terça-feira, 20 de agosto de 2019

A CIRCULARIDADE DE UM “DEUS DOS OCEANOS” – despretensiosos devaneios sobre dois livros de André Caramuru Aubert. Uma leitura possível.

    “Prospecção”.

    O substantivo me soou um pouco forçado, entretanto, não será de todo equivocado, para definir o desejo que nos provoca a poesia de André. Afinal, ela exige que, cuidadosamente, ou nos escapará algum veio, retiremos as várias camadas que a protegem, na busca de uma essência oculta. Tarefa aparentemente inexistente, para a leitura preguiçosa (ou ignorante). E, por preguiçosa, equivocada.

    É quase uma regra da boa literatura (e de toda forma de arte), que ocorra o descerrar das várias camadas do texto - o tema, no caso da poesia; o enredo, no caso do romance -, embora não imprescindível. Tanto o tema, quanto o enredo, textos, se prestam à delimitação de um “suporte”, onde o leitor se porá confortável, e o autor poderá prosseguir, com mais liberdade, na busca das questões internas do texto (subtexto) e da estética. Certo romancista mineiro, com tive muita intimidade, brincava que “o enredo é um modo de distrair o leitor para lhe bater a carteira”.

    Aqueles que dominam a técnica, apenas aparentemente convidam a uma leitura mais fácil, todavia, desde logo nos indicam a chave do mistério (“trouxeste a chave?”), convidando-nos aos subterrâneos, nosso e do poeta, à “Memória do Subsolo”. À prospecção.

    Estaria insinuando que a poesia de Caramuru é impenetrável? Nada mais distante e nem equivocado. Os dois livros que li (“Outubro / Dezembro” e “Se - o que eu vi”, ambos publicados pela Editora Patuá, e aqui não escondo o orgulho de sermos colegas) são livros que, se permitem a leitura desavisada, distraída, e quase disse irresponsável (na verdade, como evitá-las? Não escolhemos leitores, o que é ótimo!), também permitem que o leitor mais exigente deles se aproxime, embora, repise-se, o preguiçoso, para ficarmos na definição por mim utilizada no início, possa se iludir de ter, de plano, encontrado o que procura no nível da superfície. Nenhum demérito, apenas terá perdido o essencial.

    Também é fácil perceber que o poeta sobre o qual me proponho escrever gosta e conhece poesia, e escreve para quem conhece (e gosta) de poesia, sem, contudo, afastar o leitor comum, por definição menos exigente. Isso não se reflete apenas nas epígrafes bem escolhidas, mas também nas referências sutis.

    Caramuru conhece a técnica, e a domina, e a usa a serviço do poema, não ao contrário, o que fica bem claro no uso do “cavalgamento”, das rimas internas e externas, dos finais precisos e definitivos, arrematando o poema. Mas o poeta também se permite saudabilíssimos experimentos formais, como o uso das minúsculas e o verso (nem tão) livre, jamais gratuito, pois é liberdade contida pelo ritmo (na página 92, de “outubro / dezembro”, há um poema sem título que exemplifica bem isso).

    E “contenção” é palavra precisa. O uso da técnica, da forma, me parece indicar, e a proximidade cronológica me impede de afirmar isso com certeza, uma tendência que venho notando nos livros de poetas meus contemporâneos (dos quais, esclareça-se, não sou leitor voraz, questão de tempo, mais do que qualquer outra) uma anteposição à diluição – muitas vezes excessiva e sem qualquer critério - verificada no século passado em todas as artes, pois tenho notado uma necessária contenção apolínea ao impulso dionisíaco. Estou escrevendo um ensaio sobre isso, a tensão necessária entre Apolo e Dioniso na arte, e lá introduzo a ideia de Orfeu nessa urgente dicotomia, para tentar escapar da dionisíaca dicotomia nietchzeniana - e não creio em arte sem tensão - entretanto, como todo ensaio que escrevo, o faço sem urgência e sem veleidades acadêmicas, daí chama-los “devaneios”, apenas sigo a lição que aprendi com o poeta argentino Macedónio Fernandez (se não o conhece, amigo, vale conhecê-lo): os escrevo para me ajudar a pensar, exatamente o mesmo motivo pelo qual faço estas modestas resenhas, para a ajudar-me a “prospectar” determinados autores sobre os quais me interessei, refletindo com mais vagar, neste tempo de insana pressa. Talvez, os monopolistas da crítica, que querem, inutilmente, vedar aos poetas escrevê-las, por não perceberem que são leituras absolutamente distintas, me torçam o cenho: “Impressionista!” Sim, o sou, no pior e no melhor sentido da palavra, convicto.

    Digressão à parte, dois eixos me parecem indicar um caminho para desvendar a poesia de Caramuru, ambos presentes nos dois livros que li, embora, num e noutro, alternando-se com intensidade diversa.

    Em “outubro/dezembro”, por exemplo, sejamos cronológicos, o “eixo definidor” é o uso, na medida certa, da contenção pela quase ironia, na tangente com o patético, e tangenciar também é tencionar.

