sexta-feira, 10 de maio de 2019

O ELOGIO DA ESTUPIDEZ




A BESTA QUALIFICADA

“Venhamos ao principal. Uma vez entrado na carreira, deves pôr todo o cuidado nas ideias que houveres de nutrir para uso alheio e próprio. O melhor será não as ter absolutamente; coisa que entenderás bem”.
Teoria do Medalhão – Machado de Assis


Curioso animal, nascido em meu tempo,
na mesma e cruel geografia, faz barulho,
que demais zurra o burro inconformado.

Embora não pense, ou pense muito mal
é um animal que deita falação, a besta
qualificada não se acha tão besta assim

O consultório dessa graduada mula - sim,
essa besta é quase sempre um doutor -
tem paredes cobertas por títulos e flâmulas.

Por exemplo, há a besta jurista, de gravata
ou de toga e a retórica de babosa, ela crê
que ombreia um Pontes, Hungria, Barbosa

Esta espécie, além dos títulos, e do ridículo
“ombreia”, deleita-a os diplomas honoríficos;
medalhas eméritas brilham sobre as faixas,

Que a besta qualificada adora uma faixa,
descerra placas inaugura salas nominadas
discursos iluminados por anéis de adjetivos

Que ditam os cursos de suas vidas ridículas,
graduada besta curvada ao peso de metais
comendas e condados, transes quase sexuais

Porém o seu maior sonho é tornar-se barão,
e pode ser título comprado em algum balcão,
mas com as armas assinaladas e um brasão!

Mas a besta disfarça e se finge de modesta,
diz que bem se contentaria com um ducado
desde que ela visse o seu título pendurado.

Se médica - a besta não tem gênero definido
qualquer um lhe serve - vê o corpo humano
como um motor grimpado, um amontoado

De exames e radiografias, isso é o máximo
que vislumbra no Homem, embora Cristã,
vê seus pacientes como imagens sem alma.

Se engenheiro, ela só vê ferros e concreto
à sua frente, sua essência, sua vida e credo.
Um homem teimoso passa em seus viadutos

Mas é mero acidente, a besta nele só repara
quando desaba, os corpos e ferros retorcidos
destroçando o tédio dos domingos em família

Que crê ameaçada pela devassidão da poesia.
Irritada a besta brada: como atrapalha a gente
que cisma aleijar-se entre os destroços da tarde!

A casa da besta, repare, é um vazio de livros,
a ignorância branco-neve cegando os olhos,
embora qualificada a besta pouco enxerga

Mas a besta é vária, psicóloga, antropóloga,
ou socióloga, seu logos é sempre invariável:
ela e um deus dotado de grande ignorância

Por isso a besta só concebe cores sólidas,
amarelo, verde ou vermelho, um monótono
antiprisma cego que nada vê entre nuances.

Odeia pretos, árabes e latinos, são todos
como ela, por isso os detesta entredentes,
a merda é que a besta elege presidentes

Seu movimento brusco é bruto: esquerda,
direita, esquerda, dentro, nenhum conflito
e a certeza absoluta que não existe centro

A besta qualificada não pensa, coisa chata!
Prefere a religião, a ideologia, por isso ela
ama golpes e utopias, as falsas revoluções

Onde ela, besta, em ordem unida marchará
sem precisar raciocinar, pois mesmo qualificada
é e será sempre e eternamente a mesma besta:

Espécie de homem em besta metamorfoseada,
uma quadrada besta, embora muito qualificada.


















O IDIOTA DIPLOMADO(ou o imbecil especializado)

Para Deborah Andersen (ou Vitória Petersen)

A besta qualificada, amigos, é fenômeno mundial
na Alemanha, por exemplo, me conta uma amiga,
chamam “fachidiot”. De antolhos, finge-se racional

Mas, em todo planeta é sempre a mesma besta
quadrada, sempre igual, esse qualificado animal.


Do livro SODA CÁUSTICA SODA – Excertos de Contrapontos: Soda Cínica Cicuta II - (Poesia Incorreta e Levemente Satírica). Em breve.

