domingo, 4 de agosto de 2013

EXUMAÇÃO

Quando ouvi os ecos da FLIP, e só os ecos, não sou lá muito festeiro, percebi alguma estridência na volta de um martelar por uma "literatura política", mas não dei importância, imaginei serem ecos da ebulição das ruas.

Pensei que talvez uns e outros, mais exibidos, estariam querendo "surfar" nas ondas espontâneas que se formavam, outros me pareceram sinceros, e como todos, com dificuldades de entender o que se passa, eu inclusive.

Entretanto, quando li o caderno Prosa e Verso, de O Globo – essa prosa entre amigos - de 20 de julho último, a matéria sobre aqueles dias de Paraty, notei que se voltava, e a sério, a discutir a antiquíssima questão "arte política", ou melhor, engajada, pois política toda manifestação de arte é, ainda que involuntariamente. Me veio então à boca o pequeno travo que essa velha discussão sempre me causou, e que imaginava morta e enterrada. Mas não é tentavam exumar o velho esqueleto?

Com qual finalidade? Afinal, o que vem a ser "arte política"?

Ainda assim, a li, como leio qualquer matéria num sábado ocioso. Contudo, me deparei com coisas como o comentário de Ferrez, entre outros, que "a arte pela arte não me diz nada"... que frase tão comoventemente antiga! Só faltou falar em “torres de marfim”!

Então o processo de exumação era à vera? Voltáramos ao início do século XX? Ou à década de sessenta? Que magnífica viagem no tempo... Ora, então vamos lá, acompanhar a onda retrô: afinal, o que é "ser político em arte"?

Quando um poema, um romance ou um quadro esfacela catarticamente as defesas do leitor, trazendo desconforto para sua poltrona, expondo seus lodos, sua escuridão, seus abismos, não estará sendo essencialmente político?

Aristóteles, em sua Poética, já sabia disso. E Schiller, embora um pouco diferentemente, também: A jurisdição do palco começa onde finda o domínio das leis profanas. (...) quando nenhuma religião mais encontrar fé e cessar de existir qualquer lei, ainda então Medéia nos fará estremecer, descendo cambaleante as escadas do palácio, depois de ter consumado o infanticídio. Sempre que Lady Macbeth, essa medonha notívaga, lavar as suas mãos, clamando por todas as substâncias aromáticas da Arábia, a fim de eliminar o mau odor do assassinato, um horror salutar comoverá a humanidade, e à socapa, cada qual bendirá a sua boa consciência (...). (A Teoria da Tragédia). Lindo, não?

Porque, gostaria imensamente que me respondessem: o que é mais eficaz, do ponto de vista político, sim, político, desconsiderando momentaneamente que político, repita-se, todas as manifestações artísticas o são? O chatíssimo "A Mãe", de Gorki, ou termos surrupiado nosso conforto, e quase reconhecer que matar uma terrível velha usurária e esconder seu corpo num armário poderia ser justificável, fazendo-nos deparar em nós o assassino que nunca nos supuséramos (Crime e Castigo, de Dostoievski)?

E responda rápido, para não ficarmos apenas no romance russo:

Entre qualquer subliteratura engajada e a ambiguidade hermafrodita do herói, em Diadorim, ou mesmo não sabermos se a terceira margem do rio é a morte ou a loucura (conclusão inapropriável, logo, por cada um de nós e nossas fraquezas – circunstâncias ortegueanas - livremente apropriada), o que é mais efetivamente transformador (Grandes Sertões, Veredas e A terceira Margem do Rio, de Guimarães Rosa)?

Se subverte até nosso território mais desconhecido, claro que ficará inalcançável por supostas “forças do poder”. Simples assim.

Não estou dizendo que não exista uma arte “política” (no sentido que querem emprestar ao termo) de qualidade, “Os Comedores de Batatas”, de Van Gogh, confirma isso, mas “As Meninas”, de Velásquez (vide postagem abaixo), também é virulentamente político, embora isso não seja perceptível numa primeira mirada, e longe, muito longe de “engajado”.

O problema é estético, sem isso, será melhor fazer outra coisa, quem sabe um discurso?

Uma boa causa não salva um mau poema, e bem sei que a frase é antiga, mas, fazer o que? O assunto também é. Aliás, o melhor Mayakovsky é lírico (Lili Brik), ou quando disse que o poeta deveria preceder o tempo na fantasia, de modo a fazer de um dia um século.

Mais lírico, improvável, mais revolucionário? Inútil...

O problema da literatura, e de qualquer outra forma de arte, "engajada" (prefiro chamá-la funcionalista), é que acaba falando para o próprio umbigo e para os umbigos circundantes, que concordarão, ou não, a depender da camisa que vistam. Sua única utilidade (não era isso que pretendiam?) é aplacar a culpa de quem a produz. Ou servir de ponte para ditaduras que acabarão por encarcerar aqueles que a ajudaram a encastelar-se, ou, não sei se pior, empobrecer, eis que medíocres, aquele processo que se afigurava rico.

E não conheço melhor exemplo disso do que a arte russa do período imediatamente anterior à revolução, basta comparar com o que veio depois.

Ora, querem fazer literatura política?


Simples, façam boa literatura.


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