segunda-feira, 28 de outubro de 2019

RECOMPONDO A MANHÃ - As redes sociais e uma nova poesia e editorial brasileiros em formação. Realidade ou utopia? Uma pergunta e uma hipótese.




                                     "Um galo sozinho não tece uma manhã:
                                       ele precisará sempre de outros galos"

                               “Tecendo a Manhã” - J. Cabral de Melo Neto

  Questão ainda solta no caos, em busca de alguma resposta: os novos meios, as redes sociais incluídas, teriam consistência suficiente para, de alguma maneira mais palpável, influenciar a literatura de um país, mais especificamente, a poesia contemporânea brasileira, esta que nestes tristes trópicos tornou-se uma quase leprosa? Não sei se deliro, mas às vezes chego a ouvir uns sininhos no meu pescoço. Além disso, questão umbilicalmente ligada à outra, teria também capacidade de influenciar a renovação do editorial brasileiro?

  Do ponto de vista dos meus processos criativos, a rigor, não consigo identificar qualquer influência de plano identificável, entretanto, nunca me pareceu razoável que, pela troca que proporciona e pelo inédito número de pessoas alcançadas, e, principalmente, alcançáveis, eles não tivessem o poder de, senão influenciar, ao menos enunciar alguma identidade na literatura de uma ou mais gerações.

  É muito difícil falar da perspectiva do presente, melhor diria, da falta de perspectiva do presente, que nos leva à distorção, já que não temos o necessário distanciamento, especialmente quando somos levados pelo impulso entusiasmado, por definição míope.

  Desde a primeira vez que tomei contato com a Internet, e envergonhadamente digo que nisso já se foram mais de trinta e cinco anos, vi ali uma forma de democratização do conhecimento que me fascinou, mais precisamente no que aqui nos interessa, uma forma de democratização dos meios de divulgação da arte, especialmente da poesia, pária apedrejada por um editorial obcecado apenas pelo “mercado”. E se disse “apenas”, disse-o bem, pois ele, mercado, apresso-me em dizer, é legítimo. Óbvio que a atividade editorial é uma indústria, onde o lucro, não só é legítimo como muito bem vindo, entretanto, se falamos em literatura e em poesia, é preciso somar a isso o amor por elas, pela difusão da cultura de qualidade e pelo investimento numa necessária renovação de seus autores, em especial numa atividade que envolve, além dos riscos financeiros, os riscos da criação, no sentido de inovação, riscos esses que só podem ser enfrentados se houver respaldo financeiro. E foi exatamente para legitimar esse ganho financeiro que o Constituinte previu a imunidade tributária, compartilhando-o entre todos. Nenhuma imoralidade ibérico-cristã, portanto, no lucro com a produção e com a venda de livros.

  Porém, não existe arte sem liberdade, e, me constranjo em dizer o óbvio, não existe liberdade sem riscos potencializados, e riscos a todos os envolvidos, sendo assim, sem boa dose de paixão, coragem, loucura e, principalmente, o profissionalismo voltado para a função social da atividade, melhor mudar de ramo.

  Quanto ao autor, cresci ouvindo o discurso da “profissionalização” do escritor, que, sim, é necessária, para que ele deixe de ser visto sob uma aura meio “folclórica”, entretanto, o artista jamais deve perder o sentido “amador” da coisa. O autor, qualquer autor, quando escreve, não que deva desprezar o leitor, contudo, só deve nele pensar livro findo, quando pode e deve mergulhar na resposta do público, sendo um parceiro do editor, como se supõe que este o foi daquele. A perspectiva do leitor, da venda, durante o processo de criação, torna o autor temeroso do risco, o que é incompatível com a liberdade de experimentar, sem o que não há (boa) arte possível. É preciso, também, que tenha em vista que o poema, o romance, livro pronto, se não foi, esteticamente falando, aquilo que imaginou (no sentido mais amplo de imaginar), ou, o que é mais provável, ao menos algo próximo, o destino, por mais doloroso que seja, deve ser a lata do lixo. Ou a fogueira. Entretanto, uma vez o livro pronto, abandoná-lo à própria sorte é conduta que pode e deve ser evitada.

