisso.


Perseu e Medusa e Calisto





Ainda na mesma sala, o teto ficou todo a cargo de Baldassarre Peruzzi, que, com não menos genialidade, representou, ambos impressionantes, os mitos de Perseu e Medusa e de Calisto.
No primeiro chama a atenção a agressividade da figura, a seu tanto masculinizada, da górgona Medusa, além do arcanjo de asas com as cores da bandeira da Itália, significando, quem sabe, a vitória do monoteísmo romano sobre o paganismo grego
(me penitenciando pela qualidade da foto).   
Mas, para vermos como era relativa a liberdade dos artistas, e quão grande a vaidade de Gighi, vale atermo-nos ao afresco sobre Calisto.
Calisto era tão bela que chamou a atenção de Júpiter (Zeus), o que, como sempre, atiçou os doentios ciúmes de Juno (Hera) que a transformou numa ursa.
Um dia o filho, que se tornara um caçador, avistando a mãe, metamorfoseada em ursa, pensou em caçá-la, matando-a. Condoído, Júpiter, imediatamente, a transformou na constelação da Ursa Maior.


Aproveitando-se então da temática, Peruzzi, como não poderia deixar de ser, pintou, em torno dos dois mitos, inúmeros hexágonos, retratando o mapa astral do dia do nascimento de... Chigi! Vale aqui destacar as figuras de Vênus com seu filho, Cupido (Eros) e Saturno, com dois pequenos peixes abaixo, representando, exatamente, Saturno em Peixes. Também a se destacar, num hexágono, a constelação de Touro (Júpiter e Europa, que foi por ele seduzida, transformado o deus num touro),



Apolo e o Centauro, simbolizando o sol em Sagitário



e a lindíssima representação de Aquário, com o jovem troiano Ganimede (Catamitus, na forma latina), por quem Júpiter (Zeus) se apaixonou e raptou transformando-se em águia.





Eros e Psiqué


A outra sala, não menos impressionante, toda projetada e realizada por Rafael, provavelmente com o auxílio de seus alunos, Raffaellino del Colle, Giovan Francesco Penni, Giulio Romano, aos quais alguns estudiosos atribuem alguns afrescos, nos relata o mito de Eros e Psiqué. Esse mito, mais conhecido do que o primeiro, que, embora grego, chegou a nós pelo latino Lúcio Apuleio (125 – 180 DC) nos conta a história em “O Asno de Ouro” (sabe-se inúmeras são as afrodites, como a da Odisseia, de Homero, e a de Platão, quase irmã de Eros, em O Banquete, aqui, nos interessa a de Apuleio).
Rafael, como Apuleio, atém-se, claro, à versão latina do mito, trocando Zeus por Júpiter.
A sala representa outro triunfo, ou melhor, dois: o triunfo estético de Rafael e o triunfo de Cupido (Eros) sobre sua ciumenta mãe, Vênus (Afrodite), pois os afrescos são um triunfal transbordar do erótico.







Mais uma vez, atribui-se a escolha do tema à vida amorosa de Chigi, agora, os preparativos de seu casamento com Francesca Ordeaschi, filha de um pequeno comerciante veneziano. O tema, pois, é apropriado, retratando a elevação da mortal Psiqué à condição de imortal, Rafael retratava a ascensão social da pobre Francesca, que talvez disso sequer tivesse consciência.   
O teto é todo esplendoroso, penitenciando-me pelo inevitável adjetivo.
Psiqué, filha de reis, era inacreditavelmente bela, linda a ponto de, quando os mortais por ela se apaixonavam, ao invés de pedi-la em casamento, a adoravam, como uma deusa, abandonando e esquecendo o culto à Afrodite, chegando a colocá-la, em adoração, no lugar da deusa da beleza.
Enciumada e irritada, a deusa chamou Cupido (Eros), seu filho, conhecido por ser “temerário e ousado; o qual, com seus maus costumes, (...) armado com setas e chamas de amor; discorrendo de noite pelas casas alheias, corrompe os casamentos todos” (Apuleio), e lhe deu a incumbência de, vingando a sua mãe, fazer com que Psiqué se apaixonasse pelo mais abjeto e baixo homens, apontando ao filho quem era a ousada mortal.
Aqui, Rafael adianta a trama, criando um interessante anticlímax: note que o deus do amor, ao receber as ordens de sua mãe, parece já enternecer-se com a beleza daquela que deveria ser sua vítima.



