terça-feira, 10 de dezembro de 2013

AS SEREIAS: DE ULISSES AO SAMBA DE RAIZ, OU VICE-VERSA – UMA IDENTIDADE

Este ensaio é apenas um pequeno trecho de um livro em andamento, no qual procuro pensar algumas questões sobre Arte Popular, Arte Erudita e Folclore, diferençando-os e estabelecendo pontos de contato, e inserindo novamente essas questões, sob outro enfoque, claro, em nossa nova realidade, a chamada era da informação.  
No ponto exato em que este trecho está, venho de discutir essas diferentes formas de manifestação da arte, que variam de acordo com a formação do artista, consequencia também, dentre outros aspectos personalíssimos e sociais, do grau de democratização da cultura e da educação formal de determinado país, um a depender do outro, sem dúvida.
Mas o fato é que quase sempre, ou sempre, nessas manifestações repercutirão relações arquetípicas, mais ou menos elípticas.

Não cabe aqui adiantar um resumo do livro, sequer está pronto, longe disso, nem mesmo se trata de uma amostra, também a isso absolutamente não se presta, apenas faço esta observação para o caso do leitor sentir alguma lacuna.
Esse leitor terá que aguardar o livro, demorará um pouco, mas fica daqui um trecho relativamente independente, assim como o foi o ensaio sobre “As Meninas”, de Velásquez, que, se o leitor que ainda não conhece, ou, caso o conheça, pretenda revisitá-lo, poderá encontrar aqui, em postagem anterior.

Ambos pertencem ao mesmo livro, quem sabe não lhe aguçam o apetite?

AS SEREIAS: DE ULISSES AO SAMBA DE RAIZ, OU VICE-VERSA – UMA IDENTIDADE

Tomaremos como fio condutor o mito das sereias, porque por elas fomos também seduzidos.
Tal mito, símbolo arquetípico de um sentimento (fundante) anterior - a sedução, o amor desmedido, o canto que atrai aos abismos - tem seduzido, além de suas personagens, a humanidade, sendo talvez o mito, com suas variantes, mais fascinante e invariavelmente presente nas mais diversas civilizações e povos. 


Porque tanto fascínio?
Annie Lermant-Parès nos afirma: “Elas constituem um desses exemplos mitológicos que todos nós conhecemos e que tendem a cristalizar-se como topos retórico (...). O mito das sereias, para quem estuda seu conteúdo e suas formas de expressão artística na Antiguidade, mostra logo uma terrível complexidade. A própria figura das Sereias apresenta-se como um enigma: além de uma evolução de acordo com o gosto dos séculos e dos autores, já considerável mas familiar ao mitólogo, ela passa por uma transformação radical e definitiva ao perder sua forma inicial de mulher-pássaro para tornar-se mulher-peixe, a única Sereia que conhecemos até hoje” (1).
Acrescentamos: eis a sedução (musical e navegante e marinheira) do amor aliada ao medo dos seres infernais, o daemon.
Eros e Thanatos,  
   Ainda que fascinante o texto, o espanto diante da metamorfose de pássaro em peixe não se justifica, ou ao menos não nos assombra, se é que espanto houve. Afinal, pássaro ou peixe, sendo metade mulher, impõe ao homem o medo de voar ou o mistério dos oceanos, e a impossibilidade física do amor; o vôo sem rumo do amor e a lubricidade úmida das grutas marítimas; para, ao fim, pássaro ou peixe, nos devorar, encantados com o canto de sua sedução.
Prossegue ela: “(...) as Sereias pertencem ao mesmo tempo ao mundo subterrâneo dos Infernos, ao mundo celeste da música e ao universo marinho dos navegadores”.
Acrescentamos: eis a sedução (musical e navegante e marinheira) planadora acima do patriarca - que, como veremos, Ulisses tentará reafirmar - do macho que não resistirá aos seus encantos, a voz perigosa do amor aliada ao medo dos seres “infernais e perversos”. 
O mar, o movimento das ondas, sem dúvidas ritmo tradutor da sensualidade, subindo e descendo aos abismos da pélvis, pode ser bem notado nesta passagem dos Argonautas, de Apolônio de Rodes:

“Este homem corria também sobre as ondas do mar
azulado, e sem submergir os pés ágeis, mas, quando molhava
apenas as extremidades, era levado pela rota úmida”.
                                       
(Grifamos)

Era levado pela rota úmida”, a rota da sedução, e talvez encontre as irresistíveis sereias.
Importante notar, no mito de Jasão, que seria preciso que os Argonautas vencessem o mar, onde habitam as sereias, para alcançarem o “Velocino de Ouro”, que lhe daria o poder, mas o poder essencialmente masculino, e entre seus perigos, tiveram de enfrentar os dois rochedos que se abriam e fechavam-se, a reação da terra, da deusa Gaia, da mãe. Da fêmea.
Mas, voltemos às sereias e a Ulisses.
O interessante é que Ulisses resiste, e, ao final, “derrota” as sereias, com seu estratagema de colocar cera nos ouvidos dos marujos e acorrentar-se ao mastro (o que torna relativa a sua “vitória” sobre o feminino, eis que sabia que não resistiria).
De toda sorte, as sereias “fracassam” frente a Ulisses, e seus nautas se salvam da tentação/sedução da música/fêmea, o que proporcionou inúmeras interpretações, seja históricas, literárias, psíquicas, todas simbólicas, claro (Junito Brandão e outros).
Humildemente, sem invalidar, por óbvio nenhuma delas, não temos tal veleidade, nos seduz – termo apropriado - tentar uma leitura mais poética, afinal, de um poema tratamos, trazendo-o para nosso assunto.
Tal leitura nos conduziria a que, ao menos em Homero, a vitória de Ulisses representaria também a vitória não só do homem, como símbolo do patriarcado ascendente, numa interpretação histórica, mas também a do artista (Homero/Ulisses) sobre os arquétipos acima mencionados, sempre amedrontadores: o domínio apolíneo, pelo manejo da estética e da inteligência, sobre os medos e sentimentos fundantes, como vimos antes, tais como amor, morte, liberdade e outros, a apreensão de sentimentos ancestrais (arquetípicos) pelo símbolo e pelo signo, domando-os, afinal, pretensão de todo artista em sua arte (2).
       E, não por acaso, grande parte da representação iconográfica enfatiza essa “derrota” das sereias, mais do que a qualquer outro dado histórico, fazendo alusão, como na belíssima cerâmica de Vulci, cidade etrusca perto de Roma, exposta no British Museum, ao um “suicídio” das sedutoras e derrotadas sereias (3). 

Nessa passagem, aproveitando-se da “erotização” (dionisíaca) presente no mito das sereias e sua força simbólica do “perigo” da sedução, Homero afirma o domínio (apolíneo), pela inteligência e pelas estratégias simbólicas, sobre os medos e riscos dessa sedução e de medos outros.
Aubreton, remetendo a Germain, nos adverte que para, alguns críticos, elas, as sereias, “aparecem como tentadoras que apresentam ao viajante o saber, este conhecimento intuitivo do mundo, que é um mal e pode perder o herói” (4).
Tal nos remeteria à vitória do domínio da técnica sobre o “conhecimento intuitivo”, do rigor do artista sobre o “primitivo”, o “intuitivo”, o “espontaneismo”, tantas vezes fatídico à arte, ou, falando mitologicamente, a vitória do artista apolíneo sobre o criador dionisíaco.
Como nos elucida Paul Diel, em sua belíssima análise do mito de Orfeu – embora tenhamos dela levíssima impressão de desconfiança, pois há casos de dionisíacos geniais, que aqui não cabe citar: “(...) Impelido à criação de imagens sublimemente visionárias, o vigor imaginativo pode tornar-se fragilidade, quando a aspiração sofre a dispersão dionisíaca em lugar da concentração apolínea. O vigor apolíneo, ao invés de sustentar a aspiração criadora, perde-se nas múltiplas seduções da realidade” (5).
Voltaremos a essa nossa interpretação, para concluí-la, mais adiante. 
Retomando nosso rumo, cremos sinceramente que, por arquetípico, a ênfase do erótico no mito foi clara fonte de Homero e lhe era anterior, de toda sorte, permaneceu o mito, dentro do inconsciente coletivo, como arquétipo, mesmo e principalmente nas formas mais populares de cantá-lo, como veremos.
E não foi à toa! Afinal, o mar é ligado umbilicalmente ao amar, pois, como já demonstramos em Apolônio de Rodes, “com seus repuxos de água, formas curvas e peixes e ninfas meio levantadas das águas” está sempre a invocar um inegável e pélvico apelo erótico feminino. Enfim, repita-se, as sereias são recorrentes em qualquer lugar e estágio civilizatório, sempre a simbolizar aquilo que Jung denominou "anima negativa", ou malévola. Ele, Jung, contudo, a trouxe como uma manifestação em um homem determinada pela mãe, se sua influência lhe foi negativa (6).
Enfim, essa "anima" seria o "demônio da morte", a "femme fatale", dos franceses, ou a Rainha da Noite, de Mozart, na "Flauta mágica".
Seja como for, concordando-se ou não com a conclusão, de ser isso uma "projeção" da mãe, impossível negar a sua causa: as sereias são mitos arquetípicos, recorrentes nas civilizações, que aprofundaram como metáfora o poder da sedução, do erotismo e da paixão desmedida.
Particularmente, prefiro crer que a explicação de Jung - quem somos nós? - é redutora, porque prisioneira de “resultados últimos das ciências particulares”, o que, como nos ensinou Unamuno, reduz o espectro da visão do intérprete, e não abarca todas as possibilidades do ser humano, e com isso, vimos, até ele, Jung, concorda.
Preferimos ver a permanência do mito como uma constância de um medo atávico com que o homem, criativamente, logo, artisticamente, representa para afastá-lo. Que medo este?
Do amor, como convite à morte, à destruição.

