O entusiasmo é uma doença na qual a imaginação abala o poder, o fanatismo uma paixão arraigada e continuamente sustentada. O primeiro é um acidente passageiro que ataca, algumas vezes, a inteligência mais sã; o segundo uma enfermidade que a transtorna.
Kant,
Crítica do Juízo
Das coisas que me causam maior
perplexidade é a questão da mulher nas sociedades mais radicais do oriente
médio. E uso "oriente médio", ao invés de muçulmanas ou islâmicas,
porque, estas, identifico com o Islã, o que muito se distingue do que vamos
abordar.
O que fizeram e fazem de seus fiéis,
esses pregadores, para tanto distorceram a cultura islâmica?
Diferentemente de outras religiões, que
conseguiram "domesticar" o que os deuses tantas vezes perigosamente
se tornam em muitas formas de fé (sem espanto, pois o “deus” da Inquisição era
bem "selvagem") eles agravaram selvageria dos deuses, tirando daí
proveito político.
Não consigo deixar de me incomodar,
como em recente viagem a Munique, ao cruzar com mulheres de burca, algumas das
quais sequer os olhos podiam ser vistos, cerrados por trás de uma tela negra. Como
não imaginar que, por trás daqueles olhos, por vezes a única parte do corpo
visível, quando vistos, olhos quase sempre aflitos e medrosos, pode haver uma
mulher excisada[1]?
Há ali, oculta da vista dos homens, alguém
que talvez tenha se casado sem amor, e para quem a sexualidade possui tão
somente uma função reprodutiva e neurótica. Aqueles olhos desprovidos da
liberdade, senão a de olhar, olhar, mesmo assim furtivamente, e, rapidamente, “desolhar”,
como se olhar fosse a única fuga, o único “pecado” ou crime, a única
transgressão possível.
E é.
Uma mulher sem direito a um rosto, a
quem foi roubado o comezinho direito ao corpo e à cor, uma mulher condenada ao
preto. E se está passiva ou mesmo conformada, é porque embotada pelo peso da
repressão, ou, pior, pelo medo à mais terrível das mortes: a lapidação.
Incomoda a visão de meninas entrando
na puberdade, adolescentes sem nenhuma, ou quase nenhuma, leveza, tão
característica, as cabeças cobertas, não raras vezes por quase a totalidade do
rosto e do crânio, e os ombros fatalmente curvados pelo peso de toneladas de
repressão. Nas costas carregam gerações de machos destruidores, de sexo sem
prazer, gerações de mulheres física e/ou espiritualmente excisadas.
O cheiro que algumas deixam ao
passar (não se choque), não é uma rima, um caminho no ar a atrair os sentidos, mas
um rastro, a demonstrar que o banho, que pressupõe o corpo, a nudez, o toque
supostamente masturbatorio, é prática reduzida ao essencial, ou até a menos,
bem menos que o essencial. Logo uma civilização que tanto prestigiava o banho.
Me incomodam, não posso negar, e não
pelo cheiro, mas por elas, e por mim.
Por elas, por motivos óbvios, são as
vítimas reais e carnais; e também por mim, porque não? Sempre me considerei um
libertário, um homem que tem a convicção que a intervenção do Estado na vida
privada deve ser mínima, o que não acontece por lá, mas que também crê que o
mesmo deve acontecer nas relações privadas: que cada um viva e deixe viver! E da
forma que melhor lhe aprouver, respeitando as diferenças.
Entretanto, esse mesmo homem não
consegue, por outro lado, emprestar à sua visão o que alguns chamam de
"relativismo cultural", ou “culturalismo”, e com isso, com esse
conflito quase insolúvel, se aterroriza, e sofre, bem menos, é óbvio, mas sofre.
Ora, isso é cultural, me dizem, é
preconceito, visão etnocêntrica e ocidentalizante, que nega as diferenças entre
culturas, a tudo querendo emplastrar, o que você é, me acusam, é um falso
libertário, um preconceituoso.
Mas não é disso, infelizmente, que
se trata.
Cultural?
Ora, talvez fosse interessante,
rapidamente e como forma de referir, trazer a questão um pouco para próximo de
nós. Isso, aqui mesmo, leitor, no Brasil, pois tivemos uma questão semelhante,
embora nem de longe idêntica, guarde-se as proporções, mas de todo modo também
aviltante.
