sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

TRÊS TEMPOS DA DANÇA DOS DAEMONS (Nova Valsa de Valpúrgis)


I – O tempo do sujeito



O INFERNO DE BLAKE


Nossos demônios mais perigosos são protegidos pelas tropas dos medos,
eles dançam, sempre nos furtando o tempo, e nos perseguem desde cedo.
Por isso, não temos futuro, nem a morte, as portas do porvir são guardadas
por parelhas de erínias com esgar nos lábios, já nos umbrais são precisas:
"barraremos as rotas que teimastes traçar nos teus astrolábios sem norte",
e todo passo que tentamos dar na direção do tempo o pânico nos paralisa

Tampouco temos passado, se a nossa única defesa possível é a fantasia,
mentimos conquistas imaginárias com sangue heroico nunca derramado,
cantamos batalhas, lutas e vitórias e troias que nenhum Homero ousaria,
lanças ilusórias e medalhas, mares e mulheres nunca dantes navegados,
mas nada somos, senão náufragos das cores das tintas que inventamos,
(embora reais as dores), mesmo mutilados mentimos em fina ourivesaria.

Mal nascida a manhã nossos demônios caminham conosco lado a lado
sob um sol impotente e pálido, luz em pânico, por nossos medos nublado.
Seu habitat, contudo, é a noite, quando nos roubarão o sono e a alma
arrebatarão, afinal, lhes pertencem, e nos farão, ridículos, noite adentro
dançar nos Sabbats da insônia, torre gótica da angústia, essa antevisão
noturna da morte que alonga a escuridão e esfacela o dia em fragmentos.

Quando crianças, demônios pernoitam debaixo das camas ao pé do medo,
por isso, mais velho, pus gavetas nas minhas. Inútil, eles dançam e fogem
como as brumas das bruxas pelas frestas da madrugada, festa de horrores.
Menino ainda, me iniciaram no aprendizado da morte, foi aquela a primeira,
rondou a tarde gralhando, para pousar sorrateira nas asas do telefone preto:
minha avó voava entre eles, e rodopiava nas negras neblinas mantiqueiras.

Mais tarde, as fotos sépias nas paredes sépia e os defuntos sépias das férias
cheias de sustos e tias mortas e virgens. Elas fugiam noturnas dos retratos,
vinham com desejos reprimidos rondar a cama dos meus medos de menino,
espectros me seduziam em ritos de iniciação, velhas tão virgens e meninas,
no teatro não sei se de Eros ou de Tânatos, sei que chamavam, fesceninas,
mórbida perversão de um pecado original que nunca maculara aquela alma

sem nódoas, mas fora antes plantado por padres sob o jugo da fé, flagelo
de falsos profetas que me obrigavam a sulcar a terra seca, dura semeadura,
enquanto adubavam a alma com o arado da angústia, para a colheita futura
das culpas, novas armas e cavalos para as tropas dos demônios e dos medos.
Não adiantaram a bala argêntea da arma inútil, os adereços de alho, a cruz,
a faca de prata, símbolos de meu ridículo espantalho. Não, ninguém os mata

Ninguém matará nossos demônios, se nunca foram fantasias, mas fantasmas
e, como tais, todos uivam e urram reais, demasiada e dolorosamente reais.
Muito menos nos salvará qualquer pacto com Deus ou Demônio, pois aquele,
se é que existe, há muito já não nos quer, saciado que foi há tempos pela alma
de Fausto levada a Mefisto, a palavra dada e descumprida. E é dos abissais
que desde então a cada século emergem e submergem em ciclos infernais.


II - Tempo de emersão, tempo coletivo.



O INFERNO DE BLAKE


Emergem dos desvãos do Tártaro recrutando as almas paralisadas de pânico
derrotam os demônios individuais e ressurgem nos continentes da consciência
coletiva, na forma de homens e de guerras, vão arrebanhando outros homens
para a colheita da carne, ceifa e ceia disformes. Darwin ao avesso caminham
em constante metamorfose nos rumos da boçalidade, universo em retração,
para a concentração do tempo e da morte no nada, num tempo de horrores.

