quarta-feira, 14 de outubro de 2015

“YOUTUBER”: RELATO DE UMA DESCIDA AOS INFERNOS





   

(Advertência: este relato descreve cenas muito fortes, aqueles que, como eu, não têm estômago, não devem lê-lo)

   Nada há mais feio que dar pernas longuíssimas a ideias brevíssimas

          Machado de Assis – Dom Casmurro

  Tenho lido nas redes sociais, eu, que por vezes passo dias buscando uma só palavra, que as editoras podem estar sendo injustamente criticadas, por publicarem (apenas) coisas como “youtubers” - sucesso, diga-se, absoluto em nossa bienal... do livro - e novidades tais, afinal, alegam, além de se poder encontrar alguma qualidade em “youtubers”, é o que dizem, não eu, com esse dinheiro as editoras podem investir em autores de alguma qualidade, embora, em regra, os exemplos que dão dos últimos, quando o fazem, referem-se a autores já em domínio público, aí é fácil. Tampouco têm a honestidade intelectual de mencionar que as editoras gozam de imunidade tributária e que essa poupança é feita com dinheiro público, o que exigiria, em contrapartida, difundir cultura e arriscar em autores não... quase disse venais, mas me faltou a palavra.

  Mas quem quiser saber mais sobre o que penso da questão da imunidade, vá em Falando em Literaturahá por ali um artigo meu discorrendo sobre a ilegalidade e a inconstitucionalidade das práticas editoriais no Brasil.

  Não quero polemizar, ando sem saco, daí que não ter me manifestado no ato, muito menos quero polêmicas agora. Mas aquilo ficou rondando minha cabeça, afinal, eu não estaria sendo preconceituoso? Talvez os “youtubers”, que eu não fazia a mínima ideia do que poderiam ser, fossem a redenção da cultura do século XXI (Ó tempora).

  Durante uma noite de insônia, dessas que tanto infernizam minha existência, tomei a decisão de me despir de todo preconceito e me aventurar (e aí mesmo é que não dormi mais) a assistir a uma seção, afinal, não doeriam por mais de cinco minutos, o que talvez não fosse fatal.

  Coincidentemente, logo pela manhã, o jornal trazia uma nota sobre esse fenômeno, está bem, cultural, uma dessas notinhas com cara e cheiro do velho jabá que nos acompanha desde a era do rádio. Era uma das mais famosas dessas... bem, escritoras. Seu nome era algo entre uma língua exótica e um infame trocadilho, “Que Linda”, “Que Fera”, por aí. Depois, em uma entrevista, ela esclareceu que era de origem egípcia, e quereria dizer algo como “a primeira luz da manhã”. E o ocaso da Literatura, me foi impossível evitar. Nessa mesma entrevista, ela contava, eufórica, que o Paulo Coelho gosta muito dela. Diria meu pai, mineiro de roças e roçados das letras de boa cepa, “de Xexéu e Vira Bosta, cada qual do outro gosta (são passarinhos, mentes perversas).

  Imbuído do meu melhor espírito de aventura, fui ao “you tube”, encontrei a trilha escura, e comecei a descida pelos nove círculos. Claro que, com medo, tomara alguns cuidados e preparara um “kit” de emergência - cinco minutos poderiam ser fatais! - vai que eu fosse descendo e, nas profundas do Nono Círculo, começasse a me faltar um mínimo de ar estético, algo assim como uma hipoglicemia cultural e entrasse num coma irreversível de total imbecilidade (ah, esse preconceito que não me abandona).

  Assim, precavido, pusera escondido na mochila (por ali são proibidas coisas assim) Dante, e do velho bruxo do Cosme Velho levei Dom Casmurro. Ah, levei também Baudelaire, qualquer eventualidade eu poderia respirar até chegar de volta aos meus livros.

  Só então iniciei minha descida:

    “Lasciate ogne speranza, voi ch’intrate’.
    Queste parole di colore oscuro vid’ïo scritte al sommo d’una porta”.

    “Deixai toda esperança, ó vós, que entrais;
    Estas palavras, num letreiro escuro,eu li gravadas no alto de uma porta.”