Seria lícito aceitar como “cultural”
o fato de ter havido em nosso país, e há não muito tempo, destaque-se, a doutrina do "inferior valor psíquico da mulher frente o homem", razão pela qual a mulher casada era considerada, pasmem, relativamente incapaz (art. 6o, II, do Código Civil de 1916)?
Isso, me perguntarão os da nova geração, imaginamos que tenha sido há muito, muito tempo... infelizmente, não, somente em 1962, pouco mais de meio século separado de nós, portanto, tal violência à mulher veio a sofrer modificação, com o Estatuto da Mulher Casada (Lei 4121/1962). E essa postura do Estado e da sociedade só veio desaparecer por completo, ao menos juridicamente e em tese, pois socialmente a situação em certos lugares é constrangedora, apenas com a Constituição de 1988. Não, não eram nossas bisavós as vítimas dessa violência, eram nossas mães.
Cultural?
Minha perplexidade beira o paroxismo
quando lembro que foi a civilização islâmica que nos legou o fabuloso Mil e Uma
Noites, carregado de um nem tão sutil erotismo.
Essa mesma civilização islâmica, amante dos banhos, dos quais falamos acima, à qual Lo Duca, na apresentação do “L’Érotism des “Mille et une Niuts””, se refere como a que “integra o erotismo à vida[2], e nesse mesmo livro Lo Duca traz uma citação do Profeta, espante-se: “La femme est votre jardin, cultivez-la”.
Essa mesma civilização islâmica, amante dos banhos, dos quais falamos acima, à qual Lo Duca, na apresentação do “L’Érotism des “Mille et une Niuts””, se refere como a que “integra o erotismo à vida[2], e nesse mesmo livro Lo Duca traz uma citação do Profeta, espante-se: “La femme est votre jardin, cultivez-la”.
Mil e uma noites, ao fim das quais o
poder tirânico e masculino do rei Xeriar se viu derrotado pelo erotismo e pela,
porque não? literatura de Xerazade. E talvez esteja exatamente aí, como em
tantos outros arquétipos do perigoso amor sedutor e “destruidor” – e assim é em
todas as variações do mito das sereias - talvez esteja aí, no domínio de
Xerazade, a razão para tanto medo, travestido de ódio, às mulheres.
“Mil e uma Noites” e de outros
relatos eróticos, dos quais quase violentamente, e com imensa tristeza, me
lembrei nessa mesma viagem, ante um afresco, na parte dedicada à, agora sim,
Civilização Islâmica, no museu Pergamon, em Berlim. Uma esmaecida pintura
retrata uma mulher "com poucas roupas e em nítida posição de
"folguedos" com um parceiro", nos conta a curadoria.
A mulher, no afresco, está hoje quase
apagada pelo tempo, e totalmente apagada pela ignorância autoritária, na vida
carnal e contemporânea. E real, por demais real.
O que fizeram com, aqui sim, a
cultura dessa civilização?
O mesmo que fez Confúcio com a arte
erótica chinesa[3]:
destruíram-nas...
Cultural?
É óbvio que não! O que presenciamos
é a deformação de uma cultura e seu massacre, a degenerescência da expressão
artística de um povo, em nome do poder e de uma (distorcida) religião e da
torturante imposição de um anacrônico patriarca.
E de forma alguma falo de um suposto erotismo estereotipado
que alguns ocidentais viam, e ainda vêem, nas mulheres de burca, como se
houvesse algum mistério sedutor nos olhos femininos por trás dos panos negros,
do qual um bom exemplo é o anúncio, do século XIX, do perfume "Cocaína em Flor".
Mas não há, nem pode haver, erotismo na
submissão do parceiro, no prazer anulado, não há qualquer erotismo em tal tipo
de perversão, poderia haver pornografia, se muito. Isso sim é preconceito, e,
como tal, deve ser criticado.
Cultural?
Ah, mas fala-se de uma cultura em
sentido lato, e não em manifestação artística!
Eis uma visão esquizofrênica do que
seja cultura, como se nos fosse dado pensar numa cultura desvinculada da
história de um povo e de seu inconsciente, ainda mais sendo essa história tão
rica. Não existe cultura sem tradição, nem que seja para uma ruptura consciente
dessa mesma tradição.
Será isso mesmo, eu que me considero
um libertário, que tento olhar com igualdade as diversas culturas, me vejo
levado ao conflito, ao repelir essa manifestação de violência contra a mulher,
feita em nome de uma suposta diversidade cultural? Como conciliar este
paradoxo, como demolir, isso possível, tais argumentos?
