quarta-feira, 23 de novembro de 2016

CALEIDOSCÓPIO (Reflexos do Negro)


Gerúndio, 
                              tempo apoético
                              tempo real

                                                      de verbo
                                                                     minha mãe
                                                      morrendo





O asfalto descarnado banha a rodoviária e o cais, entre pedaços de morte passeio entre prédios e cacos, e a desafio, senhora. Caminho entre o lixo, ratos e homens do entorno morto, busco na chuva um navio para Caxias, onde morre minha mãe que nunca lá esteve, lá enfim desistirá, e morrerá, sob versos em ruínas e meras rimas desconexas que degradam o poema.

A visão do lixo fascina como aqueles olhos azuis fascinavam a fina aurora,
em breve serão memória, ruínas de um resto de luz e cor que se deteriora.
Lambe as minhas mãos um cachorro doente, as bernes sabem a angústia,
uma ruína de pulgas e vermes, a quem dou meu nome. Feliz, ele abana
sua alegria. (Imagens de um homem que tenta se recompor em alegoria)





Versos e frases como um nada, como a morte, vão e vêm na velocidade do espelho, talvez a reflitam, morte, na identidade do caos e na ausência de sentido. Ecoam, pulsam na esquina, doem nos olhos, nada significam, ou significam, mas não traduzem. Imagens correm como ratos desconexos, recolho aos poucos palavras, sem esperança que recomponham a lógica perdida, na verdade nunca alcançada, pois a lógica é uma invenção do homem para inutilmente tentar compreender o absurdo que é a vida.
              
                                                                                  E a morte.





Frases,
versos,
                               soltos

                               imagens nuas,
rimas surdas,
                               leite primevo,
                               primeira luz,

um caleidoscópio que, lembro, um dia ganhei, depois perdi,
ou quebrou-se entre os dois seios crepusculares da galáxia.





Talvez fingisse dormir, como fazia
quando queria fugir dos seus azuis.





Como dormir na ausência do azul, cor nenhuma, um quasar quase vácuo
no peito do universo? Impossível não pensar nos azuis quase violentos
daqueles olhos que zarpavam sem vento. E este medo azul de anoitecer.





Cacos, ecos, caos, cacofonia de imagens
impalpáveis no papel, ou fora deles, preciso
organizá-los, quando o fizer, quem sabe, organizo

não a dor, mas estes cacos do caos impreciso?





Onde estão aqueles olhos que dia Guignard pediu
para pintar abril? Mas você negou abril, como hoje
nos nega novembro. Seus olhos proibiram o azul.





Menos uma cor na luz. Você levou um azul que apenas supus
e o mundo ficou pobre de cores. Não há mais azul, esmaeceu
escondeu-se atrás das pálpebras pousadas na carne morta.

De repente, súbito reparo: seus olhos espalham azuis na paisagem
mãe, você está azul! Flutua e rodopia e dança na esfera azul de mim
Você voa, mãe, delirante, derramando azul na aquarela dos homens.

Só eu, mãe, só seu filho caminha entre negro e um cinza quase azul.





A morte é caos, pathos noturno nexo sem símbolo,
morrer é assimbólico, é convexo, é não, não palavra,
apoética, imenso gerúndio que um dia nos abraçará.





Imagens partidas no tempo
                                                 caleidoscópio?
Não, é meu corpo feito
                                                 destroços
um braço, um pé, um poema
                                                 desfeito
Melhor chamar-me
                                                 ex-voto





Nesses cacos que colho do chão da memória
assusto: só fatos longe refletem rios remotos
recompõem reflexos que há muito não eram

Há tempos seus olhos haviam fechado, primeira
morte, mergulhados nos desvãos do quase nada
que se tornaram suas iras e histórias agora cegas

Então, por que dói a perda? Por que me envolvem
esses acontecidos há tanto destecidos pela tristeza
que se tornaram teus dias, dia após dia após noite?

Dias vagarosos dos mortos nos teus olhos fechados,
(estranhamente também meu pai morreu duas vezes)
a vida, que comprida! Desistida num silêncio consumido

Já buscavas a morte na sua recusa à luz, olhos surdos,
mas sem poder abreviar-lhe essas estranhas núpcias
ferravas os olhos no escuro do passado que teimastes calar

Procuravas em algum lugar uma luz de uma estrela morta
invejando-a, na sua trajetória tonta pelo espaço, pelo nada
memória borrada, risos, dores de uma paisagem calcinada

Quantos segredos levastes nos olhos? Melhor tê-los contado, mãe,
a imaginação é mais cruel que a realidade (nunca saberemos)
a tampa encobriu no teu último gesto a nossa única suspeita.

Não havia presente na morte antes acontecida, nada por lembrar,
por que o choro? Por que a voz de tenor atemorizando a tarde?
Por que o espanto ante a morte anunciada, ou melhor, desejada?

