sexta-feira, 5 de julho de 2013

UM OLHAR FURTIVO SOBRE “AS MENINAS” (Revisitando Velásquez) - Lúcio Autran

FIG. A





São raros, muito raros os momentos em que o gênio une a razão e os sentidos aos domínios da técnica e alcança a altitude de Velásquez, em “As Meninas”. Ou, no inverso da razão, contudo sem nenhum improviso, de Goya, e falo do Goya fora da corte, o da fase negra.

Será interessante comparar um e outro, antes de entrar no que nos interessa: o mencionado “As Meninas”. Mas serei breve nessa comparação, eis que seria, e talvez seja, motivo para outro devaneio.

Ambos têm alguns pontos de contato, dentre eles a genialidade e a real família, embora de diferentes gerações, que, pelo fato de sustentá-los, devia provocar alguns conflitos interiores. Mas, além de cento e cinquenta anos, é justo em relação a essa família que eles notoriamente se separam.

Velásquez deles se salvava pela ironia, no limite (como gosto disso! O andar nos limites) do sarcasmo, tornando mais feia a já feia real família; enquanto Goya salvava-se do e pelo desespero, pela liberação dos demônios e da loucura, embora, nesses casos, escondido em seu atelier.

O primeiro racionalizava, e, sem que a feia família percebesse - a altivez e a real vaidade, mesmo diante do mais cruel espelho, nunca se veria tão feia - retratava-a com particular e corrosiva feiura; enquanto o segundo, refugiado no atelier, deixava escapar dessa solidão voluntária o desespero, realizando um dos mais altos momentos do Homem: a “Fase Negra” (além da Tauromaquia e outras afirmações dos mais vitais desespero e intensidade), identificada irremediavelmente com seu trabalho, libertando-se do jugo do figurativo comportado que a real família parecia obrigá-lo, e que, ainda que genialmente realizado, devia atormentá-lo, ou fantasmas tão intensos não buscariam o ar exterior.

Velásquez, por exemplo, com sutileza, é claro, espelhava a tão incontornável quanto nobre feiura real (fig. B); 


FIG B

Goya, por sua feita, em seu atelier, pintava uma figura de mulher, que muitos dizem ser sua companheira ou uma prostituta (fig. C), mas que a mim é impossível não remeter à soberana, pois é patente, ao menos num espelho sombrio, a presença do retrato que fizera ou faria da "reina Maria Luisa" (fig. D).

FIG. C
FIG. D



Afastando-nos já da breve comparação, eis que não é o motivo deste pequeno devaneio, servindo-nos apenas como introdução, chega-se ao ponto a que visávamos: poucas vezes a técnica e a razão estiveram a serviço de um artista quanto na tela As Meninas, de Velásquez (fig. A).

Foucault, em ensaio homônimo, no livro As Palavras e as Coisas[i], analisa a obra, nos parece, a partir de uma Teoria da Representação, e o faz com muito sucesso. Modestamente, entretanto, penso que faltou ali uma análise subjetiva, a partir do que pretendia Velásquez naquela cena, sua relação com a família real e com a realidade – sem trocadilho – sua solidão interior, enfim, a sua tensa relação com o centro do poder, necessariamente conflituosa, um desconforto, contudo, que ele não podia, por inoportuno, claramente manifestar. Enfim, ousadamente senti ali falta de uma análise dentro da perspectiva subjetiva e criadora (Unamuno).

Ao apresentar-nos o quadro - e Velásquez o faz formalmente - convida-nos e conduz (nosso olhar) com firmeza, a partir de um espaço cênico, tão ao gosto do Barroco, mas deste se afastando um pouco pela racionalidade, pela ausência do drama trágico de um Caravaggio, por exemplo.

