quarta-feira, 24 de agosto de 2016

ESCATOLOGIAS


ESCATOLOGIAS 1

Teias envolvem a Terra, tentáculos
paralisam seus braços imaginários
suas pernas que andam em círculos

Depois se alastram, subcutâneas
eram teias da terra, agora veias
tornam-se embolia subterrânea.

O planeta apodrece em gangrenas
azuis, tomado de hematoses, este
nosso fim: um escatológico poema.



ESCATOLOGIAS 2

Partiu-se o planeta
partiu-se o homem
partiu-se o que nunca foi uno

E eu, solto e só
parte perdida no espaço.
Exatamente onde sempre estive.



ESCATOLOGIAS 3
(E então Palavro)

                                                                                  A João Autran Nebel

1

Imerso na madrugada imensa caminho
com sombras de mim por todos os lados,
De um norte da noite procuro, quando
ou mesmo - se já tarda - se virá o dia,
(quero ter a certeza de que estou vivo).
Essa a minha doença e minha agonia
de querer ser vigia do sono das gentes.

O pio de uma coruja trinca a madrugada,
angústia do vôo dos pássaros noturnos,
mas logo um galo empluma a luz, canta,
me acalma, e começa a tecer seu turno.
O sol estala a leste, fiel, afinal aponta
no mesmo ponto do pequeno horizonte
de rio. Contrário a mim, não tem pressa,

sabe, como sei, um dia invernaremos,
levaremos conosco um rastro de noite,
morte e silêncio, por isso tem calma
em nos trazer o pesado fardo do dia.
Vem, e me põe em estado de poesia,
pequena poesia, perdoai, deste poeta
menor, tão muito menor que Bandeira.

Nela não cabe a visão que me sobra
do jovem nu, coberto apenas pelo sujo
véu esverdeado da camisola de hospital.
Olhos esgazeados, perambula as ruas,
com bandagens que acenam, bandeiras
de uma guerra há muito perdida, fincadas
na pele azul, nas veias azuladas de lua.

Na mão direita o soro que roubou na fuga,
o que sobrou, senão da razão, do instinto.
Na esquerda, o coletor transborda o mijo
da vida resumida ao deserto dos becos,
o cola junto ao rosto, busca-lhe o calor,
as esperanças craqueladas e perdidas,
todos presos entre seus dedos convulsos.

Atrás dele as ataduras que o prendiam
ao leito caem, rastro do resto dos sonhos
como um novelo precocemente desfeito.
Tento recolher da calçada algum resto
de versos, com rima e zelo talvez colá-los.
É inútil, o frágil cesto das palavras rasga
com os cacos da métrica do desespero.

Conheço seu filho, é o fruto de um amor
- e não tenho palavra melhor - fugaz
numa esquina de uma praça suburbana,
hora súbita do Súcubo solto nas ruas.
Apenas a pálida luz da lua o ilumina
enquanto, pietá, sua mãe o amamenta
com a fumaça que o seu leite envenena

São esses seus pais, que nome têm?
Os chamo ninguém, cegos polifemos.
Dela, desespero e desprezo de infernos,
dele, o soco, o escarro no rosto diário.
Meio a cheiros de dor, de porra e leite,
da boca ainda virgem de menino, suja
de dor, exala outro odor, chamado horror.

No mesmo canto dessa praça concebido
noturna e saturnamente seu pai o viola,
até que um dia o filho revifica-se violento
e rompe os diques que nunca existiram
até explodir contra um homem alheio
a praças e fumaças, apenas um homem
inocente. Não sei traduzi-los, então calo.

2

Pequeno o meu alforje, por isso as penas,
de carregar o peso que o verso não forja
ferro e pedra que sobram na minha boca
meus ombros torturados da palavra pouca.
Tenho medo que se parta a parca poesia
ante os que deambulam ao peso da tortura
nevoeiro da desmemória e do abandono.

Sobram do poema a loucura e a velhice
sem história, cujos olhos cegaram na ponta
do amor desfeito dos filhos, laços frouxos
da memória, perdido o frágil fio da lucidez.
Não cabem na letra miúda e feia dos versos
dissonantes as rimas que não posso buscar,
pois a realidade não admite consonâncias.

Não sei recriá-la, menos querer que destino,
paralisia, minha poesia é ínfima, obscena,
não por ob cena, à imunda pocilga guiando,
ob scenus, ela está fora do palco do mundo,
pois nada do que verdadeiramente importa
aos homens em sociedade cabe no poema,
tão precário quanto a luz difusa deste dia.

