“Não há nada que valha a pena pensar que não tenha sido pensado antes,
nós apenas precisamos tentar pensá-lo outra vez”.[1][2]
6.1 - Um Goethe
Socialista?
Goethe, é o que afirmo em “Museu de
Cinzas”, livro ainda em construção, em toda sua vida e obra, negou (ou fugiu de)
seu tempo, o que está bem presente no Fausto, ou ironizando-o, ou politicamente
o rejeitando, bem como à Ilustração - o que, neste caso, não foi uma exclusividade sua,
outros alemães contemporâneos a ele também a rejeitaram - e à Revolução
Francesa.
Gasset dizia que Goethe nunca conseguiu ser o que verdadeiramente era:
um poeta. Uma meia verdade - embora não totalmente desprovida de razão - que o
próprio Fausto desmente. Mas Gasset lê Goethe com indisfarçável mau humor, entretanto,
descontados
os exageros, temos, como sói acontecer com o pensador espanhol, uma análise
bastante interessante de alguns aspectos da obra do autor alemão. Mas o fato é
que esse mau humor o leva a uma leitura, embora correta, ressentida, de um
colorido um pouco rancoroso, que chega quase à apoplexia quando lê, certa feita,
um trecho de Goethe em que ele diz: “não posso considerar-me um mestre, mas
posso, sim, chamar-me libertador”.
Como? Ele escreve, perplexo: “Nada mais?
Nada mais”. Indaga e responde o espanhol, e aqui com boa dosagem de razão,
“Goethe falando da liberdade?” Esta palavra, prossegue, “pertencente ao estrato
superior do léxico, a que mais vezes se pronunciou na época em que escreve sua vida,
Goethe a evitou constantemente”[3].
Realmente, Goethe está um pouco mais para
liberticida do que para libertador, embora a tanto eu não chegue, mas,
certamente, tudo o que não foi, foi “um libertador”, se poderia ou não ser
classificado como um reacionário, é o que tratarei por aqui.
Contudo,
o fato de não chegar a ser um liberticida, como queira Gasset, talvez
injustamente, estava longe de torná-lo um libertador, como ele próprio se
intitulou em seu ensaio “Para os mais Jovens”, que tanto irritou o espanhol.
Por
outro lado, numa leitura radicalmente oposta e extremamente curiosa, não sendo
ele “um libertador”, também estava a léguas de distância de ser um
revolucionário, na deliciosa, beirando
mesmo o patético
- o que apenas demonstra a infinidade
de leituras possíveis desse livro inesgotável - tentativa de apropriação do
poema por alguns marxistas, como Luckács, Schlaffer, além do próprio Marx.
Schlaffer,
respeitado professor da Universidade de Stuttgart, chega a falar que, num
determinado ponto do Fausto II, "o Capital e Fausto II, começam a completar-se
mutuamente”.
O próprio Marx, em Manuscritos Econômicos-Financeiros
(apud Mazzari) quando jovem,
faz uma exegese de uma passagem goethiana, tentando analisar o dinheiro e a
sociedade capitalista.
São livres leituras, como qualquer outra de um livro
inesgotável, inclusive a minha, mas tenho imensas dificuldades de ver em Goethe
esse revolucionário, salvo se levarmos em conta apenas a sua identidade com a
tentação autoritária.
É inegável que em uma ou outra
passagem Goethe ironiza a injustiça social, de certa forma denunciando-a, como
na do lenhador, “ficai avisados,/Morríeis gelados/Se os brutos não suassem” (verso 5208 e seguintes, do
Segundo Fausto, mas, convenhamos, o adjetivo “brutos” não é a seu tanto
solidário), e demonstra desconforto com o “capital espoliador” (para usar expressão
cara a esses teóricos marxistas), como na genial passagem da inflacionária
proposta de Mefisto ao Imperador, antecipando-se ao esfacelamento da economia
alemã, quando da posterior ascensão do Nazismo.
Também clara é a ironia com a
nobreza decadente, no “carnaval” do Fausto II.
Mas, ao que parece, a passagem
que mais, digamos, comove, esses “perfectibilistas” (pois enxergavam em Fausto
uma metáfora do aperfeiçoamento do ser humano - Mazzari), seria o Quinto Ato,
do Segundo Fausto, na cena, “Grande Átrio do Palácio”, que retrata os momentos finais
de Fausto, então “com cem anos”. Cego (“tateando os umbrais da porta”, de
acordo com a rubrica cênica de Goethe), prestes a ocupar a cova que os Lêmures
para ele escavaram, a mando de Mefisto, ele fala:
“À liberdade e à vida só faz
jus,
quem tem de conquistá-la diariamente
E assim, passam em luta e em
destemor
(...)