É pelo desassossego, pelo gesto de pânico ante Tânatos
e pela catatonia que nos invade ante o dessentido da morte





Súbito, o barulho seco da madeira,
a vertigem antilírica dos parafusos,
vêm e espalham a solidão dos fusos

Esfacelam a ancestralidade, ruptura.
O antigo cordão finalmente apodreceu
deixando-me flutuando no tempo. Só.

Já não sou no tempo, desde meu pai
começara a perder os fios que prendiam,
hoje, esgarçou-se o último fio do verso


Poema que teceras desde meu nascimento,
perdeu o pé, quebrou-se, desencontrou das rimas,
perdi-o no último elo que flutuava no universo

(Mas minhas raízes alastram-se para o lado
e para baixo, numa só teia que me captura.
Em ti, filho, minha solidão de órfão capitula)





Acabou, seu corpo agora é chão, apenas chão, nada reluz
o que há agora é apenas a recíproca solidão que nos conduz.
Você, nessa terrificante escuridão, e eu nesta terrificante luz





Não creio em Deus, nem numa suposta paisagem.
Não vejo o “caminho de luz” que lhe prenunciam
muito menos noto que seu rosto “descansa sereno”.

Vejo apenas uma estranha e vertiginosa paz
a paz dos que, como você, abismaram no nada





Perder, verbo conjugado errado
pois sua vocação é intransitiva
seu objeto é a soma do nada





Pesadelo, meu pesadelo é hoje
uma desimensidão dentro da alma

                                                     Que estala.





Abraços. Uns, talvez, sinceros
outros têm a marca do cínico
ao contato da pele. Os rituais
da morte, preciso cumpri-los

Preciso? Queria agora a ruptura
andar ao léu nas aléias da morte
meio à mais acachapante solidão
entre o mau gosto das esculturas





Talvez devessequisesse rir um pouco, estou só,
caminho meio às saudades eternas de Narinha
e o moralismo algo latinoso de Astrovaldo:

“Exemplum dedi vobis”, que os chatos
não morrem jamais e a morte é condenada
aos mármores do mau gosto. Esculturas?

Errei: o indefectível mau gosto das sepulturas





MERGULHOS

ÁGUA DOCE

Por vezes nado ainda imerso na madrugada
temendo a noite, o dia não nascerá. Mas logo
o sol traz alguma calma: “quero, quero” ouço
É o quero-quero querendo o dia, alimento.

Também quero, bem queria, quero-quero,
que de outro jeito nascesse o dia. Calma
passarinho amigo, não te assustes comigo,
que a manhã por vezes vem lassa, outras

Traz terrores, aos homens e pássaros ameaça


ÁGUA SALGADA

Mar
                                 amniótico mãe,
                                                                  útero da terra

Mas não ventava em teu ventre
nem era assim salino teu leite

Não eram tão frias tuas entranhas
e havia mais luz, antes da luz.





Tinha a idade que hoje tem meu filho
quando ganhei um caleidoscópio colorido,
fascinava ver a vida girando em cacos.

Logo tirava a luneta dos olhos, com medo
da vertigem, e o mundo se refazia rápido
em ilogicidade calma, conhecidamente calma.

Um dia quebrou-se. Chorando, pensei ter recolhido
todos os cacos, podia recompor-me e à paisagem.
Triste, constato que não, algum pedaço se perdeu.

Partiu-se outra vez o mundo, mas os cacos, estes,
para sempre se perderão neste chão que me falta





Caleidoscópio
               ecos
                                 do caos

cacofonia
                                 dos sons
cotidianos

dodecafonia
                                 de imagens
                                 paisagem
serial

vida nos cacos
                                 de um caleidoscópio



                                     Quebrado


























Há um ano morria minha mãe.
Na vertigem daquele dia escrevi alguns versos desconexos, ou coisa que os valha, que jamais tive vontade ou coragem de mostrar a ninguém, quase que nem a mim mesmo, muito menos publicá-los. Talvez porque a morte da mãe, para um filho, seja um momento de tão grande intimidade quanto foi o momento em que foi concebido, embora trágica intimidade.
Hoje, tomo coragem e os publico, quem sabe para consolar-me um pouco, numa dolorosa homenagem, pois um ano...Não sei se passou rápida ou vagarosamente, sei que ainda dói. Muito.




(Agradeço minha irmã, Ofélia Autran, não só pelas fotos das flores, das quais ela gostava tanto em seu jardim, quanto a dedicação, a rara dedicação que devotou a ela e a meu pai, que, dentro do possível, pode confortá-los, na difícil idade da velhice./O desenho que ilustra esta postagem é de minha mãe aos dezesseis anos, com seus olhos impressionantes, de autoria de Maria Helena Andrés)





Nenhum comentário:

Postar um comentário