O pai da bela mortal, assustado com a ira da deusa, consultou o Oráculo de Apolo que, embora grego, “respondeu em latim” que ele devia transportar sua filha, “adornada de toda vestimenta de pranto e luto”, e, no alto de uma montanha, e não que esperasse “genro que seja nascido de linhagem mortal”, enfim, o mais terrível monstro.
A moça desesperara-se de sua beleza, que ousara superar a de Vênus, conformara-se em ser entregue ao seu marido e repousou no alto de uma pedra. Entretanto, Eros, ao invés de ferir com suas flechas de amor a moça, ferira-se, ele próprio, por ela apaixonando-se. Assim, cuidadoso, ordenou que “um manso vento boreal” (Zéfiro), a transportasse para um prado florido, e não para a caverna do mostro.
Ao despertar do sono em que caíra, deparou-se com “uma casa real, a qual na parecia ser edificada por mãos de homens, mas por mãos divinas”, com colunas de ouro e paredes de prata. Com criadas que realizavam todos os seus desejos, mesmos os jamais sonhados (impressiona como a narrativa, aqui, aproxima-se das “Mil e uma Noites”). Naquela mesma madrugada, Eros, “uma voz sem corpo”, furtivamente, consumou seu amor com Psiqué, mas, logo ao amanhecer, sem se deixar ver, desapareceu, voltando, a partir de então, todas as noites.
As irmãs de Psiqué, preocupadas com a sua “desdita”, de casar-se com um monstro, quiseram visitá-la para a consolarem. Eros alertou à mulher que não o consentisse, mas ela, entre carinhos, tanto insistiu, que ele permitiu que elas viessem, mas com a única e inarredável condição: que jamais tentaria ver-lhe o rosto, como até então vinha acontecendo, noite após noite.
  Mas as irmãs, ao invés de uma caverna e um monstro, encontraram uma casa real, desejos realizados, e um amante de sonho. Enciumadas e transtornadas pela felicidade de Psiqué, retornaram ao mundo dos mortais com o único propósito de assassinar a irmã.
A trama foi cruel. Psiqué estaria grávida de um deus? Mas o oráculo dissera que ela se uniria a um monstro, a um dragão! Então, só podia ser ele, o monstruoso dragão, que, furtivamente, vinha visitá-la! Pouco a pouco, elas destilavam em Psiqué o veneno do medo aliado ao da curiosidade. Perigosa mistura. As irmãs insistiam que ela tentasse ver o rosto do misterioso amante, na verdade, um monstro, que, afinal, quando nascesse seu filho, o devoraria. Psiqué tinha que descortinar-lhe o rosto!
Resumindo um pouco o mito, a moça, tomada de pânico, temia que o monstro devorasse seu filho. Assim, Psiqué, numa imagem cheia de simbolismo, “em um mesmo corpo odiava à serpente e amava seu marido”.
Uma noite, aproveitando-se do sono do amante, Psiqué, munida de um candelabro e uma navalha, para matar o monstro, não resiste e lhe descortina o rosto. Todavia, ao invés de um monstro, o que surgiu diante dela foi a mais bela das criaturas, o deus do amor, “os cabelos como fios de ouro, cheios de aroma divino (...) o rosto branco e vermelho como rosas tintas (...) os cabelos resplandeciam como o Sol e venciam a luz do candelabro”. Vendo as armas de Cupido, tentou sentir-lhe as setas, e cortou-se. Enlouquecida de amor o beija seguidamente e esbarra no candelabro, de onde cai uma gota de óleo fervente sobre o ombro do deus, que acorda e alça voo, desaparecendo entre as nuvens, irritado com o descumprimento da promessa, enquanto, desesperada, Psiqué tenta agarrar-se às suas pernas.
Depois de, mais uma vez, Psiqué tentar se matar, Pã (lembram-se, pai de Áscis, do mito de Galatea?), que a aconselhou a não pensar na morte, mas reconquistar o amor de Eros.
Psiqué ia de cidade em cidade, à procura de Cupido, que, ferido de amor e óleo fervente (ou o mesmo), sofria.
Um dia Afrodite soube das feridas do filho e de seu desesperado amor por Psiqué. A deusa, mãe possessiva, ao invés de ajudar seu filho, vociferou: “Pensa você que tenho que sofrer por amor à nora que seja minha inimiga? Pensa que “por eu ser mulher de idade não poderei parir outro cupido?” rogando à Temperança que lhe tirasse a seta e o arco e “lhe raspar a cabeça daqueles cabelos cor de outro”.
A deusa procura por Juno (Hera), protetora dos casamentos legítimos e por Ceres (Deméter), deusa da fertilidade. Elas também mães, Afrodite lhes pede que a ajudem a encontrar Psiqué, mas essas tinham medo ou simpatia pelo deus do amor, e tentam acalmar a irada e ciumenta mãe, perguntando-lhe se ela “quer encerrar a tenda pública dos prazeres da mulheres”.