Quisera eu ver tal povoamento novo,
E em solo livre ver-me em
meio a um livre povo”.
Lida fora do contexto no qual imagino que tenha sido
escrita, ou tentando, numa interpretação contextualizada em excesso e à revelia
da obra, uma leitura ideológica, tais versos talvez soem “revolucionários”, uma
“profecia do marxismo” (Nichloas Boyle), entretanto, não se pode
descontextualizá-los do ato em que foi inserido. Veja-se:
Fausto estava velho,
pesava-lhe sobre as costas alquebradas as culpas pelas mortes de Margarida e
sua mãe, de seu próprio filho, e de Valentin, irmão de Margarida, além do
assassinato, no Segundo Fausto, dos dois velhos, Baucis e Filemon, a quem, pelo
mero fato de ouvir os sinos da capela da casa dos idosos, perturbando, com sua
paz e cristandade, seus sonhos de colonizador onipotente, mandara arrastar de
seus domínios, o que resulta no assassinato de ambos: “Quis a troca, não quis
morte e assalto (...) Mal ordenado, feito o mal!”, ele desdenha da culpa, num
comportamento bem pouco “revolucionário”. Também vira seu filho com Helena,
Eufórion, saltar para a morte, e o desaparecimento da própria Helena, que
esvaneceu, junto com o mito e a ideia de uma civilização Greco-germânica.
Ambos,
autor e personagem, estavam cansados, e Fausto arrependido do pacto.
Cansado e
cego, Fausto via se aproximar a hora em que Mefisto, fazendo-o cumprir o pacto,
levaria sua alma. Pesava sobre ele culpas insanáveis e via aproximarem-se as sombras
das fatídicas personagens (“cruéis fantasmas, eis como tratais/As míseras
criaturas humanas) que todo homem perto da morte, mesmo tendo amealhado
patrimônio, vê, inexoravelmente, chegar: a “Penúria”, a “Insolvência”, a
“Privação”, a “Apreensão” e a, de todas mais terrível, ela própria, a “Morte”.
Fausto,
como Goethe, via as “tempestades e ímpetos” da juventude nas brumas
enfraquecidas da memória, embora o segundo, ao mesmo tempo em que envelhecia,
começasse a readquirir um saudável anticlericalismo levemente iconoclasta, na
verdade um anticristianismo, que atingirá seu cume no último ato, mas que se
faz presente bem antes, na cena em que o Imperador, pressionado pelo Arcebispo,
vê-se na iminência de ter que doar para a Igreja todo o seu reino, para tentar
expiar a sua culpa pelo uso dos estratagemas criados pelo Diabo para
auxiliá-lo. Mas daí isso significar um espírito revolucionário vai uma imensa
distância.
O alter ego de Goethe, Fausto, como ele também amargurado com o
pacto a ser cumprido, parece arrepender-se de ter vendido sua alma, enquanto o
poeta também se arrepende, talvez por ter feito o mesmo com sua poesia, em
troca dos favores da nobreza e da fama.
Fausto,
o colonizador, após o assassínio dos dois anciãos, Baucis
e Filemon, que ousaram atravancar seu
domínio, humaniza-se e quer expiar as velhas culpas. Com cem anos, logo tombará
morto, e, como o seu criador, já não tem qualquer utopia na Terra, ao contrário, só
havia o pacto a ser cumprido.
Será nesse vazio de utopias que os marxistas
insistirão em anunciar um futuro socialista sobre a Terra? Ironicamente,
Goethe, a todos enganará, pois exatamente ali se anunciava um final de tragédia
sem qualquer utopia em nosso plano de existência, sem esperanças no homem, restará apenas a redenção em
Deus, sua derradeira esperança. Nada muito marxista, definitivamente.
Só se pode ler “À liberdade e à vida só faz jus, / quem tem
de conquistá-la diariamente” em conjunto com outra fala de Fausto, na cena
imediatamente anterior, já antevendo a morte e sua inevitável presença ante o
Criador, arrependido dos favores recebidos do Demo em troca de sua alma:
“Pudesse eu rejeitar toda feitiçaria, / Desaprender os termos de magia, / Só
homem ver-me, homem só, perante a Criação, / Ser homem valeria a pena, então”. O
que ele queria ela libertar-se e construir sua vida diariamente.
Essa
liberdade, que inclui o “povo livre”, do poema, e que tem que ser conquistada
diariamente, me soa muito mais kantiana, carregada de deontologia, de moral, do
que marxista e pretensamente revolucionária. Esse “homem livre”, não seria um
revolucionário, pois livre de todas as fantasias, sonhos de riqueza e poder, livre
da tentação de Satã, está mais para uma visão, ou um desejo cristão, de um
pecador cuja morte se aproxima, arrependido ante o criador.