A cada século ressurgem do mar de merda onde vivem, das quais aos poucos
se livram e limpam as fardas, até restarem somente seus perfis de heráldica,
os bigodes fálicos e as unhas limpas, que os assassinos não se sujam jamais.
Trazem as mãos asseadas por manicures e carrascos, é preciso guardá-las
para um brinde de sangue na alcova de “el bispo de Almeria”, e que o cheiro
das covas das vítimas não cause asco às narinas de coronéis e de cardeais

Los caballos negros son. Las herraduras son negras, levam lâminas curvas,
ou cruzes, bandeiras de inequívocas cores, alquimia de tornar almas em gás
nos arquipélagos da morte. Muros separam amantes e filhos, distância surda
exílios nas câmaras onde, no açougue da infâmia, ouço os órfãos e seus pais.
E sempre uma horda de cegos os seguirá, e mesmo depois de mortos ainda
cantarão hinos, olhos obnubilados pela incurável enfermidade dos fanáticos.

Como padres e pastores, os demônios misóginos odeiam o desejo e a vida
incensam ervas em estático êxtase aos xamãs e imãs da brutalidade, um dia
subitamente submergem, deixando a legião de cegos à espera do Messias.
Eis que numa noite de sexta-feira treze emergiram, dia em que a bruxa Friga
reúne-se a Satã, data malsã da maçã de Eva nos condenando ao pecado.
Ressurgiram na festa de Eros, as bandeiras de burcas e fêmeas infibuladas

os véus negros com que querem vedar o rosto à humanidade. Morte ao prazer!
Nos lábios o gosto de sangue e das mil virgens prometidas aos jovens suicidas.
Talvez perguntar: por quê?  Mas nem isso consigo, não há resposta possível,
resta velar por esses rostos que talvez eu nunca visse, jovens, alguns belos,
outros nem tanto, mas todos carregam nos olhos a beleza lunar e imprecisa
daqueles que jamais saberão que morreram por quererem celebrar a vida


III - Tempo impalpável (A nova Valsa de Valpúrgis)


Outros demônios dançam à nossa volta, parecem menos perigosos, palpáveis,
letais, mas são igualmente filhos deste tempo em que os homens descobriram
que nunca mais conversarão, gesto e olhar perderam-se de forma irremediável.
Esses, não os podemos tocar, eis que ressurgiram de um Malebolge impreciso,
é venerá-los, deuses de cristal líquido dando voz à ignorância. Novos daemos
sopram com flatos as flautas e o fogo fátuo do culto masturbatório a Narciso

Eles se entrelaçam nas tramas das redes que nos enclausuram na valsa
da nova Valpúrgis, vulvas virtuais e hermafroditas bailam no ritmo incidental
da insônia. Dancem demônios demiurgos dessa seita cibernética a um Eros
entediado, protegidos por redomas bíblicas e binárias dessa Sodoma pública
da mediocridade, cantem neste claustro insalubre do presente o pânico ritual
até nos cegarem com os espelhos de Narciso, furtando-nos da solidão o sal.


IV


Curvo-me ao chão, sou súcubo sob daemons surdos, íncubos da imbecilidade.


Um comentário:

  1. Lendo a bela reflexão lítero-poética, não me julgo capaz de tecer qualquer crítica capaz de acrescer, ou quem sabe, propor uma “antítese”. Meu analfabetismo literário refreia a boa intenção. E, como se diz, de boa intenção o hades anda repleto. O sentimento de não pertencimento a mediocridade, parece-me uma das proposições que possuímos em comum. Sim, temos vivido uma era de falácias, temos experimentado um saber “muito de pouco”. Pois bem, atrevido que sou, sinto nas madrugadas, talvez algo semelhante, ao menos no que tangencia a inquietude, a ansiedade, por ouvir algo que realmente seja instigador, seja elucidador. Infelizmente, tudo parece estrangeiro, e o ter, continua aviltantemente, ganhando espaço, do ser. Assim, o ter razão, ainda que não se seja racional, o ter status, ainda que permeado pela superficialidade, consubstanciado nas mais diversas personas, desmoronem num estalar de dedos. Realmente, desejamos um mundo melhor, sem hipócritas, sem aproveitadores, um mundo menos desigual, um mundo mais real, e creio que, assim como nós, há tantos outros. Por onde andam? Andam nas madrugadas insones, soturnos, em busca do verdadeiro ser, e quem sabe, fazendo poesia, assim como você. Forte Abraço!

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