terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

AUTORITARISMOS E CULTURA – UM ÓDIO TÃO ANCESTRAL QUANTO NADA LATENTE (Breves devaneios)


        “(...) Et par le pouvoir d’un mot
               Je recommence ma vie
               Je suis né pour te connaître
               Pour te nommer

               Liberté”

    Liberté - Paul Éluard 

       "(...) E ao poder de uma palavra
              Recomeço minha vida
              Nasci pra te conhecer
              E te chamar
              Liberdade”  

              Liberdade - Paul Éluard
   (Tradução de Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira)

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    Temos visto atualmente, no Brasil e no mundo, um movimento de repulsa à arte e à cultura, ou, no limite, da liberdade criadora, sem a qual aquelas morrem, fruto de um visceral reacionarismo, o que se distingue do conservadorismo. Tal onda negra vem sendo denominada de anti-intelectualismo, melhor chamá-la anticulturalismo. Esse movimento caracteriza-se por uma reação às conquistas civilizatórias, libertárias e também estéticas dos últimos cem anos, e se traduz num esforço concentrado na destruição. Com denodo e crueldade alguns detentores do poder, hoje, tentam - e, espero, não conseguirão - reduzir a pó anos e anos de construção, ainda que, no nosso caso, capenga.
    No caso da nossa aldeia, importante dizer, de antemão, que, de minha parte, o horror que sinto não é consequencia de alguma frustração por tudo aquilo que abomino em ação e pensamento político e cultural, se é que são capazes de algum, ter chegado ao Poder, é do jogo, não reclamo, sou convictamente democrático, até por ainda não haver, e desconfio que jamais haverá, opção de um regime melhor que não a Democracia.
    Nem me coloco no extremo oposto. Não pretendo aqui um elogio às esquerdas mundiais muito menos às brasileiras, embora um pouco melhores no que respeita à cultura, independentemente da discussão do que fizeram quando alcançaram o Poder, não são propriamente um exemplo do trato com a coisa, tanta vez gostosamente namorando com a tentativa de controle, o dirigismo; ou tentando, como já vimos acontecer, apropriar-se da arte, popular ou não, e da pior forma: a utilitária, pôr a arte a serviço de uma causa, bem ou mal intencionada, que isso não importa. Não temos aqui um jogo de espelhos, o falso jogo direita/esquerda, pois, além de datado, regimes autoritários não se diferenciam por rostos muito distintos no trato do assunto, tenham a coloração que tiverem, havendo ditadores para todos os gostos que nutrem verdadeiro horror aos artistas, de Stalin a Hitler, além dessa dicotomia em arte ser completamente equivocada, pois importa a obra, não o que pensa seu autor, e uma boa intenção jamais salvou um mau poema, pois, assim como pode haver geniais artistas de caráter nada adamantino, como dizia meu pai, marginais, ou quase - Villon, Caravaggio, Genet e inúmeros outros confirmam essa afirmação, sempre existirão viscerais reacionários, cujo gênio se manifestará em obras singulares e admiráveis, Pound e Borges podem nos falar sobre isso.   

Strzemiński perseguido por Stalin


   O problema, que decorreria do jogo democrático, é que não estamos vendo algo próximo a uma construção ideológica, ainda que não a nosso gosto, o que temos visto, assustados, é, sim, um inefável prazer em destruir, demolir, para nada construir sobre a ruínas que produzem. Ódio, enfim.
    Evitarei a inegável sedução de comparar governos e partidos, até porque discussão ociosa, pois, ora, é quem exerce o Poder que deve ser o centro das atenções críticas da sociedade civil, obviedade sempre difícil de ser entendida pelos favoráveis àqueles que detêm o poder central, sejam eles quais forem, o que me tem deixado em pânico é o esforço destrutivo, o ódio à inteligência.
    Será esse ódio apenas o fruto de um problema freudiano, frustrações mal resolvidas?
    Antes fosse, a questão é um pouco mais complexa, pois não há qualquer novidade nisso. O que temos nada mais é do que um velho traço comum a todas as ditaduras e regimes autoritários em geral, tenham a coloração que tiverem. A conversa é um pouco mais vertical, e foge do nível da superfície onde costuma nadar, a questão central é: por que todo regime autoritário tem ódio à arte e à cultura?
    Várias são as nuances e motivos, e haverá quem escreva páginas e páginas sobre o assunto, provavelmente alguém com melhor instrumental sociológico e histórico do que uma poeta inquieto, entretanto, dentro dos limites que impõem meu propósito e este artigo, gostaria de destacar dois pontos que, ao meu olhar impressionista, modesta tentativa de arriscar algumas respostas à pergunta, justificariam esse ódio ancestral.
    Ultrapassado o incômodo fato de ser o artista um irrequieto, libertário, o que de resto é fruto do que abaixo discorrerei, o primeiro deles é o mais óbvio:

    1 - A CULTURA COMO FORMA DE AFIRMAÇÃO E RESISTÊNCIA

    Calma, não pretendo falar por jargões, muito menos cair em irritantes modismos, tais como “empoderamento” e “resiliências” (tenho pena, muita pena das palavras que entram na moda, tão desgastadas e distorcidas ficam), mas do fato insofismável que uma cultura forte é vital, não só para o desenvolvimento espiritual de uma nação, sua alma e personalidade, mas também para a sua afirmação e de seu povo no contexto das nações, para a sua existência mesmo, sua sobrevivência e independência, pois uma identidade criada entre sua gente é um totem a ser preservado, orgulhoso motivo de por ele se lutar. Mais do que isso, a cultura de um povo, ademais de ser uma forma de resistência ao opressor, seja ele externo ou interno, é resistência em si mesma, uma cultura forte faz forte a gente, mesmo em um país fraco, econômica e militarmente. E isso os autoritários não podem suportar, pois além de dificultar-lhes o parco raciocínio, esforço que a sua rala inteligência não consegue alcançar, atrapalha seus planos de poder. Não é à toa que tentariam, e, às vezes, bem tentam, caso fossem providos de “engenho e arte”, criar uma estética própria, sobre a qual poderiam ter pleno domínio, base para fincar suas raízes, mas isso seria uma esperança de que pretendessem criar alguma coisa, e não somente destruir as existentes, que é o que temos, com tristeza e medo, visto.
    A história é farta de exemplos dessa resistência pela cultura, e a prova dela, paradoxalmente, talvez esteja presente em algumas perguntas:
    Por que, em condições igualmente adversas e covardes, talvez piores, pois fruto da escravidão, do exílio e da diáspora, a herança das culturas africanas nos influenciou, é inegável, tão mais fortemente que a dos índios, que nos legaram, salvo para olhares impregnados de paternalismo e/ou ideologias, pouco mais, culturalmente falando, esclareço rapidamente, do que o artesanato, ou, sendo condescendente, sua incipiente arte primitiva? Além do banho diário, sempre recomendável.
    Caso queiram outra comparação - e evito a equivocada tentação de chamá-la homogênea, entre índios, pois foram os colonizadores que unificaram culturas tão diferentes sob a mesma denominação de “índios” - pensemos na resistência dos povos da chamada “América Espanhola” (outra denominação esdrúxula), cuja permanência é até hoje sentida. Pensemos no Peru, na influência dos Incas, na fabulosa Matchu Pitchu, culturalmente mais robustos, se comparados aos nossos índios, sua herança ainda hoje diariamente caminha pelas ruas daquele país. As diferenças de influência e permanência saltam à nossa frente.
    Por que, afastando-nos um pouco, a cultura grega sobrepôs-se ao Império Romano, povos acerca dos quais alguém disse que “os vencidos venceram os vencedores”?
    Chegando outra vez mais perto, geográfica e cronologicamente entre um e outro, na América Central, podemos verificar um fenômeno muito semelhante aos romanos, da permanência e da resistência pela cultura, ante um inimigo mais poderoso, que é interessantíssimo, no qual valerá a pena nos determos um pouco:
    Os mexicas eram comercial e militarmente mais fortes que outros povos seus contemporâneos. Suas crianças eram desde cedo treinadas para a guerra, seus cordões umbilicais enterrados no campo, “onde se travam as batalhas” e, aos dez anos, raspavam-lhes os cabelos, deixando apenas uma mexa, que só poderiam tirar aos dezoito anos, quando capturassem um prisioneiro de guerra, além de outras vantagens que só lhes eram concedidas a cada captura do que viam como inimigo (Hugh Thomas).
    Diz uma canção de seu povo, e essa tradição poética não era exatamente mexica, como veremos logo abaixo, que logrou produzir uma boa poesia:

    “Solo esto quiere mi corazón

    la muerte en la guerra”
          (Cantares Mexicanos).

    Um povo guerreiro, em resumo. 



    Sua língua, o “náutle ou náuatle”, era o que chamamos “língua franca”, de fácil acesso e bela, havendo quem diga ter sido uma pena ter morrido, tal a beleza de sua sonoridade.
    Esse povo guerreiro submeteu os tezcocanos, os tlaxcaltecas, acolhuas e tepanecas, e, em especial, os zapotecas, formando impérios e imperadores, como Montezuma I, Axayácatl (náuatle: "Máscara da Água") e Montezuma II, cujas lembranças devem ter doído por várias gerações de espanhóis (ou castelhanos, como preferem alguns). Aqueles últimos, os Zapotecas, foram, sim, derrotados ou melhor, submeteram-se a uma aliança que SE traduziu em derrota.
    A civilização que dessas transformações e domínios resultou, como identidade cultural e histórica, é o que chamamos de “cultura asteca”, denominação dada desde que o cientista Alexander von Humboldt estabeleceu seu uso comum, no início do século XIX, todavia, seria mais apropriado chamá-la “cultura da mesoamérica pré-colombiana”, pois essa herança foi legada principalmente dos povos derrotados, e não do império mexica, em especial, os zapotecas. Entre outras realizações, como pirâmides e calendário, essa cultura nos legou várias formas de expressão estética, e destaco a excelente poesia, conhecida como asteca, mas cujo poeta ancestral foi Tlaltecatzin de Cuauhchicano, na verdade, ora, um tezcocano, não um mexica, autor de belos versos como:

    “que no vaia yo

    al lugar de los descarnados
    (...)
    Yo solo así habré de irme,
    con flores cubierto mi corazón.
    (...) Que sea así,
    y que sea sin violencia”

    (“Maca niya

    ompa ximohuayan.
    (...)
    Zan yuh niyaz
    xochihuiconticac ye noyolio
    (...)
    Zan ihui ya azo
    ihuan in ihuiyan"

          Tradução Miguel Léon-Portilla - “Trece Poetas del Mundo Azteca”, 1978),

    E a diferença, tanto estética quanto temática dos versos belicosos acima transcritos salta aos olhos.
     São, enfim, múltiplos os exemplos, e os dominadores – sejam eles colonizadores, tribos, caciques, reis, ditadores ou governos com tendências autoritárias - sabem, talvez até inconscientemente, disso, e tremem, numa fusão de medo e ódio: como poetas ousam desafiar o fero peso do ferro das armas? Tanto é verdade que a primeira coisa que faz um ditador é instituir uma severa censura à produção de seus artistas, muita vez aprisioná-los e matá-los, como fez Franco a Lorca. 




Inocente coincidência?
    Tudo isso tem umbilical ligação com a língua, elemento fundante de um povo, sua identidade e resistência, e a perseguição aos poetas o prova, tão frágeis, que têm como armas apenas palavras. E disso bem o sabiam os nossos colonizadores, que se aproveitaram da tibieza cultural de nossos índios para introduzir outra forma de dominação cultural: a religiosa, com suas trágicas (e cruéis) tentativas de “catequese”, somada a uma ridícula tentativa de “sofisticar”, por via do “aculturamento”, nossos índios, que tinham uma cultura ainda em formação, ainda nômades, e não conheceriam dela qualquer apogeu, abortada que foi. Sim, várias foram as formas de violência, mas coloco entre as piores, excetuando-se as físicas, por sutil, a cultural.

