terça-feira, 17 de abril de 2012

A CASA DO RUI

(...) aquele passo que, pelo caminho, coleava uma longa mangueira de regar, (...) erguia, por sobre as flores (...) o leque vertical e prismático de suas gotículas multicores.

Marcel Proust – No Caminho de Swan


(A única ponte possível, além das cores
desse arco-íris involuntário, são as cores
de meu filho brincando. Reinventa infâncias)


Cores finas sobre o fundo rosa, cores
se formam na água que rega o verde,
o verão, o verso, gotas de um passado


(horror, descubro que já tenho “tempo”),
de outros verões, gotas de um bairro,
que já não nos reconhece. Perdeu-nos


e nos expulsou da memória, a memória
de bairro. Cuidadosamente a arrasamos:
estamos vivos, mas perdemos o caminho


de volta à vida. Sim, estamos vivos
impossível porém nos reconhecermos,
o bairro que fomos não é. Não somos


nunca mais. Nos perdemos de nós,
nos fomos, e não há sequer um caco
de infância para guardarmos no bolso


rasgado da memória. Se nos perdemos
de nós, isso nos faz tatear no presente,
enquanto esperamos o tempo, ou pior


a morte. E, pior ainda, o estarmos vivos,
irremediavelmente vivos e sem memória
(nos salvaria, a derubamos a marretadas)


...


No entanto, sinto essa água fina ainda
me toca o rosto, refresca e me refaz,
colore, convida a lembrar: tenho passado


Mesmo na angústia sem memória
deste calor insuportável, há passado
e infância, umedecidos na Casa Rosa:


Vejo aqueles leões que então domava,
hoje os percebo: são apenas gatinhos
(não são maiores que o dono da casa


que guarnecem, que era como eles
tão magro, tão frágil, tão feio! A cabeça
imensa desconcertando o corpo...


como a minha - angústias de cada idade –
a quem meu pai, consolando e quebrando
louças, me comparou. Eu também tão feio?)


...


Percebo, perceba, amigo, todas as gotas
evocam um frescor que já não há em nós:
as aventuras de subirmos esses muros


estando as portas abertas, as fugas,
são escombros umidecidos pela água
e pelos verdes que hoje nos permitem


Os verdes e a alma, misto de serenidade
e dor: só o que restou deste bairro, amigo,
o que restou do tempo, de mim. De nós.


...


Súbito o telefone explode aos berros
o toque característico quando famílias
o acionam nervosas, e o cinza, a aspereza


dos ônibus rosnando atrás de mim,
desfazem as cores, desfazem o sonho,
o bairro que via não sobrevive na música.





Hemorragia de um passado. Que renascia.
.
.
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