AS SEREIAS NAS COSTAS BRASILEIRAS

Situadas as sereias universalmente, cabe buscá-las nas costas brasileiras.
Luis da Câmara Cascudo, um tanto irritado, nos traz o mito das sereias como transposto para o Brasil, não sendo, “originariamente” nosso, fosse isso necessário. Segundo ele, o mito nos veio importado da Europa, pois, “o vocabulário Tupi não tinha voz que traduzisse fielmente a sereia”.
Ao que perguntamos: e Iara? Melhor seria se perguntássemos, como faremos: e daí? De todo modo, fica a indagação, e Iara?
Para Cascudo, Gonçalves Dias traduziu o vocábulo Iara através do contrato Ig-Iara, que, ainda segundo o “folclorista” (acostumamo-nos a chamá-lo assim, fica, pois) significaria apenas “senhor”, tendo Couto de Magalhães traduzido o auto de batismo do Príncipe do Grão-Pará para o nheengatu (que coisa! Veremos acerca dessas tentativas, meio ridículas e bastante cruéis, dos portugueses, em especial os Jesuítas, em converter e “sofisticar” nossos índios) vertendo a frase: “no ano de 1875, depois que Nosso Senhor Jesus Cristo nasceu” para “Iané Iára Jesus Cristo Ocêma”. Logo, para Cascudo, Iara sempre foi “senhor”.
Apesar da grandeza de Cascudo, para mim, mito e a tradução de uma missa - embora esta também, em outras situações, floresça no plano mítico – em função do batismo de um príncipe, no caso, não são exatamente assuntos correlatos, pois um se dá no plano fático da afirmação do poder, e outro no plano puramente fantástico ou simbólico. Logo, me parece impossível que um mito e suas inúmeras variantes se formassem a partir daquele burocrático episódio, ainda que não possamos retirar das missas em geral seu caráter mitológico.
Mas Cascudo critica veementemente essa comparação Sereia/Iara, dizendo, aliás, com acerto, que as sereias, em Homero, não eram peixes, mas aves, o que, como vimos, em nada altera a estrutura do mito.
Ora, descartar qualquer comparação entre as sereias conforme as conhecemos no imaginário popular brasileiro, e as de Homero, pelo só fato de não serem “nacionais”, é querer desconhecer - e quanto a isso sequer podemos imaginar, eis que Cascudo era dotado de extrema erudição, e era mitólogo - que os mitos são dinâmicos, são plásticos, e, por isso mesmo, são apropriáveis por culturas diversas; além de o elo de ligação entre eles não se dar no plano fático, histórico, antropológico ou sociológico, ou ao menos não só, mas, repetimos, eminentemente no plano simbólico.
       Como alertou Claude Lévi-Strauss, ao falar de Édipo, todo mito nos chega através de leituras e em “redações fragmentadas”, leituras variadas. E variadas serão as suas representações, a partir de um mesmo arquétipo, independentemente de sua “nacionalidade”. Aliás, muitas vezes essa apropriação sugere uma reafirmação daquela nacionalidade ante o mitologema “invasor”, desde que também represente um anseio de representação daquele povo, numa determinada comunidade e em determinada época.     
Logo, se pretendemos tentar pontos de contato entre as sereias de Ulisses (ou qualquer outra) e as nossas, devemos perceber o elo que as une, e a outros mitos brasileiros e indígenas (ou não), e não asas ou escamas, muito menos os fenótipos que inevitavelmente os separam.
Mas isso irritava Cascudo. Inutilmente, pois cada povo representará o mito como um dos seus, pois mesmo a beleza se altera de um para outro povo, quando por ele apropriadas.
Aliás, devemos lembrar, por curiosidade, que Manuel da Costa Athaíde representava Nossa Senhora como uma matrona mineira, gorda, de lábios grossos, quase mulata. Não se trata de um mito (e disso se trata) “nacional”, mas certamente é uma representação iconográfica apropriante...