    Como exemplo do uso da língua como instrumento de dominação, é de se notar que os códigos linguísticos de um desses grupamentos foi apropriado, determinando-se, para “aproximação”, uma língua que deveria substituir as demais faladas pelos diversos povos que habitavam estas paragens, uma “língua geral”, ou “língua franca”, o que o faz semelhante ao náuatle, dos mexicas, como vimos, também uma língua franca e utilizada como forma de dominação: o “nheengatu” (etimologicamente “língua boa”, em antinomia a uma “língua má”) esfacelando a diversidade e, por conseguinte, as respectivas identidades. Comparo esse ataque à difusão da sífilis, que tantos índios matou.
    Essa destruição de culturas incipientes, levada a termo, não tenho dúvidas disso, conscientemente pelo colonizador, além da clara tentativa de domínio ideológico e religioso, tinha também motivos menos, digamos, nobres, tanto por parte dos colonos, como pelos padres Jesuítas, estes com as “melhores intenções”, sem dúvidas: enquanto ensinavam indiozinhos a tocar flautas “eruditas”, pequenos e nus arremedos de vivaldis, forravam os cofres d’El Rey, das obras de Deus (Santo nome em vão!), do Santo Ofício, além do próprio cofrinho das “almas perdidas”, contrabandeando o ouro, aproveitando-se da imunidade alfandegária, que ninguém é de ferro. 
    Embora seja inegável que alguma resistência física houve - e um ou outro bispo devorado prova que a antropofagia também pode ser forma de resistir - por parte desses povos, ela foi massacrada psíquica e culturalmente, tudo em nome de Deus. Sendo econômica, militar e, no que nos interessa, culturalmente falando fracos os nativos, desigual foi a luta e escassa sua herança.
    Dessa forma, praticamente foi aniquilada uma cultura ainda em formação, com a mais covarde arma que pode usar um colonizador: destruindo a identidade do colonizado, sua cultura. Compare-se outra vez com a permanência da herança africana em nossa cultura, de seus povos e suas realezas (penso em Chico Rei), nossos ancestrais, e a importância de uma cultura forte como resistência saltará aos olhos.
    Este é o ponto nodal de nossa questão, neste primeiro tópico.
    Cada vez me convenço com mais intensidade que a cultura é a forma mais eficaz, porque não sanguinolenta (“y que sea sin violência”, cantou o poeta tezcocano), de resistência ao invasor, ao ditador, ao autoritário, e, por isso mesmo, os assustam.
    E este não é assunto datado e ultrapassado no mundo globalizado, muito ao contrário, pois se a aldeia tornou-se uma grande tribo global, seus segmentos devem continuar existindo, ou se perderá a necessária diversidade que faz a arte rica, e não só ela, ou não será uma real universalização - na qual creio e desejo apenas em parte, politicamente e a depender da forma, utópico pacifista humanista que ainda sou - mas um massacre, uma imposição do gosto, como, aliás, temos visto com a inapropriadamente chamada “cultura de massas”, a ser mais corretamente denominada, “indústria do entretenimento (falo disso em outro artigo).
    Um país só será verdadeiramente desenvolvido quando conseguir criar uma unidade dentro da diversidade, quando suas diferentes manifestações não puderem mais ser massificadas, pasteurizadas, ou solapadas, como parecem cultivar aqueles com pendores autoritários, estratificando uma cultura geral em classes e substratos culturais, morais e/ou religiosos, mas mantendo-se vivos os abismos da língua, as diferenças de suas gentes e de suas manifestações artísticas, sua diversidade, enfim.
    Observe-se que o foco que quero dar é libertário, no sentido mais amplo da palavra, pois creio que também é forma de violência, tentação que acomete a ambos os lados do espectro ideológico, tentar impor um conteúdo temático ao criador, ao artista, aprisionando-o, o que chamo de, por exemplo, “literatura de...”, tão ao gosto de nossas inteligências estéreis e inseguras, “uma literatura de...”, e tome rótulos à escolha do freguês, de preferência de tonalidade demagógica, que agora é moda a “boa intenção”, aplaudida de pé pelo público de multidões de mefistos, vistam-se eles de verde e amarelo ou de vermelho. O artista deve ser livre para toda e qualquer forma de manifestação, anticanônico por excelência, e assim deve continuar a ser.