  E aqui me permito uma pequena digressão.


          A PERSPECTIVA AUTORAL – UMA HIPÓTESE:

  Foi a partir do final da Idade Média e no Renascimento, por motivos que aqui não cabem mencionar, que a identificação do artista começou a tornar-se regra.
Adicionar legenda
Dante e Guido Cavalcanti, na poesia; Giotto e Fra Angelico, nas artes plásticas, são apenas exemplos disso. Na Grécia antiga, em outro contexto, talvez graças aos concursos, no teatro e na poesia isso era uma realidade, pois alguns autores, como Sófocles e Eurípedes, e, mesmo com a ociosa discussão de ele ter ou não existido, Homero, se destacavam. De todo modo, isso, mais tarde, se perderia, e a individualização do artista, ou melhor, a perspectiva autoral, só se deu efetivamente do Gótico tardio em diante.

Isso deu mais liberdade ao artista, pois pôde deslocar sua criação dos cânones sociais para seu próprio universo, com maior liberdade de movimentos. A ideia do artista/poeta considerado como persona de si mesmo se firmou a partir de então, e ele passou a ser visto como um indivíduo a serviço de sua arte, como aliás, a meu ver, sempre foi, desde as pinturas rupestres, no entanto, culturalmente o sentido coletivo e anônimo imperava.

  Essa afirmação do autor foi um passo do qual não haveria retorno, o artista passou a ser considerado, ao longo dos séculos, definitivamente como um indivíduo dotado de gênio, no sentido kantiano, e não mais anônimo artesão, mesmo que a sua dependência do mecenato e da Igreja, e, mais tarde, do mercado, permanecesse, por uma questão de necessidade material, todavia, a separação entre persona e pessoa foi mantida.

  Mas não é da questão da dependência material que pretendo tratar aqui, mas formular uma hipótese: cerca de seis séculos depois, adviria uma crise que, de certa maneira, tem ligação com essa perspectiva autoral, causada pela hipertrofia da afirmação da individualidade, pessoa e persona confundindo-se, passando a afirmação personalíssima do autor a ser vista como sinônimo de sua arte, o que nunca será integralmente verdade, ou seria a negação da representação.

  Pois se essa “individualização”, chamemos assim, como vimos, trouxe algumas vantagens, como a liberdade criadora, como complicador, essa mesma liberdade, em meados do século passado, terminou por sobrepor o autor à obra, o que conduziria a arte a uma perigosa diluição, quase chegando ao ponto de desfazer-se na incomunicabilidade, pois, aos poucos, perdia o contato com qualquer sentido de estética, comunicação por excelência com o perceptor (aisthésis: percepção).

  A liberdade sempre tem um preço alto, e, a partir e por causa do distanciamento do artista de um lugar dentro da sociedade, e, em alguns casos, da “recusa” ao princípio estético, o artista passou a produzir sua arte, ou coisa semelhante, apenas para si mesmo e alguns iniciados, ou, mais comum, para os iludidos e satisfeitos com a própria ignorância, travestida embora de poses, bicos e posturas “intelectualizadas” e “bem pensantes”.

  Nesse lugar deixado vazio, tristemente foi tomando vulto, ocupando espaços, dada a sua fácil identificação e consumo imediato, aquela que já vinha há tempos corroendo os pilares da arte, a chamada “cultura de massas”, na verdade, uma contrafação e uma contradição em termos, já que de cultura não se trata - e muito menos forma de arte - e nem mesmo de massas é, pois, além de não se confundir com cultura popular, é elaborada a partir de núcleos econômicos e sociais dominantes, impõe um gosto ao público, para depois, gostosamente (o pleonasmo é proposital) ir buscá-lo, para novamente ser reproduzido, num processo cíclico, autofágico e destruidor, se esvaziando e se realimentando incessantemente, restando desse movimento apenas uma estrada estéril, embrutecida e tristemente emburrecedora, pois quanto mais mediocrizado, mais fácil a manipulação, maiores os lucros e, consequentemente, maior a imbecilização e a mediocridade, o império do médio, como sua consequencia última... e logo, facilmente, todo processo se reiniciando, a estupidez se retroalimentando incessantemente. Chamar isso de “cultura” é tangenciar a demagogia, quando não se esborrachar nela./O resultado infelizmente é palpável.

