Cem mil mortos.
Comecei a escrever este poema quando completamos noventa mil mortos, para dar tempo de trabalhá-lo, porque sabia inevitável, tal o descaso do facínora que nos governa, que chegaríamos à triste e emblemática marca de cem mil filhos, mães, pais e amores mortos.
Por mórbida coincidência, chegamos a essa marca no dia dos pais.
Nefele (Nuvem), na mitologia grega, foi um “eídolon” (imagem) de Hera, moldada de nuvens por Zeus para enganar Ixíon, que a perseguia. Dessa estranha união nasceram os centauros, seres monstruosos, bestiais e sanguinários, que se alimentavam de carne crua.
De tempos em tempos nasce um descendente de Nefele e Ixíon.
Dois mil mortos,
não sou coveiro.
Cinco mil mortos,
e daí?
Cem mil mortos.
E agora?
o que dirá, mitômano, que não poderia ser coveiro,
que eles jamais cospem no rosto da dor. Elo perdido
um proto-humano. Morte tampouco posso chamá-lo
dela não lhe cabe nem nome nem ofício, ela triunfa
no Tempo, ao passo que a sua memória sucumbirá
no opaco de um passado a ser esquecido. Coveiro
não é, morte tampouco, quem é você, traste, afinal?
Um herdeiro de Nefele, nefasto filho de uma nuvem,
um centauro bêbado, um bastardo bestial, no qual
a Morte cavalga triunfante. Vai, tritura sob as patas
os corpos sem velórios, cospe nos olhos dos órfãos
a seiva do seu veneno, deixa no seu rastro o adágio
dissonante do horror que a morte rege. Ah, carrasco,
funde com as lágrimas os escarros que diariamente
nos atira ao rosto, faz uma mistura lilás como a flor
da dor não pranteada e com a borra do nosso asco,
fermenta o mosto desse vinagre. Brinda com a morte
sua herança, bêbado de ódio delira com as miragens
dos esgotos da História, dança macabra na memória
a imagem do bronze profano do Cão que você adora,
Belzebu fardado que com tesão você cultiva e lustra
cujo nome é uma rima rica tão infamante que a ânsia
cala, ajoelhe-se a seus pés, beije-os como um lúgubre
Brilhante, o sobrenome das sombras das masmorras.
Masturbe-se com o balé do horror, cicatriz que o tempo
não sutura, pois agora que tem os seus próprios mortos.
vai e goza, que no cio da sua boca, no esgar do sorriso
de lagarto corre um fino fio dos rios de sangue nascidos
da cultura
da dor
da Morte
e da tortura.

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FOTO O GLOBO CAPA 09/08/2020 |
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