Esse cenário é composto por uma multiplicidade de espelhos, que revelam toda sua "tragédia" ao espectador - que, de mero espectador, ao fim é elevado à categoria de protagonista, como veremos – “tragédia” que sua mão firme não permite desandar, graças ao domínio da técnica e da razão, contendo a explosão dramática, tão ao gosto barroco, em favor de uma ironia fina e racional, demonstrando que, embora pintor da corte, detinha o controle da situação, fazendo de seu pincel uma arma avassaladora, determinando caprichosamente o comportamento da real família, reduzindo-a, sem realeza alguma, ao seu real tamanho. Explicamos:

Aquilo que deveria ser o ponto central da tela, Filipe IV e sua mulher, Mariana, naquele momento retratados, é relegado quase ao ponto do esquecimento. Só sabemos que estavam sendo pintados, logo, eram ou deveriam ser a razão daquela reunião familiar, por uma tênue sombra num espelho ao fundo do atelier. Espelho este, por sua vez, refletido em outro espelho, o que Velásquez usava para pintar, invisível aos nossos olhos - ao menos aparentemente invisível, pois logo, espectadores, estaremos diante dele.

Esse primeiro e obscuro espelho, o que reflete o casal real, é destacado apenas pela luz que lhe empresta o artista, num, aqui sim, barroquíssimo jogo de luz e sombras, que conduz o olhar do espectador, realçando a figura dos soberanos, que, embora num ponto quase central da tela, é apenas percebida (e destacada) pelo brilho do espelho que a reflete, e que a nossa imaginação (porque na verdade nada identificamos) empresta toda a pompa de uma solene seção de pintura.

O fato que importa é que as figuras humanas dos soberanos são reduzidas – e eis a primeira ironia - a dois borrões ininteligíveis, mas de claridade solar da real (sem trocadilho) intenção do artista, e apenas ganham importância - segunda ironia - na exata medida em que ele assim o queria (FIG E, à esquerda).

FIG.E

Embora aparentemente estática, a maestria do pintor “dirige” e movimenta a cena.

Tal solenidade, ridícula e sutilmente narrada, contrasta com a informalidade da família Bourbon, representada pela infanta Margarida e o cachorro, "rodeada de aias, de damas de honor, de cortesãos e de anões" (a quem se pode) "muito precisamente atribuir nomes: a tradição reconhece aqui dona Maria Agustina Sarmiente, ali, Nieto, no primeiro plano, Nicolaso Pertusato, bufão italiano" (Foucault, pg 25), além de um casal sem qualquer importância, o que acentua a vacuidade das personagens secundárias (FIG F e G).



FIG. F
FIG. G


Aliás, na verdade, a personagem, neste caso, não é a infanta, ou, ao menos, não somente, mas o conjunto de figuras: é o cotidiano da família real, que pouco se distingue de uma família qualquer. Poder? Nobreza?

Estando num ponto central da tela, tendo sua figura realçada pela luz mais intensa, a infanta Margarida, ou antes, o grupo familiar, incluídos aí os serviçais, nos dá a impressão que estamos diante do tema principal da tela, o que até seria interessante, embora vazia gentileza com os soberanos. Todavia, ainda estamos no plano do antagonismo. A infanta, a nosso ver – terceira ironia - é personagem "plano" (Forster, "Aspects of the Novel”) ainda não fomos apresentados ao verdadeiro protagonista.

Quem seria ele?

Novamente a mão do artista nos conduz, nos apresentando, como acima enunciamos, a tela da forma por ele desejada

Vemos então o próprio pintor deslocar-se sutilmente detrás da tela "principal", da qual vemos apenas o cavalete, uma tela que não podemos ver, pois estamos diante de um espelho. Reclina-se o artista para seu lado esquerdo (ou seria o direito? Não estamos diante de um jogo de espelhos?). Foucault (pg 19) indaga-se se estaria começando a tela, ou dando o necessário afastamento para a última pincelada, dúvida que nos sugere o jogo de espelhos (FIG H).

FIG. H

Preferimos, para o que pretendemos, a primeira hipótese, eis que interessava ao plano ilusório do artista que a cena se montasse para ele e de acordo com as suas pretensões: que toda nobre família, e sua disponibilidade ociosa, estivesse ali a seu serviço, aguardando ansiosa o que prometia a tela em branco (viria? Quarta ironia).