Fausto (Goethe) só
seria homem se, às vésperas de tombar no túmulo que os Lêmures, orientados por
Mefisto, cavavam, pudesse, e já não pode, ter recusado todo hedonismo e vaidade
com que procurou fugir da “angústia fáustica” (de si mesmo, no caso do poeta),
enfim, se pudesse negar, ou melhor, trair, o pacto, para poder recuperar a
juventude, não fisicamente, claro, no sentido daquela que tentara manter no
trato com Mefisto, mas de redimir-se de velhos erros, “conquistando
diariamente” a virtude “rejeitando toda feitiçaria do mundo”, para poder, só
então, ser livre (tão kantiano!), e redimir-se do sentimento do não-feito que o
arrebatava, como também ao já velho poeta. Enfim, libertar-se do jugo do diabo.
Só
assim, seria verdadeiramente livre. Leia-se novamente os versos: “À liberdade e
à vida só faz jus,//quem tem de conquistá-la diariamente”, (pela virtude)
sentido que assenta muito melhor ao autor, Goethe.
Na verdade, ambos, poeta e
personagem, falam pelas palavras de um só, nas sombras de um ocaso, um “l’aprés
midi d’un faune”, de um tempo de profundos niilismo e desânimo, não de utopias
e de revoluções...
Além disso tudo, e amenizando um pouco, convenhamos: ora, Goethe
sequer conseguira cantar a Marselhesa,
dificilmente posso imaginá-lo entoando
a Internacional Comunista. Era notória, como vimos, sua
rejeição pela Revolução Francesa, Mefisto a ironiza fortemente, inclusive
utilizando-se, para isso, de seus bordões revolucionários, a “liberdade” e o
“povo”, essa idealizada personagem marxista: “Vê como o povo está livre e à
vontade!//(...) Espera um pouco, que a bestialidade,/Vai revelar-se sem
demora” ( v 2295 e 2297/2298).
Ou seja, “o povo livre”, que tanto comoveu os
marxistas, não é um povo “livre e à vontade, da Revolução, mas de uma liberdade
presa, deontologicamente, à virtude, de negação à magia e à feitiçaria. “O povo
livre”, se “à vontade”, é a própria antevisão do Terror. Revolucionário? Seria
cômico, não fosse patético.
E foi ao menos nisso, nessa aversão à Revolução
Francesa, que ele, finalmente, se igualou a boa parte de seus contemporâneos,
que rejeitaram firmemente a Ilustração. Vale à pena reproduzir a explicação de
Benjamin: “A burguesia alemã não estava de modo algum suficientemente preparada
para manter, com seus próprios meios, uma atividade ampla. Em consequencia
dessa situação, a literatura continuou a depender do feudalismo, ainda nos
casos em que a simpatia do literato estava ao lado da classe burguesa”. Afinal,
acrescento, sustentavam-se, boa parte deles, como preceptores dos filhos da
nobreza feudal. Além disso, continua Benjamin, e isso é relevante, “essa
dependência representava ainda uma ameaça aos seus proventos de escritor, pois
apenas as obras expressamente autorizadas por decreto tinham seus direitos
autorais garantidos nos Estados do Império alemão”[4]
Somado
a isso, creio que grande parte do conservadorismo do poeta deveu-se a seu
sucesso precoce, na Corte de Weimar, e do consequente conforto institucional,
além, é claro, de uma desejada calma para criar em paz, como mais de uma vez
confessaria. Mas, agora, velho, o que lhe pesava era o tempo, o tempo do porvir
e o tempo do ido, e a consciência de que sobre nenhum dos dois temos qualquer
controle. Mesmo com a ajuda do diabo...
Por outro lado, afastando-nos um pouco
do aspecto puramente político, Goethe fugia de si próprio, de “seus amores”,
como ironizou Gasset, e de sua juventude, a mesma juventude que,
paradoxalmente, fez sua personagem, Fausto, buscar em seu pacto[5]. E,
convenhamos, as utopias, revolucionárias ou não, precisam da juventude, assim
como a velhice de paz de espírito.
Há uma verdadeira obsessão de
Goethe pela negação de sua juventude, e não só a sua, mas de todas as outras,
uma negação – ou fuga – da “tempestade e ímpeto”, dessa conturbada fase de
nossas existências e do seu envolvimento com o Romantismo. Mas, ao mesmo tempo,
uma indisfarçável nostalgia, causada pela proximidade do fim.
6.2 - A Autocensura
E há
mais, para ressaltar o ridículo desse “Fausto revolucionário”.
Vale
destacar os cortes que Goethe, “o revolucionário”, fez, numa estranha
autocensura, em algumas passagens da obra, especialmente, na “Noite de
Valpúrgis”.