  Essa indústria dá ao consumidor aquilo que ele suposta e ilusoriamente quer ouvir, ver e ler, para, posteriormente, devolver a ele o já havia sido por ela determinado, cabendo-lhe, mais do que “de massas” o epíteto de “massificadora”, que continuará a colher o mesmo (mau) gosto que antes plantara.

  Adorno - ele mesmo, que esse estelionatário da cultura, que é o guru dessa amálgama de loucos e boçais que elegemos, Olavo de Aglomerado, disse que compôs para os Beatles - já em 1968, antes, portanto de a contracultura ser deglutida pela indústria de entretenimento, destrói qualquer possibilidade de condescendência com essa indústria desde os seus primórdios, recusando-se a chamá-la "cultura de massas", mas de indústria cultural. De trinta anos para cá, eu iria mais longe, retiraria o “cultural” e o substituiria por “entretenimento”, pois restou-nos apenas uma “indústria do entretenimento”, nada tendo com a cultura.

  No Brasil, nestes tristes trópicos de endemias físicas e intelectuais, não foi diferente, e o resultado de todo esse processo ainda foi agravado pelo abismo econômico, e, por conseguinte, educacional, existente entre as classes sociais, pelo analfabetismo grassante.

  Após esta digressão, chegamos ao ponto onde queria chegar:

  Esse processo de desagregação, causado não só pelos motivos enunciados, mas por vários outros que um dia merecerão algum aprofundamento, de prevalência ou, melhor, de substituição da arte pelo entretenimento, terminou por causar o isolamento do artista no seu processo criativo, isolamento este para o qual, vimos, ele mesmo contribuíra. A indústria do entretenimento era opção muito mais rápida e fácil, leia-se, lucrativa, e o mercado virou-lhe as costas, taxando-o “invendável”, “hermético”, fechando as portas a tudo que não fosse imediata e facilmente deglutível, e a poesia, coitada, que durante séculos fora considerada uma arma política nas mãos dos poderosos, dada a popularidade do canto, viu-se reduzida à condição de pestilenta, e os poetas confinados num isolamento profilático. Decuplique isso e verá um espelho do Brasil, covil de gananciosos.

  Porém, a Internet, os novos meios e as chamadas “redes sociais” - interessante nome, pois podem nos enredar numa baita confusão e ilusão, dada à ainda ausente e necessária perspectiva histórica - criaram um fenômeno novo, embora hoje eu tenha refreado meu antigo e quase ingênuo entusiasmo, lembrando-me que o homem faz, e ele mesmo se encarrega de destruir, e que não existe invenção humana que seja inteiramente boa, nem integralmente ruim.

  O espaço de liberdade que vislumbrei na rede mundial de computadores, fugindo ao controle das grandes corporações da comunicação mundial, não se concretizaria, ou se concretizaria com bem menos estrondo do que inicialmente supus, até pelos monopólios que se formaram pelos controladores dessas redes, além disso, ingênuo e cego pela euforia dos ritos órficos, não percebi, por outro lado, a voz dos medíocres, a proteção de uma tela dada ao agressor, a difusão de mentiras que elegem presidentes, enfim, um terreno fértil para o populismo que avança sobre o mundo, sem distinção de cores ideológicas.

  E não atentei para as armadilhas que se armavam à frente, que a todos nos aprisionariam, distraídos e ingênuos, dentre elas a que poderíamos apelidar de “falsa congregação”: tem-se a impressão de uma multidão, mas não passa de um somatório de rancorosas solidões com falsas sensações de comunicação, na verdade um diálogo de surdos, uma ilusão.