                           ...
É inegável que o mito das sereias está prenhe de sensualidade e mistério, que não só a água sugere, como vimos nos Argonautas, mas, a partir da água, a sedução mortal, a sedução do canto feminino na noite, os riscos da beleza e da paixão desmedida, enfim, a “démesure”, a hybris, o erotismo incontido.
O curioso é que o mesmo Cascudo, sempre enfatizando a origem europeia de tudo que se refere às sereias, nos vai remetendo mais e mais ao passado do Brasil. Quando fala da Mãe D'água, por exemplo, afastando qualquer ligação com as sereias, ele nos remete ao mito de Ipupiara, que veremos a seguir.
E, no tocante aos mistérios da água (e da sexualidade), o próprio Cascudo, sem se dar conta da contradição, ou fingindo não se dar, nos remete a vários mitos brasileiros que com eles namoram, e o termo é bem apropriado.
Por exemplo, o Boto, da região amazônica.
Cascudo nos relata que "o boto seduz as moças ribeirinhas aos principais afluentes do rio Amazonas e é o pai de todos os filhos de responsabilidade desconhecida. Nas primeiras horas da noite transforma-se num bonito rapaz, alto, branco (como as sereias, e aqui vemos novamente a desconfiança de Cascudo) forte, grande dançador e bebedor".
Cita Cascudo que Henry Bates, por volta de 1848, após ficar onze anos na região amazônica, relata que o boto "tinha o hábito de assumir a forma de uma bela mulher, com os cabelos pendentes até os joelhos", que encaminhava os moços até ao rio e "segurava a vítima pela cintura e a mergulhava nas ondas com um grito de triunfo".
Cascudo relembra a tradição clássica do boto "em assuntos amorosos" desde a Grécia até a tradição chilena, como os delfins consagrado a Vênus, sempre enfatizando não serem todos de nossa tradição.
Entretanto, surpresa, cede ao falar de Ipupiara, relatado por Fernão Cardim, que "matava, abraçando, e comia ao cadáver apenas os olhos, narizes, extremidades de pés e mãos e as genitálias", curiosamente órgãos ligados aos sentidos, à sexualidade, e reconhece, enfim! ser um mito originário.
Ipupiara, "que habita no fundo das águas", pode, antropomorficamente, tomar forma masculina ou feminina, mas que "as fêmeas parecem mulheres, têm cabelos compridos e são formosas... O modo que têm para matar é: “abraçam-se com a pessoa, tão fortemente, beijando-a e apertando consigo que a deixam toda em pedaços".
Tanto o boto quanto Ipupiara sofrem essa metamorfose contínua e hermafrodita, macho e fêmea em constante mutação, o que comprova o que acima dissemos sobre o caráter plástico, mutante, dos mitos.
Finalmente, em Ipupiara, Cascudo reconhece um mito originário indígena, como se isso fosse necessário, pois, originário ou não, todo mito que trata do mistério das águas sempre nos remeterá aos riscos da sedução e da paixão, feminina ou masculina.
Devemos tentar compreender a irritação patente de Cascudo com as sereias, por serem "made in europe" – e a expressão é dele - como manifestação de seu nacionalismo extremado, ademais de integralista, vivendo num período de forte tentativa de afirmação nacional.
Mas o fato é que não importa como o mito se funda e funde-se em e com determinada sociedade, se originário ou não, qual a importância disso? Deve-se, sobretudo, atentar como essa mesma sociedade o elabora, e, inegavelmente, qualquer mito ligado à sereia, mais do que isso, à água, está úmido de sexualidade.
O curioso é que, dentro dessa negação da "brasilidade", chamemos assim, das sereias, louras ou não, de olhos azuis ou metamorfoseada em cafuza, Cascudo nos fornece uma explicação para a introdução do mito no Brasil que nos interessa. E muito.