Goethe
inicia o seu Fausto ainda em plena “Tempestade e Ímpeto” do pré-romântico, com
23 anos, quando, com 25 anos, em 1775, se estabelece em Weimar (“essa triste
história”, segundo Gasset), a convite do duque Karl August, e ali começa a
institucionalizar-se, talvez jovem demais para a súbita fama.
Lê
para a Corte “ilustrada”, por assim dizer, esse início de seu Fausto, carregado
nas tintas de uma juventude ainda romântica. Luise Von Göuchhausen,
impressionada, pediu ao poeta o manuscrito emprestado e o copiou, salvando das
mãos do próprio Goethe, quando, mais tarde, ele, em seu esmero de
meticulosamente destruir a própria juventude, tentou fazer desaparecer aquilo
que hoje conhecemos por “Urfaust”. Essa cópia, bendita e sorrateiramente salva
por Luise, só foi encontrada em 1887, cinquenta e dois anos, portanto, após a
morte do autor, que imaginou ter levado consigo a versão que negara. Como são
bem vindas algumas pequenas traições e falhas éticas de desrespeito à vontade
dos autores!
Mas
não só o “UrFaust” foi vítima da rejeição e da tesoura do poeta, os principais
cortes se deram, posteriormente, na “Noite de Valpúrgis”, mas algumas passagens
extirpadas, afortunadamente, foram preservadas, dessa vez, talvez por vaidade,
pelo próprio Goethe. Quais foram e o que teria causado essa autocensura? Apenas
questões estéticas, ou poderíamos supor questões outras?
Pode-se
sugerir que o Classicismo abraçado pelo poeta no segundo Fausto, tingia-se de
forte rejeição ao Romantismo, o que, efetivamente, era verdade, uma ruptura com
a “tempestade e ímpeto” de sua juventude, sobretudo no que trazia de
mefistofélico, violento e perverso erotismo, que Goethe, se autocensurando,
retirou, numa atitude que ainda hoje gera interminável polêmica.
Leia-se,
como exemplo dessa rejeição e ruptura com os românticos, no Fausto II, na
rubrica posterior aos versos 5.295 e seguintes: “Os poetas noturnos e macabros pedem desculpas por estarem numa conversa
interessantíssima com um vampiro recentemente criado, na qual vêm a
possibilidade do surgimento de uma nova forma poética; o Arauto se conforma e
convoca entrementes a Mitologia grega, a qual não perde seu caráter de encanto
apesar das máscaras modernas”, onde claramente sobressai a dicotomia
romântico/clássico (enquanto, ao mesmo tempo, ironiza alguns classicistas),
formando quase como que uma síntese da tragédia.
Mazzari, a respeito dessa
passagem, afirma, com razão, ser uma “nova
alusão irônica do velho Goethe a poetas românticos ‘que se ocupam do
abominável’, como anota em seu diário em março de 1830, enumerando os motivos
literários que tanto o incomodavam: ‘Igrejas noturnas, cemitérios,
encruzilhadas” e, acrescentando uma conversa de Goethe com Eckermann, em
1830, “em lugar do belo conteúdo da
mitologia grega surgem demônios, bruxas e vampiros”.
Logo bruxas e
demônios que ele tenta negar e exorcizar? Goethe, aqui, tenta arrefecer de vez
a “tempestade e ímpeto” de sua juventude, negando-a, e, com ela, o próprio
jovem Goethe.
Creio que esse conflito
manifestou-se, primeiramente, na tentativa de destruição do “Ur Faust” (ou
protofausto, ou, ainda, Fausto Zero), salvo, como dissemos, por Luisa, como
quem quisesse destruir (fugir d)a juventude; mas atingiu muito maior
intensidade mais tarde, na mutilação da Noite de Valpúrgis, censurando-a, dela
extirpando os trechos que considerou inadequados, e “despejando-os” todos no
que denominou “Saco de Valpúrgis”.
Ao menos este último “saco” sua vaidade,
felizmente, não o deixou destruir, o que nos permite conhecê-lo.
Mas, dirá o
erudito leitor, implacável com tamanha falha em minha cronologia. Ao que
parece, afirmará, aqueles que se aprofundaram na gênese dos dois livros, tendo
em vista os registros de pesquisas que o poeta fazia em bibliotecas públicas, a
“Noite de Valpúrgis” foi escrita entre 1797 e 1805, com quarenta e oito anos,
não fazendo parte nem do Ur Faust, nem do Fragmento publicado em 1790
(Mazzari), nada com a juventude do poeta.
Interessante, e, mais uma vez,
paradoxal.