  Não, não, não podia me lembrar de Dante, ao menos por um tempo, puro preconceito meu, ora. Mesmo assim, cuidadoso e sorrateiro, pusera nas costas aquela bagagem, e segui na minha vertigem sem Virgílio.

  O início até que não foi mal, tirando as caretas, a canastrice de fazer divertir Nelson Rodrigues, além da maquiagem carregada, até que a moça era bonitinha, tive mesmo uns pensamentos perversos, mas, como não era para isso que eu estava lá, há locais mais apropriados, desliguei-me desse aspecto.

  A “coisa” começa com ela abraçada a um lindo cachorro, ou melhor, “cachorrinho”, por mais adequado, dizendo uns e outros grunhidos, dos quais não entendi patavinas. Mas imaginei ser aquilo uma manifestação pós-moderna, e prossegui rumo aos círculos descendentes.

  Depois, ela emendou com “um caralho abaixo”, passando a um tom didático: “por que é que vocês brigam tanto em rede social, geeeente?” “venho falando nisso há muitos anos atrás” (palavras dela). Haja vanguarda!

  Além disso, prosseguiu, ela faz “propaganda porque precisa de dinheiro para sobreviver”. Quem não, não é, meu bem? Mas a pobre literatura pouco ou nada tem, ou deveria ter, com isso.

  Troquei de vídeo, poderia ser apenas uma impressão inicial, fruto do meu preconceito, de um momento equivocado. Foi minha desgraça.

  Era sobre ciúmes, a outra peça literária. Ela ao lado de uma senhora que, depois, descobri ser sua mãe, falavam “abertamente” (ai) sobre esse sentimento, logo ele, tão caro ao Dom Casmurro que levara escondido. Tudo muito família, quase comovente o que essa gente faz para vender, não é?

  Fui até onde pude, embrenhava-me, corajosamente, quando, ainda no Primeiro Círculo, ante um “deixar ela”, dito pela “autora”, o ar começou a me faltar, vi versos escorrendo entre meus dedos, solilóquios olhavam-me apavorados com medo de nem sozinhos poderem falar mais a nossa pobre língua, meus olhos, estranhamente, andaram a buscar ardentes por um aparelho de TV.

  Mas não foi só, amigo, foi muito pior, comecei a falar superlativamente. Descontrolado, algumas frases - tentava proteger minha poesia, antes que fosse tarde - escorregavam de minha boca: “geeeeeenteeeee, superhorrível”, “lindíssimo”, “caralhos abaixo”, e por aí fui indo, purificando a língua.

  O risco tornara-se insuportável, mais um minuto assistindo àquela peça literária poderia ser fatal. Tirei meu “kit” da mochila, peguei rapidamente o primeiro livro que me veio à mão, era Dom Casmurro, ele mesmo, e abri ao acaso (era uma emergência), e lá estava, para meu alívio, Bentinho descrevendo José Dias: “amava os superlativos. Era um modo de dar feição monumental às ideias; não as havendo”.

  Não as havendo...

 O ar, com essa respiração boca a boca estilística e uma lufada de bom português, começou a voltar, recuperei gradativamente a cor, e consegui alcançar outros livros do kit.
  Mas me sentia só, só e desajeitado como o Albatroz, de Baudelaire. Mas foi justo ele que me acompanhou na minha subida e regresso à vida inteligente.

 Amigos, foi uma experiência terrível, não aconselho quem já tenha lido mais de três livros a passar por ela. Pode ser fatal.

                                                                        ...

  Terminada essa perigosíssima aventura, olhei meu filho, de sete anos, que se divertia com seu livrinho de mitologias para crianças. Que desânimo me deu. Pensei, filho, o que andam preparando para o seu futuro e o futuro desta língua e da literatura que tento ensiná-lo a amar e a respeitar? E, ainda mais grave, crime doloso perpetrado justamente por aqueles que deveriam protegê-las, afinal, para isso existem, ou deveriam existir, e não pagam impostos, para, em nome da Literatura, cometerem tantos e tais fatos criminosos.

  Mais uma noite sem dormir.  

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