GRÉCIA, SIBÉRIA, ÁFRICA OU BRASIL, UM SÓ CANTO DAS VÁRIAS SEREIAS.

Como vimos, Cascudo, critica ferreamente Gonçalves Dias, por ter tentado dar uma origem tupi ao vocábulo Iara, contrato, segundo ele, Gonçalves, de Ig-Iára, água senhor. Também critica José de Alencar pela sua “sereia crismada indígena” em o “Tronco do Ipê”.
Ele então conclui ser tudo isso um “processo comum de convergência, tendo como época o século XIX. Para ajudar a expansão, o culto da orixá sudanesa Iemanjá fê-la apresentar-se como sereia, e assim a encontramos nos Pejis, feitas em biscuit ou gesso, branca, olho azul e loura” (7) (sublinhamos).
Assim é que, segundo ele, o mito chegou até nós pela África amoldando-se, via Europa, ao mito grego. Veremos um exemplo belíssimo dessa origem africana no samba “A Sereia Guiomar”, de dona Ivone Lara, abaixo transcrito e audível.
Antes, porém, a título de ilustração, vejamos outras duas diferentes manifestações do mito da sereia, além da de Dona Ivone Lara, uma trazida pelo povo siberiano, mencionada por Jung, que, embora não se reporte exatamente a uma sereia, guarda com esta a mesma relação água/sedução/risco; outra é, como não poderia deixar de ser, a própria passagem de Odisseu pela Ilha de Circe, ambas fundir-se-ão à sereia de Dona Ivone, formando uma elegantíssima tríade.
Todos, invariavelmente todos - e muitos, quase infinitos outros exemplos poderiam ser ainda trazidos - reduzindo o homem a um hipnotizado pelos encantos da sereia, pela sedução incontida e incontível de seu canto (8).  
Comecemos com Jung. Ele nos traz um interessantíssimo conto siberiano - e como não menciona o autor, nos induz a crer que se cuida de conto popular, de tradição oral - que também nos remete às sereias. Ouçamos:
"Um dia um caçador solitário viu uma linda mulher surgir da densa floresta, do outro lado do rio. Ela acena para ele e canta:
“Oh, vem solitário caçador no silêncio do crepúsculo,
Vem, vem! Sinto tua falta, sinto tua falta!
Agora, vou te abraçar, abraçar!
Vem, vem! Meu ninho está próximo, meu ninho está próximo.
Vem, caçador solitário, vem agora no silêncio do crepúsculo."

