terça-feira, 30 de setembro de 2014

PERGUNTA DE PEDRA



Ao olhar o muro, melhor o silêncio,
silêncio, ao dele se aproximar
para que possamos ouvir, enfim,
toda extensão da nossa ruína

Há aqui um silêncio secular,
que cerca o muro de pesadas
pedras de silêncio, e calcina
o passo, a cal ensina, e cala

cada gesto (houvesse gesto
possível ante o muro mudo),
a voz súbito emudece, os olhos
estancam entre cinza e paralisia

Aproxime-se do muro de joelhos
(e em silêncio), como ante um altar
à iniquidade, eis a pira de mortos,
e o primeiro deles foi a liberdade

Cada parte desse muro que parte
a cidade são ponteiros de pedra
de um relógio cujo tempo estancou
e não mostra mais que passados:




Pela manhã, eram mães e amantes
solares, voavam; mesmo os inimigos
eram tão próximos, mas já o rumor
do rastro da morte se ouvia no segredo

urdido numa tarde de agosto (chovia).
O tempo estancou na madrugada
e embora cedo, era tarde demais,
vivos, eles estavam todos mortos

A ida à prosaica esquina, na hora
da pedra - mais um beijo, o último!
furtado no escuro - e a vida seria
para sempre sem manhãs e adeus

O beijo silenciado no vácuo, adeus
sem eco. Cartas? Silêncio imenso
imensa madrugada, muro, amores,
ruínas, construção jamais reerguida




Eis os cacos da memória perdida.
Mãe? Estranha palavra de pedra
Amor? Ai, pedra porosa desfeita
Ciúmes? Cimento poeira e ferro.

O muro não nos conta um dia,
um dia apenas de iniquidade,
mas uma história como o muro
longa, e suas fundações de ódio

Todos que algum dia sentirem
a mais leve nostalgia dos olhos
de um tirano, deveriam passar
a noite despidos aos pés da pedra.

Talvez sentissem o frio do cimento
da cal e do medo, os olhos do horror.
Talvez ouvissem, ouça atentamente,
o silêncio aqui escrito, sinistro silêncio

de um pacto (aquele mesmo que um dia
levantaria o muro, assinaria com sangue,
tinta fiel, o fel de um povo. Era um pacto,
mas a tinta na pena era apenas sangue)

Não, não era pacto entre um homem
e o Cão, é coisa distinta, dois homens
eram os pactários, desbrindando, cálice,
firmas de sangue com o sangue alheio

E nem eram dois homens, eram
dois falsos faunos, falsos faustus
Faustos não eram, eram Mefistos
siameses mesmerizando-se olhares

infaustos. Não pactuaram apenas uma,
mas almas aos milhares contrataram,
mercadores de almas em tudo alheias
ao pacto e à cláusula macabra: a paz

selada com o sangue alheio. Eram iguais
os pactários, idênticos em tudo, do chifre
ao cheiro de enxofre, embora distintos
na aparência. No frio da noite mural,

no silêncio espectral, possa, nostálgico
do terror, ver se enlevando os olhares
de abutres, talvez, cego ou besta, desista
de ver e mentir diferenças entre xifópagos







São idênticos siameses, mais símios
que qualquer ancestral, mais cínicos
que qualquer boçal, a lâmina suástica
enlaçada à foice num incesto de sangue

Numa paisagem de pedra não lunar
(não criam na lua, luz de degenerados,
luz de viados e de danças ciganas
que devem, como os poetas, morrer)


Dançaram nus, como Lilith e Fausto,
feiticeiros sombrios, outra Valpúrgis.
Sodomizaram-se entre os cadáveres
e as cidades, e limparam o sêmem

da morte nas sedas rotas da liberdade.
Ó Sabá de sacrifícios humanos!
Orgiástico delírio da crueldade,
o falo do fuzil fulminava a tarde

Numa orgia ascética e sem suores
os dois curravam a estética do amor.
Eles eram puros, eram brancos, alados:
gemiam, pudessem os arianos nascer

sem o encontro das carnes! Quisera
as peles e as bocas servissem apenas
para o idílio da dor e da tortura, gozo
sem os sentidos pueris da fêmeas!

Nossas mães? Gemiam, orgasmo
sujo, todas as mulheres. Amores?
Todos os viados. E a nossa inveja?
Todos os judeus. Não façam presos!

Leia, amigo, está contado no muro:
Não façam presos! O telegrama
impessoal como o som dos tipos
mandava a morte montada a toques

Não façam presos! A letra de chumbo,
hoje de pedra, perpetuou-se no muro.
Não façam presos! O que faremos?
Mortos, apenas mortos, só mortos.

Sob o silêncio, agora soturno, você
poderá ver as imagens de Varsóvia
ardendo arrasada, o verso dos ferros,
o noturno de casas, pessoas e pedras






Quilômetros de silêncio e de morte
escombros, e a resposta palpável
dos profetas do apocalipse: a morte,
paralisia perene dos homens com medo









Seis anos após o beijo, apenas seis
e o beijo da dupla traição: foram seis
dias de horror sobre Berlin, e o fauno,
Führer sem seguidores, suicidou-se

nesta mesma Berlin que o pactário
dividiria, num muro que segredou,
toda história. Sim, o muro é mudo, 
mas o muro grita, e a cal não cala

Olhe o muro, boçal, atentamente
e em silêncio. Talvez você pressinta
(talvez não, quem sabe?) os olhos
da tirania multiplicados em cada brita

e em cada brisa fria. Lá eles estão,
olhe, procure bem os olhares baços
dos ditadores, para lembrar-se deles
cada vez que de frio e tesão tremer

em seu frêmito de sangue e crueldade:
não há verdade, não, não há verdade
possível, não há realidade plausível
senão duras plumas de pedra do muro.

Leia, letra por letra, o papiro de pedra
e cal, a carta horizontal, a carta aberta,
que conta, ou melhor, grita a história,
leia, boçal, leia, no frio sentirá o sabor

que tem o sofrimento. Leia e aprenda
ali, onde há a dor, não haverá vitória,
e fomos nós os que aqui morremos
em cada separação, cada morte muda

Leia toda essa história, duramente
sinuosa como um muro escrita
com pena de tempo e sangue, leia,
e sangra, como sangrou a cidade.

Olhe atentamente para os lados,
os dois, não pode ver que até hoje
são todos iguais? Entenda na noite,
nas mãos dos boçais não há destino

Veja, covarde, alguém perguntou
em vermelho (sangue?) no alto
do muro: why? Ali a pedra grita
ali que a pedra não erode, é eterna.

Entre rubi e púrpura, será essa letra
a cor de sua aurora, vamos, responda!
Impossível. Seu silêncio é iníquo
e não há resposta possível. Why?

Não há eco, vida não há, o medo
pesa mais e mais. E se o silêncio
em volta do muro era reverência,
três letras mudas o tornam pânico

Haverá resposta a essa pergunta
que verbera em Berlim (e em mim)?
A resposta não estará aqui descrita
nessas pedras mudas, nesse musgo

que desenha, lanha nas costas, nas mãos,
a sangue, silêncio e dor, o monumento,
o movimento do muro sinuoso, sanha,
tão violento que duplica as letras: murro.

Tampouco estará nas entranhas
deste poema, que nunca foi meu,
e que estanca, pois não há resposta
a esta pergunta, que em si se basta: 




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