    Muitas vezes o poeta revela-se angustiadamente melancólico (“e eu não sei / se tive uma infância feliz ou triste / solitária, ela foi”), mas, irônico, evita a autopiedade. Entretanto, e como não poderia ser de outra forma, a tão certa quanto inesperada visita da “Indesejada da Gentes” – presença marcante em ambos os livros - alguma vez chega violenta, descarnada, levando aqueles que amamos. Nesse caso, não há, claro, como escapar da tragédia da perda definitiva, e a ironia se recolhe um pouco, cedendo espaço a uma dor essencial, embora permaneça à espreita, nas mãos do autor vigiando o verso, fazendo-se presente, quando necessário. É que a Indesejada tem, na vida como na poesia, várias faces, e algumas vezes reveste-se também de irônica tristeza e da patética constatação de sua constante e cortante presença.

    Há tristeza recorrente nas palavras, angústia e melancolia quase sempre perpassam os poemas, todavia, quando trata do amor elas, as palavras, se permitem tocar o patético – e tão patético quanto o amor não acontecido (“eu deveria ter dito / que os seus olhos castanhos / resumem, neles, tudo o que há no Universo (...) mas eu não disse / (talvez por ser tímido, ou por acreditar que a frase sairia forçada e artificial) / e o momento passou.” – poema – página 38) é o que melancolicamente finda (“fugaz é vida. fugaz é o tempo. você entendeu? / você entendeu, meu amor, que eu estou de saída?” – fugaz, página 99).

    Também quando é metalinguagem o poeta conserva a mão firme da quase ironia: “ah, eu queria tanta coisa! nada disso, porém, eu consigo; limitado / que sou, só faço poemas sobre meus fantasmas, e os danados / teimam em ser simples, concisos, piegas e até (fazer o quê) meio / sem graça” – Autocrítica. E o poeta aqui sabe que mentiu).

    É técnica difícil, por perigosa, há sempre o risco de perder a mão e o poema desandar, mas André sabe reter a pena com habilidade. Salvo melhor juízo que não o deste modestíssimo poeta que aqui devaneia, esse “eixo” está mais presente em “Outubro / Dezembro” do que em “Se - o que eu vi”, embora deixe seus rastros nos dois livros.

    Como disse, a morte é presença que perpassa as duas leituras, e aqui sei que piso terreno minado, perigosíssimo, chego a pensar se a ênfase com que o destaco não decorre de alguma identidade mórbida de minha parte, e ensaiar uma desistência. Nada a estranhar, contudo, pois a “Indesejável das Gentes” atravessa nossas vidas com a avassaladora violência de sua presença e sua terrível ausência de significado, que jamais alcançaremos.

    Entretanto, a Indesejada mostra, em “outubro / dezembro”, uma face de quase revolta, que não podemos conter, mas que inevitavelmente se revelará inútil, pois sempre nos frustrará. A frustração de jamais falarmos “tudo” para aqueles que um dia amamos, porque sempre restará o indizível, o que nos era impossível dizer, talvez por medo, o que a vida nos calou e nos causa esse imenso arrependimento do não dito: “meu pai: você chegou a gostar de seus filhos? / de você mesmo? / de alguém? / ou tudo não passou, o tempo todo, de medo, / de insegurança, / de uma profunda, e gigantesca solidão?” (página 27).

    E aqui me calo, respiro, e espero um pouco para prosseguir.

                                                    ...

“SE – O QUE EU VI”

                     tristeza, tristeza, tristeza. dor.
                                 DOR – “Se – O que eu Vi”

     cada homem um noé desesperado, pois não havia arcas,
     não havia socorro, não havia nada que pudesse ajudar
     (...) um louco tropel de animais e homens. tudo
     isso eu vi. tudo isso.

                                  O QUE EU VI - “Se – O que eu Vi”


    Talvez eu devesse mudar de assunto e falar da técnica estupefaciente de “Sobre as Cidades e o Tempo”. André, nesse poema, parte de uma epígrafe de melancólico pessimismo, de Kenneth Rexroth, para, paulatinamente, a mão firme, transformá-la (pela memória afetiva?) num – também melancólico – “otimismo” (“trouxeste a chave?”): “os anos / passaram, que tudo mudou, que as pessoas se foram, mas / dizendo (por outro lado) que será novamente primavera” (página 33).

    Talvez devesse me desviar e mostrar o interessante contraponto entre a crueldade “titânica” da memória - e se de Apolo e Dioniso falamos, fiquemos nos mitos poéticos: Mnemósine - causadora da angústia revivida: “o medo da escola, o medo do médico, o medo / eu sentia muito medo” (página 17, de “Outubro / Dezembro, um exemplo preciso de “cavalgamento”); em contrapondo com o quase patético da avó segurando um “pedaço’ - cruel pedaço, e o aposto adjetivado é meu, André a isso não cederia – ‘do jornal do dia, que não lê, e / com a outra tenta segurar o tempo (...), mas não consegue” (Tempo I).