Ora, então foi obra de maturidade! Isso poria por terra todo o meu
raciocínio? Como explicar essa aparente incongruência cronológica?
Nenhuma
incongruência. Não contando, claro, não tenho tamanha veleidade, com o equívoco
dos grandes estudiosos da obra de Goethe, não é de todo improvável que tais
registros de juventude, embora inseridos numa parte escrita na maturidade do
poeta, possam ser debitados a uma revisitação do texto escrito anos antes,
afinal, foram sessenta anos, salvando-os e os reaproveitando, deixando as partes
mais inconvenientes dentro do “Saco”, escondidas.
Parece-me - e não consigo
ver outra explicação, pois tais textos extirpados fogem completamente aos
propósitos estéticos de sua maturidade - que o poeta, remexendo o “Saco de
Valpúrgis”, em busca do jovem que foi, e que tentava matar, tendo se deparado
com alguns versos guardados, talvez esquecidos, dos quais não poderia (e não
queria) fugir, a eles se afeiçoou, como quem se afeiçoa a uma foto antiga, e
tentou reaproveitar alguma coisa de sua juventude inquieta, salvando-os da
lixeira, mas depurando-a, numa quase secreta visita a si mesmo. Só assim vejo
sentido nessa cronologia.
Afinal, e principalmente, ora, não faz qualquer
sentido em criar um “saco” para depositar o que acabara de escrever!
Então, creio
que podemos ler a “Noite de Vapúrgis” preservada como uma espécie de um tardio
“rito de passagem”, tanto de sua juventude para a maturidade, quanto do
Romantismo para o Classicismo e do Primeiro para o Segundo Fausto. Se Goethe
extirpa as partes mais “pesadas” da “Noite de Valpúrgis”, no Primeiro Fausto, posteriormente,
no Segundo Fausto, faz o contraponto com a primeira (ou primeiras) noite,
fazendo-a desaguar na “Noite de Valpúrgis Clássica” (que Verlaine transformaria
num doce e enfadonho delírio francês), esta, sim, a toda evidência obra de
maturidade, o verdadeiro rito de passagem da idade adulta para a velhice,
transformando essa a noite que fora o Sabat das bruxas e de Satã, numa noite
“clássica”, uma consciente e hábil passagem do delírio gótico para o
classicismo.
6.3 - Os motivos da autocensura
O que
não se sabe, e provavelmente nunca se saberá, é se tal, digamos, autocensura,
se deu por motivos puramente estéticos, ou se o que precipuamente motivou Goethe
foram questões morais (ou moralistas), um oportuno conservadorismo medroso, ou
mesmo todos os motivos acima, se é que isso tem alguma importância, mas que
para nossa leitura particular traz alguma relevância.
Claro que elucidar tal
mistério se revela muito difícil, quase impossível, ao menos nos limites deste
texto, pois são motivos carregados de subjetivismo, dos quais tanta vez sequer
o autor se dá conta, pois se a história a nós se despe, ou é contada, com maior
peso nos fatos, ou seja, tenta-se revesti-la de objetividade, embora plasmada, por
inevitável, com a subjetividade; a vivência individual é predominantemente
subjetiva, repleta de “sacos” e paralipomenons (em grego, significa “deixado de
lado”),
onde guardamos, muitas vezes de nós mesmos, o que gostaríamos manter em segredo.
O
que podemos afirmar é que sessenta anos debruçado sobre um mesmo poema
possibilita - ou trabalho não teria o menor sentido, além de partir do falso
pressuposto de que o escritor não tenha sofrido o passar dos anos - inúmeros
experimentos, idas e vindas, cortes, releituras e “refazimentos”, que serão bem
ou mal sucedidos, conforme emprestem maior aprimoramento estético, como, aliás,
se deu com a bem sucedida inversão do assassinato de Valentin, irmão de
Margarida, para antes da missa em homenagem à sua mãe, dando ainda mais
dramaticidade (e culpa) a essa última cena (Mazzari).
Mas será, é a pergunta
que me faço, talvez também gótico e delirante, que o mesmo resultado estético
bem sucedido se deu com os cortes perpetrados pela autocensura de Goethe? Será
que certa, digamos, iconoclastia, não deveria ter sido mantida, retirando-se
apenas alguns poucos excessos? Afinal, de Satã tratamos e de bruxaria (e de
juventude!), que, em toda história da humanidade, revestiram-se de erotismo e
perversão, do medo do sexo feminino devorador, que tanto perturbou a Igreja
Católica, durante a Inquisição e mesmo depois, a Luterana, e à Goethe, e vem perturbando até hoje as
civilizações, como podemos literalmente ler, num dos trechos extirpados e
guardados na proteção medrosa do “Saco de Valpúrgis”: a fala de Satã, de forte
conotação freudiana “avant la letre” (mas não muito): "Duas coisas há para vós/Magníficas e grandiosas/O ouro reluzente/E o sexo da mulher/O primeiro proporciona/O outro
devora".
