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FIG. A |
São raros, muito raros os momentos em que o gênio une a razão e os sentidos aos domínios da técnica e alcança a altitude de Velásquez, em “As Meninas”. Ou, no inverso da razão, contudo sem nenhum improviso, de Goya, e falo do Goya fora da corte, o da fase negra.
Será interessante comparar um e
outro, antes de entrar no que nos interessa: o mencionado “As Meninas”. Mas
serei breve nessa comparação, eis que seria, e talvez seja, motivo para outro
devaneio.
Ambos têm alguns pontos de contato, dentre eles a
genialidade e a real família, embora de diferentes gerações, que, pelo fato de sustentá-los, devia provocar alguns conflitos interiores. Mas, além de cento e
cinquenta anos, é justo em relação a essa família que eles notoriamente se
separam.
Velásquez deles se salvava pela ironia, no limite (como
gosto disso! O andar nos limites) do sarcasmo, tornando mais feia a já feia real
família; enquanto Goya salvava-se do e pelo desespero, pela liberação dos
demônios e da loucura, embora, nesses casos, escondido em seu atelier.
O primeiro racionalizava, e, sem que a feia família
percebesse - a altivez e a real vaidade, mesmo diante do mais cruel espelho,
nunca se veria tão feia - retratava-a com particular e corrosiva feiura; enquanto
o segundo, refugiado no atelier, deixava escapar dessa solidão voluntária o
desespero, realizando um dos mais altos momentos do Homem: a “Fase Negra” (além
da Tauromaquia e outras afirmações dos mais vitais desespero e intensidade),
identificada irremediavelmente com seu trabalho, libertando-se do jugo do
figurativo comportado que a real família parecia obrigá-lo, e que, ainda que
genialmente realizado, devia atormentá-lo, ou fantasmas tão intensos não
buscariam o ar exterior.
Velásquez, por exemplo, com sutileza, é claro, espelhava a tão
incontornável quanto nobre feiura real (fig. B);
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FIG B |
Goya, por sua feita, em seu atelier, pintava uma figura de mulher, que muitos dizem ser sua companheira ou uma prostituta (fig. C), mas que a mim é impossível não remeter à soberana, pois é patente, ao menos num espelho sombrio, a presença do retrato que fizera ou faria da "reina Maria Luisa" (fig. D).
Afastando-nos já da breve comparação, eis que não é o motivo deste pequeno devaneio, servindo-nos apenas como introdução, chega-se ao ponto a que visávamos: poucas vezes a técnica e a razão estiveram a serviço de um artista quanto na tela As Meninas, de Velásquez (fig. A).
Foucault, em ensaio homônimo, no livro As Palavras e as
Coisas[i], analisa a obra, nos parece, a partir de uma Teoria da
Representação, e o faz com muito sucesso. Modestamente, entretanto, penso que
faltou ali uma análise subjetiva, a partir do que pretendia Velásquez naquela
cena, sua relação com a família real e com a realidade – sem trocadilho – sua
solidão interior, enfim, a sua tensa relação com o centro do poder,
necessariamente conflituosa, um desconforto, contudo, que ele não podia, por
inoportuno, claramente manifestar. Enfim, ousadamente senti ali falta de uma análise
dentro da perspectiva subjetiva e criadora (Unamuno).
Ao apresentar-nos o quadro - e Velásquez o faz formalmente -
convida-nos e conduz (nosso olhar) com firmeza, a partir de um espaço cênico,
tão ao gosto do Barroco, mas deste se afastando um pouco pela racionalidade,
pela ausência do drama trágico de um Caravaggio, por exemplo.