  Arte é solidão, urgente para quase toda criação, disso não há dúvidas, entretanto, é também comunicação, não só com o leitor, mas também com a contemporaneidade do artista. Se o isolamento se faz necessário ao criador, a troca de experiências o põe em contato com o mundo, o enriquece, ao menos para o que aqui nos interessa; um artista pode e deve criar solitariamente, livre, sem amarras de qualquer espécie, contudo, para que sua arte se integre e faça parte de uma cultura, deve ter seu canto ecoado por “outros galos”. Só se constrói a cultura numa contemporaneidade e territorialidade se houver conhecimento e integração com seus companheiros de ofício, fora isso haverá arte? Claro que sim! Pode ser genial? Evidente! Mas dificilmente se constrói uma cultura.

  É hora de fazer uma autocrítica: sou, por natureza e gosto, solitário, e acabei por desconhecer o que andavam fazendo meus contemporâneos, pois deles só tomava conhecimento pelos cada dia mais pobres e depauperados “cadernos de cultura”, se assim podemos chamá-los, da grande imprensa, ou seja, não tomava conhecimento.

  Todavia, insistindo talvez em alguma impossível e anacrônica utopia, notei que, com as redes sociais, pouco a pouco, esses autores puseram-se em contato uns com os outros, enriquecendo-se, criticando-se, fazendo resenhas daqueles que, embora nunca tenham se visto pessoalmente, se encontram para mostrar e debater os seus trabalhos. Uma sinergia silenciosa se iniciara entre poetas na mesma situação, trincando o isolamento, e foi me sendo dado a conhecer poetas de qualidade, e esses escritores estavam sendo criticados por pessoas que também habitavam o mesmo espaço, fomentando a troca. Li e me aprofundei em uma ou outra leitura que me interessou de modo especial, recebendo livros e fazendo resenhas, o que chamo de devaneios, meus modestos ensaios, minha atividade para além da poesia.

  Claro que há muita mediocridade espalhada pela rede, e é compreensível que haja, até pelo número de pessoas envolvidas, mas comecei a perceber que, com alguma necessária prospecção, encontraria textos de qualidade.

  Contudo, mesmo com essa sinergia, apesar das trocas, faltava um elemento catalizador: a figura do editor, para além daqueles que acham os poetas doentes (e talvez o sejam mesmo).

  Faltava.

  Um pequeno parêntese.

  A figura do editor é vital para que se construa a literatura de um país, não um mero comerciante de secos e molhados, cujas carnes salgadas são os livros, mero acaso, mas um editor que goste de literatura, de poesia, que as entenda, que compreenda e ame o que lê, que respeite o autor, sendo muita vez um deles, e perceba que o escritor é vital para seu negócio não se torne, passe o truísmo, apenas um... negócio, para que o “mercado” não se sobreponha à literatura.

  É desalentador abrir o “site” de uma das maiores editoras brasileiras, cujo nome prefiro omitir, e lá - “nel commune dolor s’incominciaro”, a dor universal petrarquiana - encontrar a fatídica mensagem: “não aceitamos originais de poesia”. Mas... como?! Estupefato (desculpem a palavra, mas outra melhor não me ocorre) fiquei, como não? Reli: “não aceitamos originais de poesia”, a frase ecoava na minha cabeça, doloroso martelo. Então Vossa Senhoria assumiu seu horror por estes párias, ou melhor, por estes pestilentos que carregamos conosco a perigosa bactéria yersinia pestis poeticum, esses poetas e seus versos infectos. Tilintilintilim... o sininho no meu pescoço ecoava, prevenindo a presença da minha poesia.

  Mas esse editor existiu? Ou é fantasia, passado construído?

  Existiu, amigos, e a literatura brasileira deve muito a ele, nossa literatura teve, no início e meados do século passado, alguns editores como Ênio da Silveira, que assumiu a editora Civilização Brasileira, homem de coragem, pois cobriu a Grande Guerra e desafiou a ditadura, que depois, mais tarde, terminaria por sufocar a editora, forçando sua venda, criador da Revista Civilização Brasileira, marco do pensamento político e cultural e de resistência à ditadura militar, fechada após o Ato Institucional nº 5 - AI-5, no fim de 1968, responsável pela publicação de inúmeros então jovens escritores brasileiros, além de autores estrangeiros como Lolita, de Nabokov, a tradução de Ulisses, de Joyce, incumbida por ele a Antônio Houaiss; José Olympio, responsável pelos livros de José Lins do Rego, Manuel Bandeira, Érico Veríssimo e tantos outros. Francisco Alves, que adquiriu, em 1909, a Livraria Laemmert, e, com, ela, os direitos de “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, além de editar Raul Pompéia. Augusto Frederico Schmitd, ele próprio um poeta, talvez melhor editor do que poeta, mas responsável pelo nascimento ao mundo de João Cabral; Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre e Caetés, de Graciliano Ramos e outros escritores.