    1 b - O terror em todas as suas formas e a Cultura

    Lembro do que disse George Steiner, em acerba (e exagerada) crítica ao livro de Eliot, “Notas para uma Definição de Cultura”, de 1948, que afirmou, e não sem boa dosagem de razão, ser “irresponsável toda e qualquer teoria da cultura (...) que não tenha como eixo a consideração dos modos de terror”. Pena que tenha atido seu comentário ao período entre as duas grandes guerras, ainda ouvindo seus terríveis ecos, que jamais deverão ser esquecidos, entretanto, considero que qualquer modo de terror deve ser levado em consideração na análise do fenômeno cultural, mesmo os aparentemente pacíficos, pois formas de dominação, principalmente em tempos como o nosso. Releve-se que talvez seu olhar, afligido por duas guerras, não tenha tido o suficiente distanciamento para perceber que poderia se referir a toda forma de opressão e apropriação da Arte por parte dos autoritários e ditadores, as falsas mortes e reencarnações históricas de seus líderes, pois a escassez da democratização do saber formal, acentua os riscos da massificação da cultura, a “indústria do entretenimento”, da qual falei acima, e que de fato ocorreu em nosso século, e é outra forma de terror, e não deixa de ser uma forma de apropriação e domínios das gentes.
    Aqueles tocados pela criação, os artistas de um povo, sejam populares ou não, convém frisar, são os responsáveis pela (re)construção das diversas linguagens, para formar a linguagem, universal em sua diversidade, de uma cultura, uma nação. Quando a mais trágica possibilidade de domínio de um povo, a promovida pelo capital e pelos veículos de comunicação de massa, se alia a um projeto autoritário, eis o horror instalado. Todavia, mas não sei se isso é motivo para otimismo, mesmo dispondo desse instrumental político e econômico, os autoritários, os ditadores, têm pressa - ou talvez lhes falte percepção, mesmo - e preferem a via mais curta: a censura, a opressão o sufocamento. A destruição e a morte. É o que temos visto.

2 - O PAVOR DO SIMBÓLICO (UM OLHAR ESTRANGEIRO)

    “Tout est signe et tout signe est message”

    (“Tudo é signo e todo signo é mensagem”).
                                   Proust

