quarta-feira, 21 de maio de 2014

TRÊS POEMAS DESCONEXOS


O aprendizado da pele e DA COR


Olhar um filho é pressupor-se sépia.
É olhar-se homem, masculino precário,
com esse olho imaterial e primeiro
do aprendizado permanente da pele
e pele permanecerá


Temos, os homens, um ventre
transcendente, dois seios secos e cegos
que se dissolvem, estelar e láctea ilusão:
nosso leite invejoso de mamífero incompleto,
que somos.


Para nós, o universo e o umbigo se expandem
na exata medida em que as peles se estreitam.




CAPITU DECAPITADA                                                   


“Era de uma feiúra que não passaria despercebida a ninguém (...). Era feiúra e não cabia descrevê-la como nada mais. Era um dom do céu, uma perfeita feiúra, negada à maior parte das mulheres.
Mas Kinué se sentia constantemente angustiada por sua beleza”


Yukio Mishima – A Corrupção de um Anjo






Ela era feia, muito feia, feia demais...
uma feiura tão absoluta que o mundo
estancava sem desejos e sem ilusões.
Feia, e por feia demais inventava espelhos


Ele era ruim, muito ruim, seu verso roçava,
não o ritmo das águas, mas o silêncio roto
da boçalidade. Seu lugar comum, nem era
comum, mas terra arrasada pela multidão


Era feia, sua virilha negava o caminho, trilha
de cactos flácidos, sua nudez o prenúncio do fim
da humanidade. Mas na foto, como ela brilhava!
Fazia-se trilha de desejos ao aconchego de Vênus


Era ruim, e embora avaras as palavras, vertia
versos em profusão poluída, sobravam silêncios
e mentira, nada tinha a dizer. Mas naquela tela
branca e fugaz, tudo podia ressoar, dizer e sumir.


Seus seios secos e sedentos de subsolos
e a terra arrasada da fonte baça de seus olhos
eram desertos e areia, mas na tela brilhavam
olhos e seios de desejos milenares e de ressaca


Com orgulho escondido (e raiva) ele escrevia:
“gosto de olhos que sorriem, gestos que se desculpem”
E assassinava em baixo: Machado de Assis!
Que despencava seu gume sobre a jugular do Bruxo


Um luxo este tempo de mentira e mediocridade
tempo de esquizofrenia. E assim ele escrevia
legitimando-se; ela sorria, linda, sua face no face,
que faceira! Que feitiçaria!.. Era toda sedução



Tempo de bytes e biltres efêmeros e falsos, ela
ele, tudo tão falso quanto essas faces no Face,
those falling faces que abismam sem alma,
no chão do espaço, no vácuo ao pé da tela





DESPERTA, Ó Mundo Sigmundo!


Muito bom dia, senhor! Treme a manhã.
Ela me cumprimenta, entre grave e cínica.
Com medo? Numa voz rouca e lasciva:
Acontece... Permita-me apresentar-me,
sou uma Hippopotamidae, ela saliva 


(Os gregos me conheciam por Ιπποπόταμος, 
algo como άλογο "cavalo" (prefiro égua) 
e Ποταμός, "rio" (amor, me chame água). 
Meu nome? Hippopotamus amphibius, 
tão difícil... pode me chamar de "Hipa". 


Para os egípcios, eu era uma deusa, eles rezavam 
para Tuéris, divindade fértil, uma hipopótama, 
claro, como eu, bípede. Sábios aqueles egípcios... 
Ela, mais e mais insinuante, quase sereia, servia 
aquele abismo de desejos reprimidos. E pesados. 



Mas, amor... o "r" rútilo ressoava e roçava
o focinho feito de fino cristal perigava estalar,
como vê, ela arde, sou um pouco diferente
de meus parentes. Tentei sorrir num esgar,
fraco, tive medo que, cacos, se partisse em mil. 



Tenho as patas e a boca de vidro, assim, 
você pode ver o que mastigo. Mas cuidado, 
tenho a mordida mais forte que a de um leão. 
Olhe minha língua! Lambia-se de tesão, o medo 
estraçalhou nas estrelas um resto de vácuo viril.


Se abro minha boca (quase cantava), não é sono,
apenas antecipo a força dos dentes que o espreitam.
O dia? O dia alvo nos meus dentes o desperta
mas tenho fome. De que me alimento? Ora, de cérebros
de angustiados, suicidas, poetas e de outros insensatos.


Mas tenho, querido, que lhe contar um segredo
(hipopótamos se despem? Sei que vi uma nudez
pesada, desesperadamente nua e pesada): na verdade,
somos quase parentes: você, um homo sapiens que sonha,
e eu, uma femina inconscius que persegue seu sonho,


Sua sombra e seu sonho... Súbito ela abre as cortinas
do dia, gargalha e chafurda em meus suores seu riso
eco que se espalha e espelha, descortinando desastres
corpos dilacerados, cabeças, lágrimas maternas em ruínas,
enquanto ela, mais bovina que equina, ri de mim, e rumina.


Há manhãs em que o sol nasce tão doce, que acordamos
e vivemos uma vida leve e levianamente cor de rosa...




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