quinta-feira, 21 de novembro de 2019

A TRISTE TRANSCENDÊNCIA DA SERPENTE



    Não é a primeira vez que publico este poema no “blog”, alguns já devem conhecê-lo. Quando o escrevi já temia sua circunstancialidade. O poema com carga numa determinada circunstância corre o seriíssimo risco de tornar-se datado, e ficar com gosto de passado, perdendo a perenidade, que deve caracterizar a arte. Não que eu ache que o poeta deva viver fora de seu tempo, ao contrário, o artista deve nele inserir-se, fruto que é de suas gasseteanas circunstâncias, porém a arte, a meu ver, quando boa, deve revestir-se de transcendência. Em resumo, a obra de arte deve transcender seu autor e seu tempo, da mesma forma que se o artista se alienar de sua contemporaneidade perderá o seu sentido.

    Quando estava fazendo a revisão de meu livro, “Soda Cáustica Soda”, que acaba de sair pela Editora Patuá (vejam o “link” abaixo), tive sérias dúvidas quanto à oportunidade de incluir um poema escrito sob o calor de uma eleição conflitante e temeroso com o que antevia (não era difícil). Resolvi deixar, ainda faltaria um bom tempo para a sua intranscendência tornar-se insuportável, quando isso acontecesse, porém, já seria história, e esta é inevitável.

    Hoje, lendo notícias sobre a apologia da violência, milícias e grupos paramilitares de extrema direita (não finjamos que não são isso, pois são exatamente isso) invadindo uma igreja onde se celebrava um culto com delicioso sabor ecumênico e interracial, em pânico, percebo: tristemente, nada que rescenda a violência, autoritarismos e ditaduras perderá sua transcendência, e como gostaria de estar enganado.

    Daí me lembrei do estupendo livro de entrevistas que Elizabeth Roudinesco fez com Jacques Derrida. Lá, o filósofo pontuava que, exatamente por essa permanência do monstro, alguns marcos civilizatórios alcançados, dentre eles a democracia, os direitos das mulheres, negros e a questão ecológica, deles não se pode retroceder, pois, independentemente de aspectos culturais e indentitários, são conquistas de toda humanidade, e não de um só grupo.

    Por isso, a necessidade de jamais esquecermos o fascismo, o nazismo, o stalinismo e demais formas de manifestação de bestialidade humana.

    Mais triste do que feliz, constato que este poema, que faz parte do livro recém-lançado, mantem intacta a sua necessária transcendência. A mim, ao meu tempo, ao meu país.

    Adoraria estar enganado, temo não estar, alimentamos a víbora, ela está parindo aos nossos pés seus filhotes.



A PELE I


A serpente, não se iluda, jamais morre ou envelhece
apenas se despe, enquanto ela mesma outra retece.

Seu ovo é sempre recomeço, nunca início ou herança,
se a vemos morta, é que finge, já tece nosso tropeço.

A serpente não grita, sibilina, sussurra, nos hipnotiza,
precisa pedra paralisa prepara o bote em quem a pisa.

Hermafrodita de duas cabeças, confunde quem a ouve,
as vozes antagônicas, mas é una, embora vária pareça.

Seus dois lábios sibilam e seduzem com lábia medonha,
oferece as duas línguas no beijo bifurcado de peçonha.

Na escuridão da nossa estupidez, nas sombras da nudez,
não vemos o veneno viscoso que escorre do sexo imundo

A mistura de sangue e sêmen fecunda o ventre do horror,
e espalha frutos do amor maldito: esses ovos de chumbo




 A PELE II

I

Poderíamos, mas não queremos, ouvir das sombras os sons
do seu corpo, pois ela já se arrasta no meio de nós, nas ruas
o seu espectro se esgueira por entre as pernas das gentes.

Foge entre as frestas das portas da história e das janelas
cegas entreabertas da memória. Não as vê? Há uma legião
delas, estandartes negros, a marcha marcial em procissão.

Tudo nelas é opaco, nas mãos um crucifixo, pois as serpentes
primeiro apropriam-se dos símbolos e dos signos das gentes,
coagulando o sangue das crenças para roubar-lhes as almas.

Plantam seus próprios signos por toda parte, sua simbologia,
símbolos de si mesmas, os ícones da morte e fetiches da dor,
levam o cadáver de Eros, necrófilas, gritam: “morte ao prazer!”

Levantam em cada praça um altar, cibernético ou real: enorme
estrutura de metal, um cubo sem paredes, no meio desse espaço
flutua um neon lilás que balança no vento ao som do serpentário.

“Vazio”. Esse o signo que desenharam, eis o que desejam de nós,
esse o seu mandamento e seu sermão das montanhas (nas mãos
ocultam os cravos e a coroa, precisam dar à morte outra ocasião)

II

Lembrem-se daquele dia em que uma legião delas esteve em Praga,
Viena, em Paris mais de uma vez fizeram ninhos de cores múltiplas,
em Moscou, Nanínbia, em Auschwitz e Gullak, imensa foi a ninhada.

Em nuestra America, nestes tristes trópicos, sempre mudam de pele,
seduzem com miragens a multidão mesmerizada pelos olhos verdes,
as mentiras da puta insidiosa a quem tanto amamos. A cobra tropical

já despiu sua roupa, deixou sobre as árvores a antiga pele, a diáfana
lingerie, véu da noiva para quem, mesmo traídos, cantamos um tango,
“mostrá tu risa!”, sangue e lágrimas jorram dos nossos joelhos: “vuelve

chorra!” A cínica, sorri cicia sussurra roça nas pernas o “esse” do corpo,
falo e fêmea, homens e mulheres nos entregamos. Conhecemos sua voz,
sempre o mesmo soprano, sibila da serpente, por que então a seguimos?

III

A serpente outra vez espalhou os seus ovos, e já eclodiram entre nós,
brotaram entre as gentes as pequenas cobras, inocularam a discórdia,
o veneno do ódio, tambores ritmados anunciam as trombetas da morte,

São as exéquias do amor. E enquanto sangramos fraticidas, ela cicia
num gozo suicida, sua língua derrama em nossos ventres seu veneno
invisível, o seu sêmen em nossas bocas. E sobre nossos cadáveres.

(Do livro “Soda Cáustica Soda” - Cidades – As Erosões da Pedra - vejam "links" ao final)






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2 comentários:

  1. Forte.Muito atual.Gostode como vc vai conectando fatos e idéias.Tempos ,lugares, não tem como não pensar diante deste poema. Construído e lapidado . Adorei reler. Abraço amigo.

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  2. Adorei o blog vou voltar sempre.Vou passar pro meu filho poeta jovem,21 anos, vai ajudá-lo no ofício. O nome dele é Pedro Avila. Escreveu um bom artigo sobre Melo e Castro e foi selecionado para uma Antologia de jovens poetas em língua portuguesa. Está aí na UFF.Forma o ano que vem. Veremos, pois está difícil a vida acadêmica desses meninos.

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