    Mas há outro ponto que gostaria de destacar. E, passe-se a obviedade, como já disse, de forma alguma este artigo pretende-se exauriente, longe de mim.
    Este tópico é dotado de menor rigor, é (ainda mais) intuitivo, não sujeito a tentativas de provas empíricas, como o anterior, até por que não as comportam, por incompatíveis, e exatamente por isso tendo a preferi-lo, mais afeito é minha própria forma de pensar, fruto do meu ofício de poeta. Falo do simbólico, essência primordial da arte.
    O símbolo, é, por sua própria natureza, polissêmico, inapreensível às mentes mais tacanhas, daí o ódio. O antiempírico do signo é o que fascina e justifica sua existência, o símbolo demanda interpretação e não aceita conclusões que se querem definitivas, o símbolo, na verdade a sua interpretação, sempre irrequieta, é o oposto da forma de pensar, se é que têm alguma, dos autoritários e dos ditadores, para eles, o inapreensível em códigos preestabelecidos, aquilo que foge à ordem unida do pensamento único, de resto incompatível com o simbólico, deve ser eliminado, por perigoso, por ameaçador, por perturbador.
    A permanência da mitologia grega – sempre eles - é a prova empírica do que afirmo, e, não, não me contradigo ao mencionar “empírico”, pois sendo o mito e seu signo parte incindível da cultura de um povo, e talvez das principais, como tal, é forma de resistência e permanência, como vimos com os mesmos gregos e os habitantes da América pré-espanhola, e, no que respeita à resistência é, sim, uma regra, vazia, pois, de símbolos, uma verdade histórica, todavia consequência direta do simbólico. As milhares de interpretações que se pode dar aos mitos gregos são a razão de sua permanência milenar, e isso vale para qualquer mitologia, inclusive a cristã, mas menciono a grega, por incontestável.
    Quantas leituras se fez do mito de Ícaro? A melhor que conheço é de Paul Diel, que também escreveu sobre o simbolismo na Bíblia, em “O Simbolismo na Mitologia Grega”, entretanto, essa preferência por uma ou outra interpretação do mito é questão estritamente pessoal. O símbolo, a despeito de interpretável e apreensível, não pode estar preso a uma leitura unívoca, isso seria a sua negação e sua morte, uma contradição em termos, daí sua permanência. Numa frase: o que é livremente apreensível não admite o aprisionamento.
    E o caro e suposto leitor já pode fazer, caso queira e já não a tenha feito, uma ligação com a primeira razão deste artigo, a resistência, o que une este tópico umbilicalmente ao anterior.
    A título de ilustração, que nada tem com resistência alguma, sendo apenas uma demonstração não muito rigorosa do que falo sobre o símbolo ser polissêmico, mas apreensível. E alerto que, a partir de agora, por um breve tempo, teremos uma leitura mais lúdica do que supostamente científica, o que, aliás, nunca foi minha pretensão.
    Recentemente, estive em Nova Iorque e na Filadélfia, a primeira talvez não possa ser entendida como uma representação arquetípica, melhor diria simbólica, da sociedade americana, dada a sua universalidade, embora desconfie que essa “universalidade” tenha um forte aroma de falácia; mas, a segunda, certamente pode ser entendida como uma da inúmeras faces elípticas que tem a sociedade americana, como todas as sociedades, multifacetada.
    Vamos tentar algumas interpretações, num jogo de signos aleatoriamente colhidos nas ruas daquelas cidades, lúdico, como alertei, sem o uso do instrumental sociológico ou antropológico, até porque não os possuo o suficiente, e não gosto de ir além dos meus tamancos, para levar isso com muito rigor, trato aqui tão-somente da leitura simbólica dos fatos, pessoal, portanto, embora essa leitura também seja largamente utilizada por aquelas ciências sociais.
    Mas vejamos algumas cenas que presenciei naquelas duas cidades e as interpretações possíveis que delas faço:
    
    Cena-símbolo 1 – Uma cafeteria:
    O atendente manuseia o dinheiro sem luvas, é o mesmo que preparará nosso café (o sempre detestável café americano) e nosso sanduíche, e, ainda que se limite a colocá-lo no forno, causa, herança indígena? indisfarçáveis aflição e nojo.
    Mas eis que ele coloca as luvas... calou-me? O que havia era apenas uma falha de um funcionário relapso? Não, a luva é posta para que ele possa manusear... o lixo.
    Interpretação possível: a proteção é para ele, não para o consumidor, este importa pouco. A cena parece traduzir uma sociedade extremamente individualista, primeiro eu, depois o resto. Nós.

    Cena-símbolo 2 – Visita ao memorial do atentado de 11 de setembro. Criou-se ali, como não poderia deixar de ser, um clima de pesada comoção. Uma imensa piscina vazia, à qual a chuva fina e fria que caia quando lá estive, emprestava a necessária coloração de luto, que se aliava ao cinza espectral do granito, onde estão gravados o nome dos que ali morreram. Tal “piscina”, se é que é apropriado chamá-la assim, mas é como a chamam, ocupa - não, não ocupa, e o vazio é doloso e doloroso – o lugar das fundações das torres. O cenário é drama e dor silenciosos. 