O pintor, o sujeito, ganha o merecido realce, enquanto o pintado reduz-se ao que é: um (falso) objeto, ainda que detentor de nobreza e poder. O fazer criador ganha ali um raro destaque, que raramente viria a ser alcançado até a modernidade, quase quatro séculos depois. Note-se que não falo dos, em regra, formais e anódinos autorretratos, que são coisas muito diversas, mas de revelação de processos criativos.

Então seria ele o protagonista?

Velásquez escapa ao perigoso espelho de Narciso, já havia espelhos suficientes naquela cena. Não, não era ele o tema principal.

Eis que nossos olhos são finalmente conduzidos ao tema central da obra.

Quem é aquela misteriosa personagem que, de uma porta aberta, cada pé apoiado num degrau, observa aquela cena (FIG. I)? Estaria descendo ou subindo a escada; acaba de chegar, ou retira-se, satisfeito com o que já viu? Prefiro outra vez a primeira hipótese, pois acabamos de entrar em cena.

Sim, acabamos, pois somos nós aquela figura, é o espectador o protagonista, nós.

E, mais interessante, embora no mesmo plano do casal real, e lado a lado, ganhamos um destaque intencional proporcionado, ainda uma vez, pela luz precisa e diversa, a acentuar nossa importância diante do diminuto casal. Protagonista e figurantes, lado a lado, nos conduzem ao contraste (barroco).

Esta a ordem de importância da cena, de forma descendente: leitor, criador, o cotidiano familiar e a infanta, e, finalmente, quase sem importância alguma, o casal real.

Foucault, na conclusão de sua análise, ao sugerir nesse quadro uma "representação pura" (pg 32), livre de sujeito e objeto, literalmente nos expulsa, espectador, junto com o pintor, do quadro.

Discordamos. Ao contrário, se olharmos atentamente o quadro, veremos que nossos olhares, pintor e espectador, (verdadeiro) anfitrião e convidado, cruzam-se em silenciosa cumplicidade. Olhares que se arrebatam e densificam a cena, fazendo desaparecer, quase que por magia, o todo circundante.


FIG I






















         Expulsos do quadro estão os soberanos e a infanta, e, embora esta esteja fisicamente no centro da tela, aparentemente destacada, não passa, como vimos, de uma antagonista, a demonstrar a desimportância da pompa familiar.

Mais do que uma "representação pura" o que temos aqui é pura metalinguagem; mais do que um poema, o que temos é uma poética.

Indubitavelmente estamos diante de uma ruptura, dessas que, num dado momento da história e da arte, indicam uma mudança de paradigma, há um visível corte, quando o artista, falando de seu próprio processo criativo, numa metalinguagem silenciosa, nos indica que, afastado o falso objeto, surge o verdadeiro: a relação do artista com o mundo, suas angústias e conflitos, arquetípica, pois, e que é a mesma, ou semelhante, à do espectador, sujeito e objeto (o verdadeiro, não o falso, a real família), enfim, a exata função da Arte, a relação do homem com seus medos, inadaptações, seus arquétipos com outro(s) homem(ns).

Enfim, a comunicação entre os homens no plano do simbólico, a única possível.

Desconfio, que, ironicamente, a tela do casal real sequer tenha sido pintada, prefiro gostosamente pensar que não. Mas como terá feito o pintor para escapar à desconfiança e à provável ira do soberano?

Simples, desta vez a destreza não se deu com pincel e tintas, mas com a palavra, e mais uma vez com a razão e a inteligência: Velásquez justificou o, digamos assim, "desvio temático", fazendo uma "surpresa" aos reis: denominou a tela de... "As Meninas", numa singela homenagem à "linda" filhinha, a infanta, aquela que, aparentemente, e, como vimos, apenas aparentemente, é a protagonista, em mais um jogo de espelhos e ilusões que, além de enganar seus patrocinadores - papá e mamã devem ter adorado - vem enganando, até hoje, ao longo de quatro séculos, muita gente boa e muito olhar supostamente acurado.


[i] FOUCAULT, Michel – “Las Meninas”, in “As Palavras e as Coisas – Uma arqueologia das ciências humanas” – Livraria Martins Fontes Editora ltda – tradução António Ramos Rosa – pg 17

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