O caçador se despe e atravessa o rio a nado, mas de repente a mulher se transforma numa coruja e foge, rindo-se e caçoando dele. Ao nadar de volta para buscar suas roupas, ele se afoga no rio gelado."
Há, como se nota, ainda que não seja claramente uma sereia, a sedução ligada ao rio, à água. Rio este que pareceu ao caçador perfeitamente passível de ser atravessado a nado, na amena temperatura do amor, mas, para sua surpresa, após despir-se - e, ao desnudar-se perdeu as defesas - tarde demais percebe que o rio era perigosamente fatal, gélido, frio, frígido, o que afasta qualquer possibilidade de um erotismo bem sucedido e saudável. Assim, entregue à sua própria e gélida impotência, o objeto do desejo o despreza, e, caçoando dele, o expõe ao ridículo, fazendo afogar-se.
Vejamos agora o que canta Homero, na Odisséia, sobre as sereias, desde já alertando que, aqui, estamos apenas correlacionando o mito em diversas versões, mais ou menos sofisticadas, o que em nada invalida a interpretação bem pessoal que demos acima ao herói de Homero, da qual, abaixo tentaremos uma conclusão:
"Quem quer que, por ignorância, vá ter às Sereias, e o canto
Delas ouvir, nunca mais a mulher nem os ternos filhinhos
Hão de saudá-lo contentes, por não mais voltar para casa.
Enfeitiçado será pela voz das sereias maviosas.
Elas se encontram num prado; ao redor se lhe vêem muitos ossos
De corpos de homens desfeitos, nos quais se engrouvinha a epiderme."

Clara, aqui, a anteposição entre o amor “família”, e a sedução mortal e perversa, que impedirá o homem de ver os próprios filhos, perdidos para sempre pelo amor fatal das sedutoras sereias. Claro também o risco incontornável da sedução, que, em troca, não lhe dará amor, em nenhuma acepção da palavra, mas o tornará nova ossada de mais um derrotado, e, no caso, vitimizado, pelo canto da sedução (9).
Mas nem é esta a passagem que mais nos interessa aqui.
Após as advertências de Circe sobre os riscos que corriam os Argonautas, Odisseu se dirige aos seus companheiros, “o coração apertado”:
“Caros amigos, não basta que um só, ou que dois, fiquem cientes
do que respeita ao destino que Circe preclara me disse.
Não; quero tudo contar-vos, porque procuremos a Morte
conscientemente, ou possamos fugir do Destino funesto.
Manda, em primeiro lugar, que as divinas Sereias, dotadas
de voz maviosa, evitemos e o prado florido em que se acham.
Somente a mim concedeu que as ouvisse; mas peço a vós todos
que me amarreis com bem fortes calabrês, porque permaneça
junto ao mastro, de pé, com possantes amarras seguro.
Se, por acaso, pedir ou ordenar que as amarras me soltem,
mais fortes cordas, em torno do corpo, deveis apertar-me (10)”     


Como prevenimos antes, são tantas e inúmeras interpretações possíveis e existentes que, ousados, nos permitimos outra, só nossa, vista acima, e que aqui concluímos, prometendo abandonar de vez tanta ousadia.
Cuida-se de interpretação talvez menos histórica ou psicológica, e certamente bem menos erudita que outros já deram, mas que tenta emprestar-lhe alguma poética, eis que poesia a obra de Homero:
Como dissemos, Ulisses “derrotou” as sereias com seu “engenho e arte”, pois só a ele seria dado ouvi-las sem por em risco a expedição dos argonautas (seria excessivo descobrir aí alguma afinidade com o Mito das Cavernas platônico?).
Somente a mim concedeu que as ouvisse, ele brada!
Eis o domínio do artista pela forma, que o amarra aos mastros da criação fortemente, e vence os riscos da sedução.
É o rigor do artista apolíneo, não negando, mas conduzindo Dionísio, que o permite enfrentar os arquétipos, seus fantasmas, suas sereias, e mergulhar nos abismos sem, dionisiacamente, perder-se, ainda que a custo de muita angústia: a dos riscos da criação e da loucura, que ronda os ouvidos que se querem perder, e dos que, perdidos, buscam o rumo nos perigosos caminhos da criação.
Finalmente, e nos desculpando pela ousada interpretação dada a essa passagem da Odisséia, vejam a bela música de Dona Ivone Lara, esse delicioso ponto sobre a "Sereia Guiomar”.

Ouçamos a majestade negra: 

“A sereia Guiomar, mora em alto mar
A sereia Guiomar, mora em alto mar
como é bonito meu Deus, o canto desta sereia
como é bonito meu Deus, o canto desta sereia

O canto desta sereia, fascina
O canto desta sereia, fascina
O canto desta sereia, meu Deus, domina
O canto desta sereia, meu Deus, domina

Mas fala na beira do cais, o Manoel pescador
Ouvindo um canto tão lindo, logo se apaixonou
Seguiu correndo pro mar, dizem que em noite de lua
Envolvido no seu manto, o moço flutua



O canto da sereia fascina, domina, não há nem pode haver resistência ante tão violentos sedução e desejo, ele corre para o mar, já sem controle dos desejos antes reprimidos, da mesma forma que fez o siberiano e o fariam os nautas de Ulisses, não fossem apolineamente contidos.
       Apaixonado, “o moço” atirou-se ao “manto” (símbolo do poder) da sereia sedutora, e ali, flutua...
Sim, “o moço flutua”, mas já não vive, sua paixão desmedida o levou à morte.