    Como bem destacado no prefácio de Alberto Bresciani, em “Outubro / Dezembro”, “o verbo lembrar e as memórias assumem protagonismo”, todavia, a necessária “pessoalidade” do lembrado também pode ser uma armadilha perigosa, dionisíaca, que chama pela contenção apolínea, que a técnica precisa de André toma nas mãos e evita, e mesmo quando a tristeza e a melancolia vencem, o patético inteligentemente se oculta num lirismo que, de certa forma, o revela: “(você está vendo?) mais um domingo de nossas vidas vai se esvaindo / por entre nossos dedos, se esvaindo.”

    Talvez devesse deter-me nas imagens que relampeiam poemas afora... mas como fugir das múltiplas faces (máscaras?) com que a Indesejada se apresenta na poesia de André? Então deixo, ainda que com medo, que o assunto retorne ao meu devaneio.

    Se a morte daqueles que não conhecemos (“eles”) ainda nos permite algum distanciamento (“ah, todo verão é assim, eles comem muito, eles / bebem muito, eles se preparam para serem / dados, em sacrifício, felizes, a algum deus dos oceanos”); ou se, mesmo um pouco mais próxima, nos concede alguma fina ironia (“agora, não é, tia lily?, // nesta tarde muito quente, / neste velório, / neste cemitério”); quando nos tira aqueles que mais amamos, não há como evitar suas faces cheias de cicatrizes, e ela se apresentará em toda sua violência. Até a violência final e coletiva, apocalíptica, o dilúvio escatológico do último poema.

    E parece que o poeta quer nos preparar para o tema, pois, primeiro, como já enunciado, ele nos falará da morte daquele que nos é estranho, alheio, morte desprovida de dor, ainda que vestida de espanto. Só depois e que tocará a dolorosa partida de um amigo, em “Sonho com o Naum”, até nos destruir no relato da tragédia que é a morte de um pai.

    Por vezes vem com cortante ironia - e por que não? se tantas vezes, como disse, a presença da morte é irônica (“o efeito dominó: a falência dos / pulmões, insuficiência do coração, tudo / no organismo parando, tudo estragado. / havia, pelo menos, a janela estreita. / e além dela o céu, o sol da tarde, / a copa do pau-brasil. e dependurada / na parede na frente da cama, a tv” – Nos últimos dias de meu pai” – página 38/39) - mas depois se revelará cruel, cruel demais, crua: “a pior parte (uma das piores partes, / pelo menos) é abrir os armários” (“As Roupas”). Até culminar com a morte do próprio Homem, na escatologia do diluviano poema que arremata o livro.

    E já passa da hora de enunciar o “eixo” imaginário de “Se – o que eu vi”, o que eu, leitor, vi, e que talvez nos salve:

    É o “retorno” a que nos obrigam alguns poemas, (quase) nos aprisionando, seja pela condução da forma circular, seja pelo tema, que nos impede, como um “Angel Exterminador” – e quem assistiu ao filme do Buñuel sabe o que quero dizer – de “abandonar”, isso possível, determinados poemas, para seguirmos adiante. Labiríntica prisão.

    No primeiro poema de “Se – o que eu vi”, um poema curto, mas de extenso labirinto, exatamente “Se”, o seu título, ficamos lendo em círculos, borgeanamente, sempre voltando ao primeiro verso, entre o fascínio e o incômodo.

    Mas será no último poema desse livro que a chave se revelará por inteiro, a razão de ser do nome do livro - e a capa, ressalte-se, é de rara felicidade, na solução da trama que nos envolve, envolveu e continuará nos envolvendo. Qual trama será essa?

    E o leitor deste devaneio já se pergunta, entre o desconfiado e o irritado: mas se a progressão do “Triunfo da Morte, para remeter às homônimas pintura de Bruegel e poesia de Petrarca; iniciando na morte vulgar de um desconhecido, nos fazendo sofrer com a perda de um amigo, nos dilacerando na fatal ausência de um pai, até chegar no dilúvio final sem arca que nos socorra imaginado pelo poeta, e você vem falar em “salvação”? Que salvação pode haver num pós-dilúvio sem Deus?

    Não pare aqui, caro, ou pare, e vá ler o livro. Afinal, o que nos salvará?

    Não serei eu a revelar o mistério, deixo que o leitor compre o livro e o solucione, mas uma pista pode ser dada: a forma e a precisa técnica de André, às quais me referi no início desta minha leitura a seu tanto delirante (há outra forma de ler poesia?), elas nos salvarão do “Triunfo da Morte”.

    Se a Indesejada das Gentes é presença perturbadora na poesia de André, e está igualmente nos dois livros, ora como lirismo, ora como dor e angústia, ora como escatologia, a circularidade dos versos, dos poemas, sempre nos fará retornar ao início, do poema, quando isoladamente considerados; ou do livro, ao fecharmos a última página.

    E o que pode significar isso, que metáfora se ocultaria nesses círculos, nessas espirais que nos aprisionam?

    A poesia.

    A poesia que sempre nos remeterá à vida, metáfora maior e mais ampla, e que triunfará, com seu mistério, sobre a morte (mesmo quando vestida com seu pior traje, como hoje: a burrice, a boçalidade).

    Vida. Seja como memória, seja como dor, seja como urgência.

    Poesia.




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