O
próprio Goethe, numa conversa com Johannes Falk, trai a vaidade medrosa e
atormentada que o impediu de destruir os originais extirpados da “Noite de
Valpúrgis”, da qual falamos acima, confessa: “E quando, após a minha morte, o
meu Saco de Valpúrgis vier a ser aberto e todos os demônios estígios nele
encarcerados se libertarem de novo para o tormento dos outros, tal como
atormentaram a mim, (...) então creio que os alemães não me perdoarão tão cedo”[6].
Verdade,
Goethe, seus contemporâneos não perdoariam a manutenção de versos de tal forma
sacrílegos e obscenos, da mesma forma como nós não perdoamos seu corte. É
imperdoável que um poeta, no afã de fugir de si mesmo, fingindo-se integrado
aos seus, preocupe-se com possíveis leituras que farão de sua poesia, negando-se
a si próprio e, pior, à sua arte.
Mas, se as edições à época (e ainda hoje)
traziam as chamadas “reticências de decoro”, como no trecho das bruxas em coro,
cantando: “por paus e pedras tudo acode,/...a bruxa, ...o bode” (“peida a
bruxa, fede o bode”), como ficariam essas edições e seus dignos leitores se
trouxessem em seu corpo os chamados “Paralipomenon”, quando se sabe que era ainda mais forte o texto original: "Vomita
a bruxa, caga a porca".
“Paralipomenon”, bom repetir,
em grego, significa “deixado de lado”, e se o foram por motivos estéticos ou
por autocensura, ou por ambos, nunca saberemos com exatidão, mas sobre isso não
são difíceis algumas ilações. O próprio Goethe a eles se referiu como “uma
espécie de câmara, receptáculo, saco infernal ou como quiserdes vós chamar a
coisa”.
A coisa...
A maioria da crítica aponta o motivo dos cortes mais para
o medo do escândalo, do que propriamente por questões estéticas. Há mesmo aqueles que tentam dar um sentido mais nobre, mais filosófico, à
retirada da “coisa”, afirmando que os trechos foram retirados, pois a “aparição
soberana e absolutizada da figura de Satã comprometeria a noção do Mal como
intrinsecamente vinculado à liberdade humana”, o que me parece interessante,
pois soa a Kant, e sabemos da admiração que Goethe e Schiller tinham pelo
filósofo (ao menos pela “Crítica do Juízo”).
Entretanto, claro que o ritual
sacrílego de Mefisto beijando o ânus de Satã, essa estranha iniciação
("tão gostoso assim não deve cheirar o Paraíso") que, diga-se, não
foi criação de Goethe, mas fruto de suas pesquisas sobre os cultos satânicos, seria
forte demais para um poeta institucionalizado, mas, sem dúvida, prestava-se a
mais uma critica ao comportamento adulatório de seus contemporâneos em relação
ao Poder, comportamento este do qual Goethe não se afastava inteiramente,
afinal, ele, dentre outras “conveniências sociais”, durante muito tempo
organizara as festas da Corte...
Creio que foram todos esses
motivos, mais um, que levaram ao corte de várias cenas, pois um não exclui o
outro. Todavia, tentando perceber “a coisa” com as lentes da leitura a que me
propus, a hipótese moralista, tradutora dos conflitos internos do poeta, que o
fizeram empreender a fuga para e de si mesmo, me parece mais sedutora, sem
descartar, óbvio, as questões estéticas subjacentes.
É a hipótese que me parece,
apesar de lamentável, a mais provável. Lamentável, pois versos tão sacrílegos seriam
perfeitos, dentro da cuidadosa ourivesaria do poeta alemão, num anticlímax para
a redenção de Fausto e para o resgate de sua alma por Deus. Mas ele preferiu
deixar bem fechado o saco
em que guardou, mais uma vez, seus “daemons”, que não poderia ser aberto, ou
ele escandalizaria a Corte que Gasset, entende-se agora, chamou de "essa triste história de Weimar".
Mas,
caro Goethe, foram justamente seus “daemons” que deram o mote dessa excepcional
tragédia!
Entretanto, tentemos, calcados na generosa lição de Unamuno, compreender
o velho poeta. Se o que foi deixado na tragédia por Goethe, o erotismo quase
sutil da Noite de Valpúrgis, a dança de Fausto com a bruxa nua, já provocou
algum escândalo, exigindo as “reticências de decoro”, o que diriam seus
contemporâneos se se deparassem com o “Saco de Valpúrgis”? Como disse seu amigo
Riemer, que colaborou na edição de 1836, em carta, “nosso público, constituído
em sua maioria por mulheres e moças, jovens e rapazes (...) ensejarão antes o
escândalo do que a edificação”, sugerindo, o que é ainda mais trágico, que teve
dedo alheio na censura.