Afrodite as deixa, mas não desiste de sua vendeta. Em sua carruagem puxada por pombos dirige-se ao pai,

Júpiter (Zeus). Aqui, bastante curiosa é a expressão que a deusa assume ante o pai, lindamente humilde e singela, diria quase cínica. 

Vênus o convence a enviar Mercúrio (Hermes), seu mensageiro, para que anunciasse a todos que uma de suas escravas havia fugido, e era preciso encontrá-la. Quem soubesse onde se escondera Psiqué receberia “por galardão de seu indício, da mesma deusa Vênus, sete beijos muito suaves e outro muito mais doce”. Não por acaso a Mercúrio é dado um grande destaque na sala de Ghigi, afinal, era ele o deus do comércio.



Psiqué, já sem qualquer alternativa, resolve “enfrentar” a terrível sogra, indo ao seu palácio, esta, quando a viu, sorriu com ódio, e a entregou para que outras duas escravas, “Costume” (algumas versões a chama de “Inquietação”) e “Tristeza”, para que a açoitassem.  Depois, vendo-lhe o ventre, disse que as bodas que o geraram “não são entre pessoas iguais” e, se deixasse nascer o fruto daquele amor impuro, seria ele bastardo. Ela própria rasgou-lhe as vestes, arrancou-lhe os cabelos e a espancou e foi-lhe dando, uma a uma, as tarefas mais impossíveis.  
Com a ajuda de animais e outros deuses ela as realizou todas, todavia, a última e pior tarefa ainda estava por vir: trazer do inferno para ela o elixir da beleza de Proserpina, que havia sido raptada por Plutão (Hades), para lavar o rosto para “entrar no teatro e na festa dos deuses”.
Embora fosse tema interessante, Rafael não pinta as tarefas, e todo esse “intermezzo”, muito provavelmente porque morreu em 1520, interrompendo o trabalho, imagino que ficariam nas paredes. Pena.
 A pobre Psiqué. Mais uma vez, está a ponto de desistir, mas Cupido, recuperado do ferimento, a socorre e a convence a cumprir a derradeira e mais difícil tarefa.
Finalmente, após descer ao inferno, Psiqué retorna e traz para a sogra o elixir da beleza, o entregando à terrível sogra, que, enfim, não tendo mais alternativa, parece conformar-se, espantada embora, com mais essa impossível tarefa cumprida. 





Cupido, então, resolve buscar a proteção do próprio Júpiter (Zeus), que lhe ajudasse e advogasse em sua causa. Este, condoído, ordenou a Mercúrio (Hermes) que convocasse uma assembléia de divindades, não sem antes, pai severo, firmemente admoestar Eros de sua imprudência de enamorar-se de uma mortal, possuí-la, e com ela não se casar.