VÁRIOS CANTARES, UMA SÓ SEREIA. UM SÓ CANTO
A que conclusão queremos ou podemos chegar?
       A sereia e o homem são um só, assim como estreitos os temas da arte, variadas são apenas as formas de sua abordagem. É um só o medo que causa a ameaça amorosa, os riscos da sedução ou de qualquer outro arquétipo e seu correspondente mito, o medo dos já mencionados “sentimentos fundantes”, anteriores mesmo ao arquétipo: o artista fará uso dele, o mito e seu arquétipo, de acordo com sua relação momentânea com ele, o suporte escolhido, ou o que lhe for possível, conforme sua própria história, o instrumental e o gênio de que é dotado.
       Fiz questão de não seguir uma “ordem” ascendente ou hierarquizante, pois não é disso que se trata.
Vimos, no exemplo junguiano, que pode vestir a roupagem da tradição oral, esta sim, em regra, passível de ser denominada “primitiva”, pois coletiva e oral, infensa pois, ou ao menos não totalmente, à marca do gênio.
No terceiro e último exemplo vimos o mito ganhar contornos individualizados de uma artista, que mesmo não tendo, por fatores socioeconômicos ou pessoais, todo instrumental de sua arte, mas possuindo inegável talento criador, fez sobressair sua marca de gênio, fundindo o arquétipo (coletivo) com sua própria trama e ambiência (sua perspectiva pessoal do coletivo ou de sua própria e individual tragédia ou comédia), quando se manifestará como cultura popular, como foi o caso do maravilhoso samba de dona Ivone Lara
Enriquecido esse artista de um instrumental mais sofisticado, claro está que passaremos a ter a mesma sereia num nível de problematização estético-simbólico mais abrangente, como em Homero, que ultrapassa o mito, para possibilitar discussões outras, posteriores e subjacentes ao arquetípico.
Pensar que isso não faz diferença – e notem que não há cronologia - tachando-me de elitista, apenas indica um maior elitismo de quem o faz, pois quer a perpetuação dos artistas populares imobilizados, tantas vezes verdadeiramente geniais, mas privados do instrumental que lhe daria uma educação formal democratizada. Ou, se quisermos ser mais contundentes, afastando os ridículos pudores do “politicamente correto”, são eles que os desejam imobilizados pela ignorância e pelo analfabetismo, para seu deleite intelectual ou interesses políticos. Não, definitivamente, o elitismo não é meu.
Claramente isso fica demonstrado nesses três exemplos que trouxemos da sereia, que é uma, mas variados seus cantares, ou melhor, os cantares de suas “vítimas”.
Tampouco, é óbvio, repetimos, tal processo tem a ver com a cronologia desses cantos, ou Homero não teria sido o escolhido para o nosso exemplo, pensar assim estaríamos admitindo um “progresso” em arte, o que não concebemos. Como demonstrado, não é uma questão de “progresso”, nem muito menos de “hierarquia”, estão todos no mesmo patamar, mas de acesso à cultura, à formação e informação, à educação formal, que, na Grécia Antiga era quase uma obsessão, como demonstrou Wilhelm Jaeger, na Paidéia, o que talvez explique tão vasto legado.
O amor desmedido, perigoso, se apresentará sob várias formas, mesmo que com um aparente, e apenas aparente, “desaparecimento” da sereia sob formas mais veladas e sofisticadas, deixando de ser metáfora e incorporando a sedução à personagem, cedendo espaço a metáforas outras, como, por exemplo, nos “Sentimentos do Jovem  Werther”, de Goethe, ou em “Madame Bovary”, de Flaubert, ou no conto “Uns Braços”, de Machado de Assis, e tantos outros que trazem, indelevelmente, a marca perigosa da mesma sereia. Elíptica, embora. 