Tal comentário, que tangencia o cômico, explica, senão
tudo, bastante de tudo, não só do episódio do corte, como do próprio autor, e
talvez revele um pouco do porquê de sua recalcada antipatia pelos seus contemporâneos,
pois, se não tinha coragem de enfrentá-los, tampouco os digeria com facilidade,
e não era para menos, daí a necessidade de nossa condescendência, pois já
enfrentara a ira moralista nos
versos quase inocentes das “Elegias Romanas” ("Mais de um poema rimei em seus braços/Tocando suas costas suavemente").
A
tranquilidade buscada, que alcançaria na maturidade, e que deixou trair no
segundo livro, na “Noite de Valpúrgis Clássica” e no aburguesamento de Fausto,
e também na sua redenção nas cenas finais, que faz sobressair a fraqueza do
mal, essa tranquilidade estaria sensivelmente ameaçada pela manutenção dos
trechos extirpados.
Fausto, na cena cortada da “Noite de Valpúrgis”, dança no
Sabath com Lilith, “a esposa número um de Adão”[7], nua,
sonhando com ela sonhos conjuntos eróticos. Mas, depois de ver pular de sua
boca “um rato vermelhinho e vil”, que interrompe, diabolicamente, qualquer
processo erotizante, dela se afasta, ao ter a visão de Margarida, julgando a
feiticeira parecida “com minha boa Margarida”, símbolo da terrível culpa que
carregava por causa do erotismo com que seduzira a mocinha romântica, a quem
levara à desgraça.
Goethe, intencionalmente, retirou a violência do escatológico,
do erotismo sacrílego, censura que, creio, foi fruto da maturidade, e que
terminou por “contaminar” a “Noite de Valpúrgis”, mas permitiu vir à luz um
estranho, mas suave erotismo, o suficiente para vislumbramos um rito de
passagem tardio.
...
Mas, repito a pergunta inicial: Goethe era um
reacionário, um egoísta medroso, ou apenas um escritor que queria seguir
trabalhando em paz?
A paz buscada era, naqueles tempos conturbados pelas
mudanças sociais, uma procura semelhante, embora por razões radicalmente
distintas, à de Kant, que, antecipando-se a seu tempo, começara a escrever “A
Paz Perpétua”, antevendo, em 1795 (!), uma jurisdição internacional, ambos
temerosos dos últimos acontecimentos em Paris.
O que têm, neste ponto, em
comum o poeta e o filósofo alemães?
Além da contemporaneidade, da estranheza e da genialidade, o fato de pertencerem a um povo essencialmente bélico, cuja vizinhança conflagrara-se, e ansiarem a paz para pensar e trabalhar.
Talvez Gasset tenha exagerado ao classificar Goethe de “liberticida”, a tanto não chegaria, embora, estivesse longe de ser um libertador, como pateticamente ele próprio se acreditava, alguns marxistas e, muito mais tarde, Alfonso Reyes. E nisso Carpeaux é exato, quando afirma “que sua atitude não era do político reacionário, antes a do artista e erudito que teme a perturbação de seu trabalho”.
Correto, mas soa paradoxal, porque, embora justificadas, se, politicamente, o poeta se alocou no espectro da reação, esteticamente, creio, e também em relação à Igreja, nada teve de conformista.
Fausto, voltando à Noite de Valpúrgis, recusando o convite de Mefisto de subir o Monte Broken, recusando o orgiástico ritual, rendendo-se à autocensura e ao projeto estético da obra, evita o Diabo, e não sobe o Monte, deixando esteticamente marcado o ponto da narrativa onde o poeta introduziu a sua tesoura. Lá, naquela montanha, a personagem ouviria o sacrílego sermão de Mefisto, consagrado ao ouro, ao falo e à vagina, num visível repúdio à fé cristã, mas que ficaria comodamente confinado dentro do “Saco de Valpúrgis”, tentando calar o sacrílego, que se manifestaria também na paródia do Sermão da Montanha, cruel metáfora dos "bodes à esquerda, e cabras à direita", ditas por Satã. No fundo, Goethe, talvez secretamente esperasse que alguém resgatasse do “saco” tais passagens, tanto que não as destruiu, com tentou fazer no “Ur Faust”, mas, prudentemente, manteve-se equidistante de Deus e o Diabo, talvez pelo medo que tinha da morte, e que aflorará ao final da tragédia. Todavia, mesmo com essa prudente estética goethiana, nas últimas cenas do livro, o anticlericalismo ressurgirá.