  Faltava mesmo, fecho os parênteses, creio que não falta mais.

  Esses autores meus contemporâneos começaram a movimentar-se em busca de criar, eles próprios, um mercado paralelo, independente das grandes editoras e livrarias, que não por acaso estão quebrando, entre outros inúmeros motivos que aqui não cabem, como o modelo inadequado adotado, por terem investido no leitor errado, e não naquele que gosta de ser atendido por livreiros de verdade, cultos, que tenham pelos livros os mesmos vício e paixão do que ele.

  Mas, claro, argumentam, há a concorrência com a Internet... o que não deixa de ser fato, porém, se as livrarias viraram um deserto de ideias que merda acham que leitores de verdade iriam fazer por lá? São lugares apenas para o leitor extemporâneo, que passa pelas suas vitrines olhando de lado os livros de ocasião, não aquele de economiza em tudo para comprar livros.

  E foi a partir desses poetas que tateavam no escuro, que alguns mais empreendedores, talvez mais corajosos, ou apenas pouca coisa mais doidinhos, vestiram-se de editores/poetas e reeditam a função do editor brasileiro, entendem de poesia pelo só e vital fato de que são também poetas, e poetas de qualidade. São eles os responsáveis pela esperança de um renascimento da literatura brasileira.

  E esses editores, até por mais profissionais, diferentemente da essencial, mas ingênua, atividade da década de setenta do século passado, também fizeram da Internet sua aliada, não a vendo como inimiga dos livros, mas aventurando-se no contato direto com o leitor e o autor, barateando custos e tornando a edição, a seu modo, mais intimista. E constato, leio nas páginas da imprensa, não sem um leve sorriso de ironia, que eles estão sendo apontados como os responsáveis pela revitalização do... mercado editorial, esse mesmo mercado que ignorou toda uma geração, esquecendo-se talvez, que, ponto fundamental, grande parte desses escritores são, eles próprio, leitores, e que as gerações, como tudo, morrem. Também as notícias de novos formatos de livrarias, voltadas para o leitor adicto, me fazem ter outra vez esperanças.

  Enfim, a figura do editor que lê e entende o que lê é vital para a formação de uma literatura, especialmente para a poesia de um país, e dos escritores que emergem de uma geração, talvez duas, pois uma geração de poetas não se faz pela cronologia dos poetas, mas pelo tempo de sua poesia, e é esse tempo que, acredito firmemente, se anuncia.

  Não sei se novamente me iludo e me traio pelo entusiasmo, mas já consigo vislumbrar nos poetas que tenho lido, inclusive, algum traço de homogeneidade, uma, porque não? “tendência”, cujo traço mais marcante talvez seja a preocupação com a retomada de algumas questões formais, pois sem isso não há poesia possível.

  Óbvio que ainda é cedo para falar numa nova literatura brasileira, e bons poetas não florescem em arbustos, até porque pesam, não sei se deliro, pois, como disse acima, o presente traz necessariamente uma perspectiva míope, mas já percebo alguma silenciosa universalidade. Só o tempo responderá com a visão mais clara do distanciamento histórico.

  Entretanto, podemos fazer por onde, não resgatando utopias, pois no ponto da vida onde me encontro já tive tempo de aprender que utopias não existem, ou não seriam utopias, mas projetos, mas é preciso, é urgente mesmo que o poeta contemporâneo, eu incluído, saiamos de nosso isolamento e vejamos que, claro, nossa poesia precisa ser construída no mais absoluto silêncio, todavia, uma vez preparado o canto, que este seja anunciado como quem traz a manhã, pois estou convencido que os galos não cantam as manhãs, mas as trazem, cuidadosamente as constroem, tomando cuidado para que não se rompa o fio do tempo.

