terça-feira, 8 de outubro de 2019

9 mm


Os dedos passeiam pelo metal, calmo,
acaricia o cano entumecido aço lateja
no meio das mãos que se entreabrem

flores de outono dos beijos frustrados
na antevéspera da espera, da recusa
que ainda faz salivar os lábios vazios.

Mordisca o ‘freme’, freme ao senti-lo
rente à empunhadura, essa escultura
que afasta o aço. Alça a alça de mira

à orla da boca, retém entre os dentes
o ‘retém do desmonte’, a língua treme
dos medos velados de remotas línguas

que ainda dançam na boca entreaberta
do cano de aço que dança na sua boca.
Sente-lhe o frio uma febre lassa na face

lassa em lágrimas do desejo de poder.
(Essa é sua dor exata: o poder alheio
um gozo vizinho que nunca será seu).

Num espelho um Cão lubrifica o cão
da arma, sente subir por todo o corpo
o tesão da morte que vibra lubricidade.

A língua trançada no gatilho guarda
na boca o gosto do guarda-mato, aço
que o faz sonhar escorrer o estilhaço

nos dedos melados de pólvora e porra,
num rastilho de febre que o fará vibrar
junto ao trilho sob um cano em brasa.

Pela coluna sobe o frêmito de antigos
desenganos, cicatrizados na vertigem
do cheiro do sangue virgem por verter.

Lhe fascina sonhar o corpo da morte
no corpo imaginário do alvo, cenário
onde ele forte violento violará o corpo

dos livros e as páginas das mulheres,
os tantos mistérios jamais entendidos,
como o entende esse sabor do ferro

que lambe e suga e chupa e passa
na língua sua liga de aço e carbono,
corpo lasso prostrado no abandono

que lateja viceja viciado das sevícias
da pistola cujo ferro vibra o fogo a fibra
que jamais fraqueja como a sua. Sua,

soam estampidos sem direção! As mãos
os dedos, descontrolam-se no derradeiro
tesão, que gira grita e goza no orgasmo

dos disparos precoces da pólvora, sempre
o gozo precoce, precoce morte de crianças
que caem como caem os patos de plástico,

no pathos doentio dos boçais que ejaculam
estilhaços de chumbo sobre o eco fugidio
da dor anônima que emana das multidões.

Ai, com que prazer empunha o falo de ferro!
O gozo de prazer de um pulha que polvilha
pólvora, seu sêmen de dor sobre a canalha

que incendeia entre os ecos de estampidos,
dos estilhaços, sons de uma ópera patética
cujo libreto incendiou-se antes do último ato

                                                     Silêncios

A melopeia dessa brisa que é quase silêncio
traz o voo de um coral de drosófilas profanas
sopranos das árias, enredos masturbatórios.

Soa um Réquiem no vento Terral, a aragem
leva a música, som de um sopro quase triste
que traz a respiração dos corpos que expiram

na perversão do vício do vento de miasmas.
Em silêncio ele seduz e penteia os cabelos
sem viço dos mortos, num sacrifício ao Nada.



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