                                                      

Ilustrações - Goya - "Los Caprichos"


AS CATEDRAIS DA ESTUPIDEZ 


I - O BOÇAL FLAMEJANTE

Na construção do sensível séculos se foram
pedra pesadamente pedra sobre o sangue
das mãos que inventaram a música do azul,
que hoje nas esferas verbera e desaparece
já desesperada da flamejante fé no homem.

A boçalidade é breve, confunde o flamejante,
arde seu desprezo na reconstrução do Nada,
até consumar-nos cinzas esferas de silêncio,
seu tempo todos consome cega em segundos.
Assim meu século, meu país. Assim o Homem.

                                                           Assim o mundo.




















II - PEDRA 

O boçal só tem da pedra a certeza
por isso não percebe a sua leveza

Não vê da pedra a beleza, tão dura!
diz, e não consegue ver sua tecitura.

Burro, a supõe surda, a sente fria
obtuso, não ouve a sua harmonia

No espaço vê fugir fumaça e fuligem,
a cena não causa horror ou vertigem.

Sobem aos céus espíritos e fantasmas
sua burrice contagia o ar de miasmas.

Bruxas, mouros, corcundas. Consumação
nas chamas de outra rediviva Inquisição

Reconstruí-la? Para que tanto desperdício?
Escreve nos autos de um novo Santo Ofício

Ele pensa que a pedra é opaca, o babaca,
mas no fogo, o brilho da pedra que o apaga.





O TRIUNFO DA MORTE

Desenhamos seu rosto desde a idade da pedra
escrevendo seu nome entre os signos do Nada.
Porém, maior foi seu triunfo quando fomos trevas
ceifando com sua foice e sua face sem palavras.

Em cada época ela recria novas lepras e lâminas,
nova anima se transforma em círculos de silêncio,
se espalha, até recompor a sua face única imutável,
presente nas mil almas desenhadas pelo inevitável.

Em meu tempo traz os olhos baços da boçalidade
refez-se eterna novamente, grita convicta estultices.
É o Triunfo da Morte numa Idade ainda sem nome
pois não existe pior forma de morte que a burrice.





A RESISTÊNCIA DO GALO
                       
                   A João Cabral de Mello Neto

Ante eles, o sol em pânico estanca
de pavor e se recusa a trazer o dia,
mas um galo agônico insiste, canta
na paralisia da manhã nossa agonia.

Um canto entre desespero e espanto:
“Sempre foram tantos, porém levavam
em silêncio o peso da canga da estupidez,
cupidez contida pelos bridões da timidez,

Agora, eles esbravejam, decretam éditos
e celebram inéditos contratos: compram,
para o cultivo do breu, tropas de muares.
Temo que a noite teime em perpetuar-se.

Eles gritam abafam meu canto de galo,
ocultam os cantos e os cânticos solares.
Que é em silêncio que o burro se ceva
orgulho estúpido de permanecer treva.

Mas prometo, dou minha palavra de galo,
mesmo sendo pouco mais do que alguns
nós trazemos no sangue o que não calo,
essa ancestral herança de sermos galos:

o dia. Somos nós os galos que insistem
trazer, entre os miasmas da ignorância,
a manhã, ou algum resto de esperança
de nascer, talvez na poesia, uma réstia

de lucidez e sol”. Ele surge, (ele Prometeu),
estropiado pelas águias, musas da escuridão,
meio à vermelhidão de seu sangue e do sol,
galo ferido, vitorioso vem cantar sua euforia.

No bico partido traz o fogo.
                                                         E esperança do dia.






O COLECIONADOR DE PALAVRAS


                     Tristesse que ma production reste à ceux-ci, par essence, comme les nuages au crépuscule ou les étoiles, vaine. 
                     Mallarmé - Divagations – La Gloire – 1897
                     
                      Tristeza que, aos olhos dos outros, minha obra é, em essência, o que são as nuvens no crepúsculo e as estrelas: inúteis.