AS SEIS VERTENTES DO “CULTURAL”
Essa visão "cultural"
passaria por, pelo menos, seis importantes vertentes: a religiosa, a política, a
cultural em sentido estrito, que vimos acima, a cultural em sentido lato, que
perpassa pela ótica sociológica e antropológica, a jurídica, e a filosófica, que,
de certa forma, abrange todas as outras.
Tentemos, dentro das estreitas
fronteiras de um artigo, verificar uma a uma, para ver se de preconceito se
trata, ou se, realmente, tal suposto relativismo é inaceitável e sua aceitação
passaria, necessariamente, pelo paternalismo demagógico, pela preguiça de
pensar e pelo comodismo, ou, pior, e talvez mais provável, pela cumplicidade
silenciosa, pois negaria àquelas mulheres o direito à dignidade.
A CULTURA COMO RELIGIÃO
Comecemos pelo religioso. Seríamos incapazes
de aceitar a liberdade religiosa do Islã, ao recusarmos a pregação dos aiatolás,
numa canhestra e anacrônica Cruzada?
Não, o Islã pouco ou nada tem a ver
com isso, Jacques Derida, em “Foi e Savoir”, enfatizou que “o Islã não é o
Islamismo (...) mas este é exercido em nome daquele”. Devemos, então, pensar o
que é e para que se presta a religiosidade:
É um exercício do "demasiadamente humano" em busca do
conforto e, numa vertente pouco mais sofisticada, do sublime.
Se tomarmos em conta que nossa lente
deve ser a da mulher - ou estaríamos vestindo o masculino do qual,
necessariamente, caso queiramos com alguma boa vontade prosseguir, devemos nos
despir - por uma ou outra vertente do sentimento religioso, o que vejo
caminhando nas ruas é a negação do espiritual.
Do ponto de vista do conforto, nem a
mais medíocre das criaturas se convencerá que é possível obter algum conforto
espiritual, mínimo seja, em estado de total sujeição e aniquilamento da
individualidade, aqui representada pela fatal e trágica ausência de rosto e pela
negação ao conforto da cor.
É necessário dizer que está
fatalmente fechado o caminho para o sublime? Sublime que Kant definiu como a
capacidade de olhar o poder revelado na natureza, “sem medo e de conceber a
superioridade de nosso destino”. Seria acreditar ser possível que tal caminho
passe pelas portas da iniquidade, pela submissão e pela inferioridade do
destino da mulher, e que se esconde atrás de grades que o separam da liberdade.
Querer perceber o Islã pelas Sharias[4] dos
atuais Aiatolás, repito, atuais, seria o mesmo de tentar entender o
cristianismo pelos olhos de Torquemada, ambos exemplos de deformação e
perversão de uma religião. É conclusão tão absurda quanto nefasta.
Não, concluo, não se trata de desrespeito à identidade religiosa.
Não, concluo, não se trata de desrespeito à identidade religiosa.
A CULTURA COMO POLÍTICA
Politicamente, mesmo num indesejado
Estado religioso, religião e cultura devem evitar se relacionar com a política, mas, se o fizerem, que seja somente
como aliadas da liberdade, jamais para aniquilá-la, embora, reconheço,
infelizmente não é isso que comumente acontece.
Aceitar passivamente tal estado de
coisas em nome de uma suposta diversidade política, nos levará à teratológica conclusão
de que estaríamos sacrificando a liberdade em nome dessa mesma liberdade. E se
não existe liberdade, a política, como quero entender, inexiste, logo, de
diversidade política tampouco se trata.
A CRUELDADE DA CULTURA COMO CURIOSIDADE
ANTROPOLÓGICA
No que se refere ao socio-antropológico,
e perdoe a necessidade de aqui fundi-los, dada a exiguidade de tempo e espaço, me
parece que, no mais das vezes, tal “respeito” à identidade passa por certa
curiosidade mórbida e perversa, pois somente um espírito com esse tipo de curiosidade
para querer tornar a mulher um laboratório de teses acadêmicas, cobaias, rattus norvegicus, para respeitar tal despautério,
sem nele querer interferir, em nome de um suposto culturalismo.
A CULTURA COMO JURIDICIDADE E UMA NOVA ORDEM JURÍDICA MUNDIAL
Juridicamente, e análise jurídica é
aqui importante, quando menos se pensarmos numa suposta vedação a qualquer
forma de intervenção nesse estado violento de coisas, mesmo pacífica, impossível
não se destacar o desrespeito à dignidade da pessoa humana e sua relação com uma
desejada (nova) ordem jurídica mundial, que se não tolera mais isolacionismos
cruéis e autoritários, tampouco dá espaço para uma cômoda (e conivente) não
intervenção, em nome da diversidade.