E é tanto o que não cabe em minha poesia
que calo, tenho medo de mais não caber
daquilo que jamais coube, sobrar e deitar
sobre minhas noites insones e meus dias
talvez acordado em excesso. Por isso paro,
risco o que agora escrevi, isso não é poesia,
(e temo que nada do que até hoje escrevi).

Mas tenho medo de emudecer, daí palavro,
minha voz treme de frio e fome, entredentes
trago um verso tão avaro que nada guarda,
só o que lhe resta é o que apenas pressente,
o que lhe sobra, sua vigília insone e maldição:
ser apenas este indigente vigia dos sonhos,
dos sonhos perdidos que trazem as gentes.



ESCATOLOGIAS 4
(Falso Êxodo)

I

Conheço esses homens, quem são e como caminham
num silêncio conformado, carregam uns olhos bovinos
e apascentados, enquanto roçam os corpos num arado
que sulca as peles e suas almas na lavra da angústia,
na colheita seca de seus veios finos. Lâminas fincam
fendas e ficam as marcas na terra estéril das carnes
de onde nada colherão, senão frutos poucos e podres.

Caminham no nada e nada perguntam, que terra aram,
e são arados, deambulam por um prado (ou labirinto?),
andam cabisbaixos e catatônicos num silêncio atônito.
Não sabem quem são, senão que são filhos do destino.
Um caleidoscópio de cicatrizes lhes desenha os ombros,
são a memória das peles marcadas por verões suicidas
e avassaladores dezembros, esse mês em que a solidão

Faz do tempo escombros e a falsa euforia das gentes
lacera-nos lâminas lancetando a frio nossos membros.
Sangram na noite e espreitam as festas pelas frestas
da solidão, têm o olhar ferido pelas alegrias coletivas,
mas repelem as furtivas línguas que insistem em fugir
das bocas de amor à míngua, lhes rasgando com nojo
os lábios crispados, num beijo que arranca antes horror

Que gozo. Ritos, risos obscenos no enxame dos dentes
que lhes mordem violentos as peles, até o esgar mudo
do masturbatório orgasmo dilacerado dos homens sós.
Vestem os andrajos das angústias de um Dioniso doente
e velho, bacos cegos com quem dançam sujos de medo.
Trazem medalhas de sangue nos olhos, são as láureas
da nobreza da dor, olhares escarlate de silêncio e ódio.

Conhecem todos os ritos dessa seita na qual celebram
o próprio pânico e o prenúncio dos suicídios em silêncio,
caminham calados, não é, porém, por contemplação,
mas a mudez doída do mais puro substrato da solidão.
Dos prados arados nas peles surge afinal a paisagem:
brota das várzeas, onde dança essa gente em êxtase,
a planta tísica que sugere uma rara flor fatal e breve.

Os corpos nus apodrecem num balé, uma festa real,
pois somente é real a festa se celebrada com horror,
desesperar da manhã e desistir do ciclo inútil do sol,
sua viagem em torno do nada, cujo destino é nenhum.
É real, se sua música vier envolta no trágico mistério
dos que caminham calados nas aléias dos cemitérios,
nas mãos e no gesto as ruínas que restaram do amor.

São eles que vendo chegar a lâmina abrem os braços
e entregam ao algoz o gozo do corpo como ofertório,
bebem o sêmen de quem os escraviza, estranha anima.
Se amam, deixam que cortem os olhos sonhos ilusórios
até que o abandono brilhe a beleza última de ser caça.
Deitam-se com a morte, morrer, nunca encontrada rima,
gozo letal entre as pernas da velha puta que os abraça.

2

Restos desses quase homens passam por aqueles umbrais,
com eles passam outros, como eles iguais e anônimos:
os diariamente abandonados nos cais dos manicômios,
no degredo das almas delirantes de solidão. Dementes,
deambulam sem rumo pelas estradas, fuga desesperada
dos desertos desconexos dos seus quartos de hospitais.
Foi vão esperarem pelo barco sem velas dos seus pais

Tudo inútil, todos sabiam que logo ela viria, a velha Nau
dos Insensatos, suas sirenes torturando e tempestades
de luzes e seringas. Um a um vai recolhendo aos ofícios
do medo, vingando-se da fuga com convulsões noturnas,
deixam os músculos impregnarem-se por pirâmides laicas
e as algemas dos fenergans negados, as camisas sujas
e as torturas, as lobotomias dos manietados lobos do ser.

Braços brancos brutais os atiram ao degredo da vontade
e dos desejos perdidos, à imposta paz  do nada, tortura
diuturna que os fará urrar de dor sem delírio ou sentido.
Linhas de fios convulsos contorcem e tecem nas almas
o desenho do destino e costuram cicatrizes de nuvens
nos sorrisos aparvalhados dos desaprendizes do choro,
olhos secos de desatino. E a pena de sofrer em silêncio.