NOTAS:

1 Lermant-Parès, Annie – “Dicionário de Mitos Literários” – Organização Pierre Brunel – Traduções – Carlos Sussekind, Jorge Laclette. Maria Thereza Rezende Costa e Vera Whately – Rio de Janeiro, José Olympio Editora e Editora UNB, 1997, pgs 829 e seq


2 Aubreton, Robert – “Introdução a Homero” – 2ª edição – Difusão Europeia do Livro – Editora da Universidade de São Paulo – 1968 – pg. 176. Grifamos e acrescentamos: e, encantando-os, prendê-los e perdê-los para questões outras subjacentes ao enredo, como as que vimos.
Aubreton, depois de advertir do risco das análises eruditas do itinerário de Ulisses, que, segundo ele, podem reduzir Homero a “um “diário de viagens” ou uma obra de propaganda política: “Nada seria mais falso. (...) Ademais, Homero quis criar uma obra completamente poética, toda feita e imaginação (...), o poeta colocou em sua obra (...) uma dose suficiente de maravilhoso fantástico, para provar que seu verdadeiro objetivo era antes encantar os ouvintes, do que dar qualquer espécie de conhecimentos sobre o mundo Ocidental –


3  Fotos: Cerâmica de Vulci - British Museum - o suicídio das sereias

4 Op cit, pg 157. Grifamos


5 Diel, Paul – O Simbolismo na Mitologia Grega – tradução de Roberto Cacuro e Marcos Matinho dos Santos, Editora Attar – São Paulo – 1991

6 Jung, Carl Gustav - Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo - Tradução Maria Luiza Appy, Dora Mariana R. Ferreira da Silva - 8a edição - Petrópolis - RJ - Editora Vozes, 2012, pg 178 

7 Cascudo, Luis da Câmara - Dicionário do Folclore Brasileiro – Instituto Nacional do Livro – Ministério da Educação e Cultura – Brasília – 1972, página 800

8 Junito nos dá uma origem “histórica” do mito. Relata que seriam um castigo de Afrodite por elas serem mulheres que desprezavam os prazeres do amor, por isso, retira-lhes a esfuziante beleza e as metamorfoseia. “Meio mulheres e meio pássaros ou com a cabeça e tronco de mulher e peixe da cintura para baixo, as Sereias tornaram-se demônios marinhos. Frias da cintura para baixo, por serem peixes, desejando o prazer, mas não podendo usufruí-lo, atraíam e prendiam os homens para devorá-los, o que, aliás, está de acordo com sua etimologia. Com efeito Seirén, sereia, provém certamente de seirá, "liame, nó, laço, cadeia". Hábeis músicas e cantoras (Partênope dedilha a lira; Leucósia canta e Ligia toca flauta), cantavam para encantar, tornando-se, como a Esfinge, um pesadelo opressor, um cauchemar”.
É interessante passagem, mas não explica a sedução e a desgraça do macho quando elas eram pássaros, na variante de Homero, pois a sexualidade dos pássaros se aproxima da nossa. De toda sorte, o vôo ameaçador é incompatível com nossas formas de amor.

9 Como veremos, só Ulisses conseguiu “derrotar” as sereias, escapando da sedução, para sua fiel Penélope (embora ele raramente lhe tenha sido fiel).
Aliás, o episódio das sereias, e aqui perdão por um muito pequeno desvio, permite uma interessante leitura, a partir a interpretação histórica que Junito Brandão dá às tragédias aos mitos gregos, a de que boa parte deles estaria “impregnada” pela ascensão do patriarcado e a queda do matriarcado.
É que, enquanto Ulisses tudo fazia para que seus marinheiros não se deixassem levar pela (falsa) sedução das serias, através de um estratagema,  Penélope iludia seus pretendentes  também com uma (falsa) sedução. Até que Ulisses retorna e ela o aceita de volta, recriando o império da lei (escrita) e da ordem patriarcal que então queria impor-se. Mas isso são outras conversas.

10 Homero – Odisséia - Canto XII, 154-164 – tradução Carlos Alberto Nunes – Ediouro Publicações  S.A. – 2001

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