Esse cenário é composto por uma multiplicidade de espelhos, que
revelam toda sua "tragédia" ao espectador - que, de mero espectador,
ao fim é elevado à categoria de protagonista, como veremos – “tragédia” que sua
mão firme não permite desandar, graças ao domínio da técnica e da razão,
contendo a explosão dramática, tão ao gosto barroco, em favor de uma ironia
fina e racional, demonstrando que, embora pintor da corte, detinha o controle
da situação, fazendo de seu pincel uma arma avassaladora, determinando
caprichosamente o comportamento da real família, reduzindo-a, sem realeza
alguma, ao seu real tamanho. Explicamos:
Aquilo que deveria ser o ponto central da tela, Filipe IV e
sua mulher, Mariana, naquele momento retratados, é relegado quase ao ponto do
esquecimento. Só sabemos que estavam sendo pintados, logo, eram ou deveriam ser
a razão daquela reunião familiar, por uma tênue sombra num espelho ao fundo do
atelier. Espelho este, por sua vez, refletido em outro espelho, o que Velásquez
usava para pintar, invisível aos nossos olhos - ao menos aparentemente invisível,
pois logo, espectadores, estaremos diante dele.
Esse primeiro e obscuro espelho, o que reflete o casal real,
é destacado apenas pela luz que lhe empresta o artista, num, aqui sim, barroquíssimo
jogo de luz e sombras, que conduz o olhar do espectador, realçando a figura dos
soberanos, que, embora num ponto quase central da tela, é apenas percebida (e
destacada) pelo brilho do espelho que a reflete, e que a nossa imaginação
(porque na verdade nada identificamos) empresta toda a pompa de uma solene
seção de pintura.
O fato que importa é que as figuras humanas dos soberanos
são reduzidas – e eis a primeira ironia - a dois borrões ininteligíveis, mas de
claridade solar da real (sem trocadilho) intenção do artista, e apenas ganham
importância - segunda ironia - na exata medida em que ele assim o queria (FIG
E, à
esquerda).
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FIG.E |
Embora aparentemente estática, a maestria do pintor “dirige” e movimenta a cena.
Tal solenidade, ridícula e sutilmente narrada, contrasta com
a informalidade da família Bourbon, representada pela infanta Margarida e o
cachorro, "rodeada de aias, de damas de honor, de cortesãos e de
anões" (a quem se pode) "muito precisamente atribuir nomes: a
tradição reconhece aqui dona Maria Agustina Sarmiente, ali, Nieto, no primeiro
plano, Nicolaso Pertusato, bufão italiano" (Foucault, pg 25), além de um
casal sem qualquer importância, o que acentua a vacuidade das personagens
secundárias (FIG F e G).
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FIG. F |
Estando num ponto central da tela, tendo sua figura realçada
pela luz mais intensa, a infanta Margarida, ou antes, o grupo familiar,
incluídos aí os serviçais, nos dá a impressão que estamos diante do tema
principal da tela, o que até seria interessante, embora vazia gentileza com os
soberanos. Todavia, ainda estamos no plano do antagonismo. A infanta, a nosso
ver – terceira ironia - é personagem "plano" (Forster, "Aspects of the Novel”) ainda não fomos
apresentados ao verdadeiro protagonista.
Quem seria ele?
Novamente a mão do artista nos conduz, nos apresentando, como
acima enunciamos, a tela da forma por ele desejada
Vemos então o próprio pintor deslocar-se sutilmente detrás
da tela "principal", da qual vemos apenas o cavalete, uma tela que
não podemos ver, pois estamos diante de um espelho. Reclina-se o artista para
seu lado esquerdo (ou seria o direito? Não estamos diante de um jogo de espelhos?).
Foucault (pg 19) indaga-se se estaria começando a tela, ou dando o necessário
afastamento para a última pincelada, dúvida que nos sugere o jogo de espelhos
(FIG H).
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FIG. H |
Preferimos, para o que pretendemos, a primeira hipótese, eis
que interessava ao plano ilusório do artista que a cena se montasse para ele e de
acordo com as suas pretensões: que toda nobre família, e sua disponibilidade
ociosa, estivesse ali a seu serviço, aguardando ansiosa o que prometia a tela
em branco (viria? Quarta ironia).