  Cabe a nós, poetas/editores/leitores, para a (re)construção de uma nova poesia brasileira, sim, a nós mesmos, fomentá-la, não só escrevendo, mas lendo essa mesma poesia, comentando e divulgando aqueles que caminham conosco, e que, por acaso, tenham caído no nosso agrado, não só para que ela se viabilize financeiramente, tornando-se, como vem se tornando, porque não? um “mercado”, o que é vital, mas para que, a partir desse movimento, os traços comuns que aqui tentei identificar se solidifiquem.

  Salvo se acharem que estou no mais absoluto e delirante equívoco, num otimismo doente e febril, é urgente que abandonemos, ao menos por enquanto - não, não vire o rosto num mal disfarçado sorriso, sem falsos disfarces, por favor, que isso é fato, e é com você mesmo que estou falando – além do pessimismo, os ressentimentos mútuos, interesses e dissentimentos excludentes, as cegueiras e amarras ideológicas, as vaidades inúteis, tanta vez disputando por um palco numa plateia vazia, pois é tão triste quanto patético brigar por um prato vazio... mas, unidos pelo canto, tentemos construir alguma manhã possível.

  E isso se torna ainda mais urgente neste tempo estranho, perigoso mesmo no qual estamos vivendo, de ódio à cultura e à arte, essa noite sem estrelas que vem se formando sobre nós, munidos que estamos somente de bússolas sem ponteiros, é preciso que cada uma de nós seja aquele galo que um dia cantou Cabral, e que me serviu de epígrafe e a quem dediquei este poema:


    A RESISTÊNCIA DO GALO

                                     A João Cabral de Mello Neto

Ante eles, o sol em pânico estanca
de pavor e se recusa a trazer o dia,
mas um galo agônico insiste, canta
na paralisia da manhã nossa agonia

Um canto entre desespero e espanto:
“Sempre foram tantos, porém levavam
em silêncio o peso da canga da estupidez,
cupidez contida pelos bridões da timidez,

Agora, eles esbravejam, decretam éditos
e celebram inéditos contratos: compram,
para o cultivo do breu, tropas de muares.
Temo que a noite teime em perpetuar-se.

Eles gritam abafam meu canto de galo,
ocultam os cantos e os cânticos solares.
Que é em silêncio que o burro se ceva
orgulho estúpido de permanecer treva.

Mas prometo, dou minha palavra de galo,
mesmo sendo pouco mais do que alguns
nós trazemos no sangue o que não calo,
essa ancestral herança de sermos galos:

o dia. Somos nós os galos que insistem
trazer, entre os miasmas da ignorância,
a manhã, ou algum resto de esperança
de nascer, talvez na poesia, uma réstia

de lucidez e sol”. Ele surge, (ele Prometeu),
estropiado pelas águias, musas da escuridão,
meio à vermelhidão de seu sangue e do sol,
galo ferido, vitorioso vem cantar sua euforia.

No bico partido traz o fogo.
                                            E esperança do dia.













2 comentários:

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  2. Texto incrível e lúcido, como lúcidos são os poetas, aqueles que chamam de loucos e alucinados. Sendo eu amante tanto da prosa como da poesia, venho após inúmeros ensaios publicados e mesmo premiados, me arriscando a tirar da gaveta-lixo onde guardo meus alfarrábios, alguns poemas, pois ainda é tempo , de uma voz de galinha cacarejar, no terreiro reinado de homens. Boas, fracas ou iniciantes fragmentos do que quer vir a ser poeta, topo de fato com este Lúcio - luz e lúcifer - com quem em muito me identifico. Fala poeta, grite na manhã como os galos de outrora faziam . Mesmo em Zines, plaquetas ou acanhadamente por essas redes em que nadam peixes e peixinhos gritem em nome do que pode vir a ser e será mais poética do que apenas poético.
    Bravo!

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