Sem sombra de dúvidas, estamos
diante de direitos de personalidade, direitos fundamentais por excelência, no
caso, o direito à imagem, o direito ao corpo, à individualidade, pois, como ser
um indivíduo entre milhões privada do corpo, reduzida a um olhar furtivo
(também no sentido de tantas vezes furtado)? Elizabeth Roudinesco nos lembra que
o “véu (...) simbolicamente, as proíbe de falar em seu próprio nome”, direito
da personalidade por excelência .
Quando a ordem jurídica mundial aprofunda,
a partir do neoconstitucionalismo, seus fundamentos na dignidade da pessoa
humana, quando o mundo, juridicamente falando, volta os olhos para a linha
traçada por Kant, de ter o homem como fim em sua dignidade, e não como meio,
vemos mulheres usadas como meio: meio de sustentação pseudorreligiosa,
ditatorial e fálica, estruturada para, aniquilando o feminino, reduzi-lo a
pouco mais que nada, ou a nada.
Hoje sequer o direito a ser Xerazade
lhes é dado: seriam lapidadas antes da terceira noite.
Em se tratando de direitos humanos universalmente
conquistados, rupturas institucionais que libertaram os historicamente
re(o)primidos, uma vez estabelecidos por qualquer sociedade, criam um marco
civilizatório de não-retorno, numa visão universalizante da jurídica vedação ao
retrocesso, aplicável, esta, a Estados soberanos. E, uma vez criado esse marco,
tais conquistas deixaram de pertencer a esta ou aquela sociedade, e tornaram-se
patrimônio da humanidade. Inviável, pois, qualquer tentativa de, retrocedendo, aniquilá-los
e não abraçá-los, não como característica particular de uma ou outra cultura,
de um ou outro Estado, mas do homem como um todo. Na medida em que esse homem, universal
e sem fronteiras, alcançou determinada conquista igualitária, inadmissível a
reação e, muito menos, o retrocesso.
Definitivamente, não posso aceitar
como “cultural” uma teocracia totalitária com ares medievais.
E é justamente a partir dessa visão universalizante
que não temos como aceitar que o homem, visto em sua totalidade, seja ainda
entendido apenas a partir da dicotomia ocidente/oriente, pois determinadas
conquistas referentes aos direitos humanos, repita-se, não podem ser, e não
são, como alegam alguns muçulmanos, apenas frutos de uma organização
exclusivamente ocidental, a ONU, cuja legitimidade não é reconhecida pela
maioria de seus líderes religiosos radicais, como se apenas os ocidentais
tivessem direitos.
E, sublinhe-se, a defesa dos
direitos do homem não é uma conquista unicamente da ONU, mas remonta à
Declaração dos Direitos do Homem, de 1798 (seria possível furtar da humanidade
a Revolução Francesa?), ou a antes, muito antes, à Magna Carta, de 1215, do rei João Sem Terra.
E suspeito dessa dicotomia ocidente/oriente,
porque, em última análise, somos filhos de uma mesma linhagem, de uma mesma,
agora sim, e isso é fundamental, de uma mesma cultura, aquela que Derida
denominou “cultura abraâmica”: judaica, cristã e islâmica. Somos todos herdeiros
de Abraão, o que sugere, como em todos irmãos, que nossas diferenças, embora
tal afirmação nada tenha de científica, talvez sejam muito mais neuróticas que
culturais (e não nos é dado esquecer que Cristo salvou Madalena da lapidação,
que ainda hoje é praticada em alguns lugares).
Os direitos humanos, no caso, os
direitos das mulheres, por elas próprias tão duramente conquistados, não o
foram apenas ante um Estado, qualquer um, seja ele laico ou religioso, e não
são conquistas apenas das mulheres, importante frisar, mas também se referem, dentro
de uma suposta e desejável (nova) ordem mundial, a todos os seres humanos, e
aqueles que creem na possibilidade dessa nova ordem, única utopia ainda
possível, não podem negligenciar em afirmar que são conquistas que podem ser
estendidas a quaisquer formas de sociedade, pois dizem ao ser humano,
independentemente de onde ele viva, e que também podem (e devem) ser moldadas, repetindo,
moldadas, e não impostas, a todas as formas de cultura e religião, o que prova que não tratamos aqui de uma
questão local, ou de intolerância intercultural, mas universal, adaptável,
pois, a toda e qualquer sociedade e cultura.