3

Não se sabe em que momento, sugados por qual quasar,
os planetas estancaram retendo a expansão do tempo,
quebrando a lógica das horas, fundindo vivos e mortos.
Aqui, o homem futuro e ancestrais caminham em silêncio,
abraçados no mesmo espanto. Não se parecem, vestem
no entanto, roupas iguais: os mesmos trapos atemporais
que sempre envolveram e irmanaram no vínculo do horror.

Os panos rotos cobrem esses que se odeiam e se amam,
manto da amálgama maldita de ser dos enjeitados da fé.
A moderna peste cibernética abraça as antigas erupções
das faces, os olhos fundos nas peles vincadas de vales,
bandeiras, bandagens sujas, rostos cobertos, submissos,
e nos olhos as marcas do gesto da expulsão das missas
o andar de quem caiu, mas esqueceu o gesto do tombo.

Nos pescoços apascentados levam seus pequeninos sinos
que tocam afastando a gente, os bronzes dobram na dor
do desprezo, liturgia da antimissa onde se celebra a lepra,
se consagra o cálice da solidão e a confissão contagiosa
e humilhada, eucaristia e agonia dos banidos dos templos,
dos santos expulsos das procissões aos gritos e escarros,
hóstias recusadas, pois desvendaram os mistérios da fé.

Silenciados pelo pânico do contato das peles inflamadas,
suas hóstias repugnantes e repugnadas pelo pão amargo
do desprezo na cruz da solidão dos doentes contagiosos.
Eucaristia dos rituais que fraquejam de nojo nos lava-pés
pústulas supuradas, sacrifício que nenhum bispo beijará,
o perdão distante e sem confissão, afasta de mim o cálice
do contágio. Um brinde de pus aos bispos beatificados!
















4

Vieram outros refugiados da fé ou da falta de fé, ao fogo
jogados por cardeais purpurados, acendem, prazerosos,
todas as piras pela purificação dos pecados. Penitentes,
crepitam em corais de povo e brasas, bruxuleio de gritos
xingam as que um dia amaram nos tapetes da cabala,
nos sabbaths, nas esteiras da infâmia. Vestidas de coral
e chamas, derradeira grinalda das bruxas sem Valpúrgis.

















Juntos, os fugitivos dos xamãs, charias e profetas, Nabís
das bíblias e bulas papais, os semanalmente humilhados
nas homílias dominicais, e por orgulho, medo ou vergonha,
jamais se confessaram. Nos corpos o suor sem esperança
cicatrizes das palavras e pecados nas peles descarnadas
a frio por deuses sem piedade, criados à nossa imagem
e semelhança, marcando a fé e fogo tatuagens nas almas:

Traço das chagas dos penitentes, as cicatrizes deixadas
por mãos obnubiladas do ódio da cegueira dos crentes,
cospem nas mulheres infibuladas, nas amantes lapidadas,
lápide do próprio luto, diariamente humilhadas pelo medo
da pena do açoite no corpo negro, dia nenhum as vestem
nenhuma vida ou cor, mulheres resumidas a olhos pedintes
de vida e amor, réstias de mulher no rastro do cheiro azedo.

5

Caminham com todos que nasceram condenados ao frio,
que ainda fetos foram envolvidos, marcados pela manta
gelada da lã da angústia e do medo. Desde então trazem
nos olhos de súplica sempre a mesma sensação de dor,
os persegue desde que rasgaram os ventres das mães:
o espanto de terem chegado cedo. Olham-se assustados,
buscam-se, tocam-se, e a lembrança da lepra os afasta.

Cedo cravam os dentes nos lábios crispados pelo esgar
do medo, em silêncio perguntam: “há outra? outra casa,
se casa for, ou mesmo outro corpo, qualquer outra mãe
que me reconceba, finalmente me receba em seu ventre
outrora hostil e me tenha sem desejos nos seios murchos.
Pouco importa que seja santa, puta, abstêmia ou viciada
venha no vento do crack macerando os olhos à navalha.