                     Mallarmé – Divagações – A Glória – 1897

Me tens por um inútil crepúsculo,
ilhas a serem violadas, frescuras
da natureza, o verde que odeias.
Medo de serem os meus versos,
armadilhas de uma trilha escura.

Mesmo inútil, se me conhecesses,
me fuzilarias, pois tens por mim
secreto horror. Mas não me lês,
sorte a minha! Nem como alvo
tenho serventia. Porém te peço,

se me caçares, a última vontade
concedas, vista-me esta mortalha
de minha poesia colhida do acaso,
mas não cuspa sobre meu corpo
acaso a leres. Sorte estar a salvo

dos teus ódios, pois vi, animália,
os dois antolhos que te adornam.
Cego a metáforas, surdo a rimas
que uivam angústias nos lobos
vazios do teu cérebro, estúpida

alcateia. Lobos dos meus versos
uivam para luas inúteis no vácuo
do teu sorriso estático de lagarto.
Te homenageio sem riscos, risco
mínimo desta coleção de palavras.

Pois à moda de Rimbaud, coleciono
palavras. “Rom?!” Perdão, poeta era,
tinha uma congérie de signos colhidos
nas ruas, dicionários, lixo de casas
como a tua, baldias palavras mortas,

que tu jogas fora, sem uso imediato.
Preferes, sei, tua coleção de armas.
Mas explicarei, mesmo antevendo
espanto, para que servem os versos.
Ensinarei que a utilidade do canto,

é justamente a sua total inutilidade,
flutuar no absoluto “ritmo dissoluto”.
(O vício deletério da poesia me leva
a uma descuidada citação: Bandeira,
outro poeta). Mas Rimbaud, eu dizia,

não era pornografia, como te sugeriu
o súbito som do nome dito de supetão.
Tua concupiscência que te faz assim,
obsceno caricato. Aliás, não sabes?
Como tu, eu também sou um obsceno.

Porém, veja quão rica minha coleção!
Obscenos somos dois, mas em sentido
diverso; disse um dia num antigo verso,
atirado no lixo onde guardo em segredo
poemas rejeitados rimas sem serventia:

Obsceno és, ob cena, à imunda pocilga
guiando, meu horror, infortúnio e sina!
Obsceno sou, ob scenus, fora da cena
do palco deste mundo, onde tu e os teus
chafurdam na merda em mares de urina.

Tua obscenidade não se esgota em ti,
repara, teu rosto, teu nariz, teu sorriso,
cubra-se já! Não se exibem em público!
Talvez te caia bem a tarja preta na face
tarja que com gosto acenas e ameaças.

Obscenos dedos no orifício das armas,
obsceno o ofício de teus falos de ferro,
que te comprazem em obscenos gestos.
És todo pornografia! Não os jovens nus,
que tanto te irritam, tão lindos. Lembram

o tímido que fostes, o ressentido que és?
Me oculto entre os signos, que tu deles
pouco sabes, e, sem que me entendas,
defino-te, para tal se prestam palavras:
"Campânula nos campanários do nada!

Hirsuto bardo, brado vitupérios, ribombam
nos teus filauciosos e frívolos neurônios,
merecessem o epíteto, sem sinapses são.
Quem dera teu cérebro um palimpsesto,
que aceitasse num incesto estes versos.

Mas mal suporta uma primeva escritura,
que dirá um papiro de ancestral tecitura?
Cuntatório cérebro, uma só frase o tortura!
Melhor que eu esqueça os verbetes inúteis,
essas palavras tão belas quanto obscuras.

De nada me servirá o nada a que chamas
cérebro, nada imprestável com o qual vieste
ao mundo. E como tenho a sorte que jamais
me lerás, que guardo minha coleção, nada
te servirão palavras, verbetes ou versos.

Não desperdiçarei contigo meu repertório,
serei simples, como o rancho do teu bornal
serei direto, como direta a bala do teu fuzil:
Nada mais és do que o mais perfeito boçal.
Sem rodeios: tu não passas de um imbecil!



   







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