HABERMAS E A CULTURA COMO (PRÉ)COMPREENSÃO E O DIÁLOGO POSSÍVEL
Visto que nossa abordagem tomou a
ótica da Filosofia, o que, em última análise abrange as acima vistas, inegável que
tais práticas não poderão mais ser admitidas, se tomarmos, como já dissemos, como
paradigma a visão kantiana do homem como fim (em sua dignidade), não como meio,
meio de submissão a regimes, religiões, sociedades calcadas no patriarcado.
Então, já que se impõe, o diálogo
seria possível? Como começá-lo?
Habermas nos oferece uma maneira de tentar
dialogar acerca de determinados valores, de tal forma a que as dissonâncias
culturais encontrem um ponto de harmonia, facilitando a absorção de valores
universais, inegavelmente existentes, mesmo se entre culturas tão díspares.
Todos temos, ele ensina, em “Direito
e Democracia: entre Facticidade e Validade
(Habermas, Jürgen. Direito e
Democracia: entre Facticidade e Validade, volume II, 2ª Ed.) independentemente da cultura e
religião, uma “precompreensão” de
determinados valores, ou melhor, kantiana[5], empírica
e anteriormente falando, certos sentidos (na mesma raiz de sensível) universais
("fundantes") tais como amor, tristeza, morte, felicidade,
e, principalmente, para o que
aqui tratamos, liberdade.
A partir do momento em que trazemos esses
valores (sentidos) universais, ou fundantes, da precompreensão para o nível da
compreensão, eles perdem sua universalidade e, inevitavelmente, sofrem alguma distorção.
Explicando melhor: no exato momento
em passamos a "compreendê-los", ou seja, os trazemos para o nível intelectual
e individual, ou seja, cultural, passamos a percebê-los a partir do olhar dessa
mesma cultura, e irremediavelmente os traímos, dificultando (traduttori
traditori), ou mesmo impedindo, o possível e desejado diálogo entre os interlocutores
dissonantes, prevalecendo a discórdia e instaurando-se, talvez irremediavelmente, a Babel. Tal diálogo, então, só será possível
se ambos os interlocutores tentarem manter-se no nível da precompreensão, de
forma a, afastada a compreensão, possamos afastar as dicotomias culturais, os
conceitos, e, por via de consequencia, os preconceitos
Importante frisar que essa “precompreensão”
nada tem a ver com "pré-conceitos", pois, a partir de cada cultura
isoladamente considerada, o conceito, logo, também o preconceito, só pode se dar
a posteriori, a partir, é óbvio, não de uma “precompreensão”, mas de uma
“compreensão”, quando então, e só a partir daí, se tornará “conceitual” (apenas
compreensível a partir de determinada cultura). E isso nos leva à conclusão de
que o próprio conceito se instalará, na verdade, depois, muito depois da
precompreensão do que seja liberdade, e, uma vez em nós incutido, é que nos
sugerirá ideias preconcebidas, (pré)conceitos, enfim, e não antes.
Logo, a defesa de valores universais
(e ideais), livres de quaisquer atavismos, ou, senão livres, mantidos sob
cautelosa guarda, é possível, desde que saibamos nos manter dentro do limite da
precompreensão, o que, rigorosamente, repito, nada, nada tem a ver com qualquer
forma de preconceito, só assim teremos um ambiente propício ao entendimento.
A partir dessa percepção, não me
parece razoável acusar de preconceituoso o que se encontra ainda no nível da
precompreensão, e tampouco me parece factível estabelecer qualquer conexão com um
valor (e não conceito) universal de liberdade - mesmo se dentro de determinada
cultura - com o aniquilamento do corpo, e, mais intensamente, da sexualidade, a
destruição do indivíduo em sua dignidade.
Há determinadas práticas excisivas que consistem em não só a retirada do clitóris ou dos grandes lábios vaginais, mas na infibulação, o fechamento parcial do orifício genital por meio de sutura, com o único propósito de retirar da mulher qualquer possibilidade de prazer sexual, como espantosamente nos relata Somail Waris Dirie, modelo, ela própria vítima dessa prática.
A destruição do indivíduo em sua dignidade é de tal forma trair uma precompreensão do que vem a ser liberdade, que não há – e nem pode haver – como aceitar as diferenças, culturais ou não, e jamais chegaremos a um consenso do que seja liberdade, a partir da sua própria negação.