A esses mesmos olhos, de bom grado, me entregaria
a essa puta parida no cais que me daria seu regaço sujo,
eu beberia com sede do seu leite úmido de amor e HIV,
voltaria a perambular pelas ruas com fiz em seu ventre
dormindo meio aos gritos e porradas nos santos dentes.
A tudo isso me daria, desde que seu seio agora flácido
me saciasse da visão sedenta dessa corte de dementes”

6

Neste pathos, pátio de horrores, eles chegam esquivos,
entram na casa sem cores, sombras rentes às paredes,
os que viam partir barcos barra afora e ficavam no cais,
esperando em vão na gare, à beira do salto, um navio
chamado “Jamais”. Nautas de terra firme, homens banais,
olhar à deriva, somem no horizonte sem nada descobrir.
Argonautas sem remo, esquecidos pelos deuses, atônitos

Viram em velas pandas partir descobridores de mulheres
e mares, sem coragem, ficaram sós num porto sem vento
que lhes inflasse velas e peito. Nos seus olhos sem rumo
restou um sopro de tempo, calmaria dos covardes, vento
que nada leva ou traz. Navegam no madeirame do porto,
imóveis nas tempestades sem vento, o Éolo tísico sopra
a brisa da desistência, seu destino circular de serem cais.

No mesmo porto as que dizem ai entre ais de falso gozo,
gonorréias e porrada, os navios partiam, enquanto filhos
lhes atracavam no cais do ventre, filhos fardos de fugazes
amores nas brumas da luz lilás, atracando desatracando
entre as pernas, meio a rosas já transfiguradas de tempo,
murchas sob seios despetalados, rosas secas e sem leite,
navegam nas noites do porto, choram mares, marés, rotas

improváveis que trouxeram o homem sem rosto ou nome.
Entredentes trazia uma rosa rubra e a faca que um dia
lhes cortaria a face e a rosa imprestável; mênstruo tardio
lhes escorreu entre as pernas, nunca mais seriam pasto.
Velhas e abandonadas dormem sob as luzes banguelas:
“Love Story Nigth Club”, memória de um navio sem lastro
que adernou, rastro qualquer de mar que a maré levará.

7

Um olho se entretece a outro olho e a outro olho procura,
na trama da esperança de saber se houve um homem,
um só, fugido do drama de ser o próprio  inferno, traga
notícias de um vento que enfune velas no tempo e conte
a todos os mistérios que a poucos se revelam: os sinais
de uma tarde que imaginam delirantes acontecida, tarde
que um homem e uma mulher se amaram sobre a relva.

Vento ecoando o gozo. A imagem esvaneceu no tempo,
restou a tessitura dos olhares cruzados, revelam o ódio
que subjaz ao medo e a trama da esperança esgarçada
de meninos viciados. Seviciados, balançam nos abrigos,
holocausto tropical: enforcaram-se nas veias colapsadas
de pó. Nos pêndulos ao vento enfunados penduram-se
outros suicidas, os imaginam mastros do tempo findo.

Velas de partida? Ninguém partiu ou partirá das sombras,
as velas rotas nos mastros dos corpos mortos, balançam
suaves em silêncio. Na paixão da fuga, desatino, correm
os que sonham o destino de abismos, porto impossível,
no vértice vazio do voo em espiral, ícaros transtornados,
traçam o vão no vácuo, hybris que se abre entre Morfeu
e Tânatos, agitam os braços dementes, depois as pernas,

E iguais na morte se entregam à sorte do solo arenoso.
Alguns poucos ainda buscam um fio de bússolas tontas
sussurrando o vento norte, mas não há vento nem norte,
apenas essa vaga esperança da fuga. Ombro a ombro
suores em febre misturam-se afluentes, roçam as peles
em pânico no rumor da força da multidão amalgamada
fúria de quem se descobre insepulto e sem escatologia.

Eis cheiro da fuga do homem: suores, urina e excremento,
réstia de fé que lhes resta. Chutam as cabeças exangues
crêem-se despidos do medo, mas é furor de fuga que cega,
não é vida o que tecem em pânico, é apenas outro ponto
do próprio e profano sudário. Imaginam ecos de homens,
correm à última esperança entre poças de merda e sangue.
Súbito, súcubos e anjos barram o êxodo, Deus ou Demo?

Que importa? Jamais saberemos se existe um homem
                                                                      para além daquela porta.






ESCATOLOGIAS 5

Partiu-se o som
                              em atonais
                                                  e semitons cósmicos

Esfacelou-se o texto
                              em caóticos
                                                  subtextos estelares

As cores fizeram-se cinzas
                              ou transformaram-se
                                                  em cavernas

Pelas quais descemos
                              aos ciclos
                                                  dos horrores

(Um reverso Platão
                              em busca
                                                  da escuridão)

Os homens possíveis
                              os descobri
                                                  impossíveis

Ou mortos
                              Tento lê-los
                                                  agarrado a fragmentos

Do planeta
                              esquartejado
                                                 Onde e como

Sempre esteve

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