Mas é hora do próprio poeta responder à pergunta: Goethe era um reacionário, um egoísta, ou apenas um escritor que queria seguir trabalhando em paz?
A resposta, ele mesmo nos dá, em seu livro de memórias, Poesia e Verdade, logo em seu início: “Tudo que expus até aqui relaciona-se com essa situação feliz e fácil em que se encontram os Estados durante uma longa paz”[8], paz sonhada por Kant, ainda que essa paz, sob Frederico II, se travestisse de algum pantanoso autoritarismo.
Além da contemporaneidade, da estranheza e da genialidade, o fato de pertencerem a um povo essencialmente bélico, cuja vizinhança conflagrara-se, e ansiarem a paz para pensar e trabalhar.
Talvez Gasset tenha exagerado ao classificar Goethe de “liberticida”, a tanto não chegaria, embora, estivesse longe de ser um libertador, como pateticamente ele próprio se acreditava, alguns marxistas e, muito mais tarde, Alfonso Reyes. E nisso Carpeaux é exato, quando afirma “que sua atitude não era do político reacionário, antes a do artista e erudito que teme a perturbação de seu trabalho”.
Correto, mas soa paradoxal, porque, embora justificadas, se, politicamente, o poeta se alocou no espectro da reação, esteticamente, creio, e também em relação à Igreja, nada teve de conformista.
Fausto, voltando à Noite de Valpúrgis, recusando o convite de Mefisto de subir o Monte Broken, recusando o orgiástico ritual, rendendo-se à autocensura e ao projeto estético da obra, evita o Diabo, e não sobe o Monte, deixando esteticamente marcado o ponto da narrativa onde o poeta introduziu a sua tesoura. Lá, naquela montanha, a personagem ouviria o sacrílego sermão de Mefisto, consagrado ao ouro, ao falo e à vagina, num visível repúdio à fé cristã, mas que ficaria comodamente confinado dentro do “Saco de Valpúrgis”, tentando calar o sacrílego, que se manifestaria também na paródia do Sermão da Montanha, cruel metáfora dos "bodes à esquerda, e cabras à direita", ditas por Satã. No fundo, Goethe, talvez secretamente esperasse que alguém resgatasse do “saco” tais passagens, tanto que não as destruiu, com tentou fazer no “Ur Faust”, mas, prudentemente, manteve-se equidistante de Deus e o Diabo, talvez pelo medo que tinha da morte, e que aflorará ao final da tragédia. Todavia, mesmo com essa prudente estética goethiana, nas últimas cenas do livro, o anticlericalismo ressurgirá.
Mas é hora do próprio poeta responder à pergunta: Goethe era um reacionário, um egoísta, ou apenas um escritor que queria seguir trabalhando em paz?
A resposta, ele mesmo nos dá, em seu livro de memórias, Poesia e Verdade, logo em seu início: “Tudo que expus até aqui relaciona-se com essa situação feliz e fácil em que se encontram os Estados durante uma longa paz”[8], paz sonhada por Kant, ainda que essa paz, sob Frederico II, se travestisse de algum pantanoso autoritarismo.
[1] The Maxims and Reflections of Goethe – tradução para o ingles Bailey
Saunders, New York, The Macmillan Company – eBook Project Gutemberg –
2010 – Ebook 333670 – em tradução
livre
[2] Este artigo foi escrito como parte do capítulo “Fausto, a Fuga como Grandeza e Tragédia – Apenas mais
uma Leitura”, do livro “Museu de Cinzas”, em construção. Ambos não têm quaisquer veleidades acadêmicas, cuida-se apenas do esforço de um pretenso poeta que tem o péssimo hábito de ler e escrever sobre o que lhe fascina, para ajudá-lo, como dizia Macedônio Fernandez, a pensar. Além de acreditar firmemente que o pensamento não tem dono
[3] Gasset, Jose Ortega y -
Goethe, El Libertador. Obras Completas – Tomo IV – 1929-1933 - Sexta Edición,
Revista de Occidente, Madrid, 1966. Pg 423 . Em tradução livre.
[4] Benjamin, Walter – Ensaios Reunidos sobre Goethe – tradução Mônica
Kraus Bornebusch, Irene Aron e Sidney Camargo – supervisão Marcus Vinícius Mazzari – São Paulo, Editora Duas Cidades e 34 - 2009
[7] O demônio feminino rabínico, anterior a Eva, linda mulher que se
afastaria do primeiro homem, pois com ele não se entendia.
[8] Goethe, Johann Wolfgang von – Memórias: poesia
e verdade. Tradução Leonel Vallandro. Porto Alegre, Globo, 1971
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