Também se encarregou de acalmar Vênus, pois esse casamento “morganático” (entre um deus e uma mortal), alem de em nada afetar sua beleza e divindade, só se realizaria se o fosse pelas regras do Olimpo.
Reúne-se um concílio dos deuses e todos os imortais aprovaram a união de Eros e Psiqué.




Júpiter determina a Mercúrio que traga Psiqué à sua presença e das demais divindades. Logo que chega, Júpiter (no entanto, no afresco é Mercúrio quem o faz) dá à bela imortal um cálice de ambrosia, a bebida da imortalidade, tornando-a, assim como seu casamento, imortal.
Toda a cena deve ser lida da direita para a esquerda, iniciando-se com Cupido pedindo a Júpiter sua interseção e terminando no extremo oposto, com Mercúrio oferecendo o néctar dos deuses à visivelmente feliz Psiqué.
Seguiram-se, então, as mais belas bodas, com uma imensa festa no Olimpo. Destaque-se, aqui, à esquerda o olhar furioso de Vulcano à sua esposa, Vênus, alegremente dançando com Pã, enquanto esse toca sua flauta, deixando, em outro golpe de maestria, que a história dos mitos prossiga para além do afresco e do tempo.





É o triunfo do amor. Estou certo que esse triunfo é conscientemente representado em algumas lunetas nas figuras de pequenos “amorinos”, que exibem com eles a iconografia de alguns deuses, representando, talvez, que o amor sobre tudo e todos os deuses triunfará.
Veja-se o “amorino” com as insígnias de Mercúrio:





















           Fazendo as vezes de Apolo:
















           


E como Plutão: 






Além de outros deuses, cada qual mais gracioso, todos submetidos à delicadeza do amor.
Após esse casamento, finalmente, nasce o esperado filho dos, agora, dois imortais: uma menina chamada “Prazer” (ou “Volúpia”, segundo algumas versões).


                                                                   xxx

O leitor já se pergunta, “O Triunfo de Galatea e Eros e Psiqué”, duas leituras, por que “duas leituras”?
Ora, a de Rafael Sanzio, e, modestamente, a minha. A última, de certa forma, já a apresentei, mas algo ficou por dizer.
Quem vem acompanhando este “blogue” deve se recordar do pequeno artigo que escrevi sobre “As Meninas”, de Velásquez, se não o leu, caso se interesse, ainda está aí por baixo. Lá, disse que “poucas vezes a técnica e a razão estiveram a serviço de um artista” quanto naquela tela, mas, ali, sublinhei a genialidade do espanhol em ironizar seus patronos – tão feios! – possibilitando, além da fruição estética que é penetrar naquela tela, uma deliciosa leitura crítica e uma bela manifestação de saúde mental, não sucumbindo, como outro espanhol, de Goya falo, às naturais contradições do mecenato. 

Rafael toma outra postura. Não expõe ao ridículo seu patrono Chigi, ao menos não com tanta clareza quanto Velásquez o fez, ao contrário, todavia, embora se atendo aos temas propostos, deles faz suporte para exercer seu gênio e sua criação. Não ironiza, como o espanhol, a vaidade, a seu tanto bem cretina, do milionário cabotino, mas, ignorando-a, faz dela – e de seu dinheiro – esteio para sua explosão estética.

Assim, enquanto o primeiro, Velásquez, embora sem que seu patrono perceba, francamente mostra a espectador quão feia (e patética) era a família real espanhola, o segundo, Rafael, prefere, solenemente, ignorar as idiossincrasias de seu contratante.
E isso os diferencia, além, óbvio, de outras diferenças de personalidade e decorrentes dos distintos períodos da História da Arte em que viveram.
E o que os aproxima? O fato de que ambos aproveitaram-se dos suportes limitadores que lhes deram, superando-os, para - e essa a genialidade - a partir dessas limitações, deixar fruir, de forma subjacente, uma estética, que, afinal, era o que lhes importava.    
Ficam, então, dois exemplos dessa tensão (e contenção) de dois gênios, Rafael e Velásquez, que souberam, e bem, cada um a seu modo, sobreviver às imposições de seu tempo.
Eles e a sua arte. 

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