O pintor, o sujeito, ganha o merecido realce, enquanto o
pintado reduz-se ao que é: um (falso) objeto, ainda que detentor de nobreza e
poder. O fazer criador ganha ali um raro destaque, que raramente viria a ser
alcançado até a modernidade, quase quatro séculos depois. Note-se que não falo
dos, em regra, formais e anódinos autorretratos, que são coisas muito diversas,
mas de revelação de processos criativos.
Então seria ele o protagonista?
Velásquez escapa ao perigoso espelho de Narciso, já havia
espelhos suficientes naquela cena. Não, não era ele o tema principal.
Eis que nossos olhos são finalmente conduzidos ao tema
central da obra.
Quem é aquela misteriosa personagem que, de uma porta
aberta, cada pé apoiado num degrau, observa aquela cena (FIG. I)? Estaria
descendo ou subindo a escada; acaba de chegar, ou retira-se, satisfeito com o
que já viu? Prefiro outra vez a primeira hipótese, pois acabamos de entrar em
cena.
Sim, acabamos, pois somos nós aquela figura, é o espectador
o protagonista, nós.
E, mais interessante, embora no mesmo plano do casal real, e
lado a lado, ganhamos um destaque intencional proporcionado, ainda uma vez,
pela luz precisa e diversa, a acentuar nossa importância diante do diminuto
casal. Protagonista e figurantes, lado a lado, nos conduzem ao contraste
(barroco).
Esta a ordem de importância da cena, de forma descendente:
leitor, criador, o cotidiano familiar e a infanta, e, finalmente, quase sem
importância alguma, o casal real.
Foucault, na conclusão de sua análise, ao sugerir nesse
quadro uma "representação pura" (pg 32), livre de sujeito e objeto, literalmente
nos expulsa, espectador, junto com o pintor, do quadro.
Expulsos do quadro estão os soberanos e a infanta, e, embora esta esteja fisicamente no centro da tela, aparentemente destacada, não passa, como vimos, de uma antagonista, a demonstrar a desimportância da pompa familiar.
Mais do que uma "representação pura" o que temos
aqui é pura metalinguagem; mais do que um poema, o que temos é uma poética.
Indubitavelmente estamos diante de uma ruptura, dessas que,
num dado momento da história e da arte, indicam uma mudança de paradigma, há um
visível corte, quando o artista, falando de seu próprio processo criativo, numa
metalinguagem silenciosa, nos indica que, afastado o falso objeto, surge o
verdadeiro: a relação do artista com o mundo, suas angústias e conflitos, arquetípica,
pois, e que é a mesma, ou semelhante, à do espectador, sujeito e objeto (o
verdadeiro, não o falso, a real família), enfim, a exata função da Arte, a
relação do homem com seus medos, inadaptações, seus arquétipos com outro(s)
homem(ns).
Enfim, a comunicação entre os homens no plano do simbólico, a
única possível.
Desconfio, que, ironicamente, a tela do casal real sequer
tenha sido pintada, prefiro gostosamente pensar que não. Mas como terá feito o
pintor para escapar à desconfiança e à provável ira do soberano?
Simples, desta vez a destreza
não se deu com pincel e tintas, mas com a palavra, e mais uma vez com a razão e
a inteligência: Velásquez justificou o, digamos assim, "desvio
temático", fazendo uma "surpresa" aos reis: denominou a tela
de... "As Meninas", numa singela homenagem à "linda" filhinha,
a infanta, aquela que, aparentemente, e, como vimos, apenas aparentemente, é a
protagonista, em mais um jogo de espelhos e ilusões que, além de enganar seus
patrocinadores - papá e mamã devem ter adorado - vem enganando, até hoje, ao
longo de quatro séculos, muita gente boa e muito olhar supostamente acurado.
[i]
FOUCAULT, Michel – “Las Meninas”, in “As Palavras e as Coisas – Uma arqueologia
das ciências humanas” – Livraria Martins Fontes Editora ltda – tradução António
Ramos Rosa – pg 17
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