A dignidade solapada, não seria
resultado, em suma, apenas de uma “traição”, uma deturpação da “precompreensão”,
a partir de uma compreensão, da ideia de liberdade, mas sua própria negação,
seu aniquilamento.
E isso, infelizmente, é que torna,
se não houver alguma mudança por partes dos opressores, qualquer forma de
diálogo harmonioso inviável. Quem, afinal, inviabiliza o diálogo possível, embora,
infelizmente, não provável? Quem o intolerante?
Não, devo tranquilizar-me, não há em
mim qualquer islamofobia, qualquer carga de preconceito ou etnocentrismo,
desculpem-me os ingênuos e os nem tanto, ao contrário, não são culturas o que
nos separam, mas as condutas dos dominadores, dos tiranos, dentro determinada
sociedade, ainda que disfarçadas de “cultura”, é que inviabilizam o desejado
diálogo. E, exatamente isso, justifica a estranheza e eventuais pensamentos de
intervenção, desde que pacíficas, é claro, a partir do convencimento, mas, sem
liberdade, como fazê-lo?
Qualquer pessoa que acredita numa possível e desejada ordem mundial
calcada no humanismo não pode aceitar, em nome de suposta identidade cultural,
tamanha negação desse mesmo humanismo, sem um espaço mínimo de conformação
individual e de gênero.
Se afasto a angústia da dúvida, outra maior se apresenta: a de não
conhecer uma forma de ação que seja aceitável.
UMA TARDE ALEMÃ
Retorno às ruas de Munique, meus
olhos passeiam por essa cidade musical e alegre, um pouco mais tranquilos, ou
ao menos nem tão angustiados pela perplexidade que me assaltava.
Vejo que se aproxima de mim outra mulher
vestida de nuvem negra, como sempre, apenas os olhos a realçam. A olho com
atenção, confesso que não consigo afastar meu descontentamento com o homem que,
aparente e tiranicamente, conduz aquela família, pois é uma família. Não
consigo deixar de enxergá-lo, colorido e levemente vestido, como um pequeno
torturador.
É uma adolescente! Claro que é uma
adolescente!
Como sei que é uma adolescente, se
até seus pés estão cobertos?
Não, não deliro. É uma adolescente! Há, em seu andar, uma leveza excitada que só as adolescentes possuem, da pequena fenda que deixaram, rasgo, no seu rosto oculto, derrama-se a profusão de luz dos olhos que pontuam um brilho explosivo e ansioso, sua burca, seus panos negros colorem-se de dentro para fora, até cobrirem-se de cores, nem tão imaginárias, dos pés à cabeça, há uma ebulição na pele oculta que nenhuma Sharia detém.
Não, não deliro. É uma adolescente! Há, em seu andar, uma leveza excitada que só as adolescentes possuem, da pequena fenda que deixaram, rasgo, no seu rosto oculto, derrama-se a profusão de luz dos olhos que pontuam um brilho explosivo e ansioso, sua burca, seus panos negros colorem-se de dentro para fora, até cobrirem-se de cores, nem tão imaginárias, dos pés à cabeça, há uma ebulição na pele oculta que nenhuma Sharia detém.
Sua leveza e beleza adolescentes,
mesmo encobertas, igualam-se a de todas as meninas que passam pelas ruas de
Munique, exuberantemente coloridas nesta tarde de verão hormonal e alemã; se
igualam, mesmo dentro de uma cela de negro e medo; se igualam, negro
transubstanciando-se cores, agora sim, num erotismo quase sagrado a que
poderíamos chamar de luz.
É Xerazade, seu nome.
Vai, menina, talvez seja você que
restaurará entre os seus - e entre nós - o “império dos sentidos”, noite após
noite colhendo manhãs.
E um sopro de esperança e
sensualidade colore a tarde alemã...
[1] A castração
clitoriana
[2] Dehoi,
Enver – Bibliothèque Internationale d’Erotologie - Jean-Jacques Pauvert
Éditeur - 1963
[3] Fonte: o inacreditavelmente lindo: “Jeux de Nuages et de la Pluie” – de
Michel Beurdeley, Madame Georges Bataille, Kristofer Schipper, Tchang
Fou-Jouei, Jaques Pimpaneau – Office Du Livre - 1969
[4] Religião e Direito, ambos se confundem, islâmicos.
[5] Crítica do
Juízo
de Gosto
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