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    Mas o espaço remanescente ao vazio deixado pelas torres era por demais vasto! Ocupá-lo com um parque que convidasse à meditação seria um desperdício, melhor, muito melhor, um imenso e belo shopping center! Tudo é branco, nada é luto (e é tentador pensar, que ironia, que o luto das muçulmanas é branco), tudo é festa, um feira ocasional de produtos orgânicos e lojas caras. E ainda aproveitando o espaço, que o metro quadrado ali é valioso demais para perdermos tempo com frescuras sentimentais, várias estações de metrô despejam multidões, que vistas do balcão que dá no imenso vão, onde uma bandeira americana lembra à população a razão de ser daquilo, parece um formigueiro – o lugar-comum é inevitável – e transmite um estranho clima de ficção científica. 


  Interpretação possível (embora quase óbvia, quase única): objetividade, grana, grana, grana, praticidade, grana, o sentido utilitário da vida, sem espaço para parvoíces sentimentais.

    Cena-símbolo 3 – pastores, brancos, hindus, chinos, negros imensos e lindos de todos os sexos (perdão, gêneros, e essa chatice importamos deles), convivendo hoje, mostram, signo irrefutável, que a sociedade americana renovou-se, e, embora ainda preconceituosa, o espaço conquistado, convém sublinhar, para a diversidade ampliou-se consideravelmente.

    Andar nas ruas é tropeçar em símbolos

    Cena-símbolo 4 - Um veterano de guerra orgulhosamente ostenta nas costas curvas a camiseta: “Vietnam Veteran”, o peso da História e da Pátria (como gostam disso). Interpretação possível: povo bélico por excelência, com vocação colonizadora, e que disso se orgulha.

    
    Enfim, inúmeras cenas nos fazem chegar próximo a uma definição daquela sociedade que não se preocupa em ocultar seus signos, até porque se orgulha de seus símbolos, apenas os óbvios, por suposto, que os ocultos não os preocupam, nem lhes dizem respeito, o odiariam que os interpretássemos, alienígenas, que somos.
    
    Conclusão possível: essa minhas leituras podem ser brutalmente equivocadas e passíveis de críticas arrasadoras, por simplistas?
    Claro que sim! E talvez o sejam, mas não é isso que está em jogo nessa descompromissada brincadeira que dei de fazer ao acaso das ruas, o que interessa, no caso, é que leituras são minhas, inapropriáveis, fruto de meu pensamento livre, liberto, embora, claro, preso ao meu conhecimento, fruto também de minhas leituras e estudos desocupados.

                                              ...


Como disse, este devaneio, nunca tão devaneante talvez, pretendeu dar dois motivos do ódio e do horror que ditadores e autoritários em geral têm das artes, seus artistas, poetas e escritores, e da cultura, mandando queimar livros, censurando, e, quando podem e conseguem implantar o regime que amam, sob o tacão de seus coturnos, censurando-os, encarcerando-os e, se possível, assassinando-os.

    Foram esses dois motivos do ódio que entendi merecerem destaque, a resistência e o inapreensível do simbólico, mas, é obvio, são inúmeros, são infinitos, me ative apenas a estes, pois permitem uma livre – eis a palavra - síntese do que penso.
    A Cultura os ameaça por ser forma de resistência, e isso eles sabem, ainda que intuitivamente, e, por simbólica, inapreensível, de vocação libertária, portanto. Por isso são irrequietos os artistas, rebelados por natureza, inconformados. E também por isso incomodam tanto, claro.
    Resistência e Liberdade são palavras terríveis, perigosas, por inapropriáveis, e que devem ser banidas dos dicionários, e os que as proferiram, censurados, presos ou mesmo mortos.


















REF. BIBLIOGRÁFICAS:/LEÓN-PPORTILLA, Miguel – “Trece Poetas del Mundo Azteca” – 1978 – Universidad Nacional Autónoma de México – Ciudad Universitaria, México;

THOMAS, Hugh – “The Conquist of Mexico” – 1993 - La Conquista de México – tradución Victor Alba y C. Boune – 1994 – Editorial Planeta S.A. – Barcerlona, España

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