quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

A VINGANÇA DE GIAMBOLOGNA

                            (Ou ainda levaremos outros 451 anos para aprender alguma coisa?)


    Das coisas que mais me deliciam é quando um artista, fazendo uso de seu gênio, engenho e arte, para sobreviver às exigências seu mecenas, o ironiza, no limite da crueldade e do sarcasmo, e, mais importante, sem que este perceba.

    Talvez o mais genial nessa difícil (e arriscada) tarefa tenha sido Velásquez. Imaginem quão insuportável deve ser para o artista ter, todo santo dia, um membro da Família Real torrando sua paciência para pintar sua glória, “beleza”, riqueza e poder para deleite dos séculos.

    Enquanto Goya refugiava-se no atelier para deixar fugir entre as sombras  seus demônios, realizando, na Fase Negra, dos mais impressionantes testemunhos do desespero humano, Velásquez, fazendo uso da razão e da técnica, encontrou outra forma: registrou a feiura insuperável dos Bourbon, com seus queixos de espreguiçadeira, chegando mesmo a anular a importância do casal Filipe IV e sua mulher, Mariana, em "As Meninas", e, mais interessante, tendo a maestria de comunicar ao observador sua vitória sobre a Real Família, para gáudio dos séculos (tenho um texto sobre essa minha leitura).

     Recentemente tive a oportunidade de conhecer das mais deliciosas manifestações desse tipo, em Bolonha, em sua versão fescenina, que por lá alguns juram ser uma lenda, o que duvido muito, dada a, digamos, verossimilhança da coisa. Todavia, mesmo se for uma lenda, fico com ela, que é sempre, além de mais saborosa, mais verossímil do que a realidade.

     Romanceemos um pouco, que sem isso a vida não tem a menor graça.

   Em 1563, Pier Donato Cesi, Cardeal de nobilíssima linhagem, encomendou uma escultura de Netuno a Giambologna, a ser colocada em destaque na Piazza Maggiore, para homenagear o Papa Pio IV, então em pleno exercício do seu poder sobre o sagrado e o profano, talvez querendo demonstrar seu domínio sobre mares e terras.

    O problema é que o artista teria recebido instruções de que seu Netuno – “afinal, um Papa homenagearemos” - não tivesse seu outro “tridente” (ou seria mais apropriado chamá-lo "monodente") muito avantajado.

   De fato, ao olharmos a belíssima escultura de frente, podemos notar que Netuno não teria sido excepcionalmente bem aquinhoado pelos deuses, de forma a fazer felizes Salácia, Ceres e Medusa, dentre outros amores do namorador deus.

    Ocorre que, irritado com a censura que lhe impunha o Cardeal, ou mesmo com o fato de ter perdido, três anos antes, para Ammannati a disputa da escultura de Netuno a ser instalada na Piazza de la Signoria, em Florença,  mais provavelmente com ambos, pois vira o pagamento escapar-lhe entres os dedos,  ao invés de protestar em redes sociais, que, de resto, à época deviam ser meio precárias, contra esse “absurdo autoritário”, e, coitado, sequer podendo levantar seu dedo em riste, vociferando "fascista!", por absoluta impossibilidade cronológica.

    Hábil e sub-repticiamente, o dedo que Giambologna levantou não foi o seu, mas o polegar do deus romano, o que, auxiliado pela luz do dia, faz com que, de um ponto bem determinado da piazza, local onde foi colocada uma pedra negra apelidada pelo povo "la vergogna", tenhamos, até hoje, a divertidíssima visão de um Netuno com um invejável tridente (ou seria "monodente"?), pronto para enfrentar as mais terríveis tempestades da moral cardinalícia, dos pundonores papais e as mais gulosas deusas.

    Haveria de ser engraçado ver moçoilas excitadas, circunspectos varões (êpa! desculpem o involuntário trocadilho) e alguns bispos invejosos discretamente tangenciando "la pietra nera della vergogna", entre o escândalo e a curiosidade, onde, quase cinco séculos depois, eu, minha mulher e meu filho (“de nove anos? Amoral irresponsável!”. Amoral és tu, mente devassa e devastada, ele ainda não associou causa e efeito, mas sabe o que tem entre as pernas inocentes) demos gargalhadas que hão de ecoar pelos séculos.

    Arte? Sim, e das boas, fruto de minucioso trabalho que seguiu as mais estritas regras “do engenho e da arte”, regras estas jamais escritas de forma canônica, por absoluta incompatibilidade, pois, como nos ensinou Corneille: a Arte “é algo, sem dúvida, com regras, mas não se sabe quais”.

    Estava, senhores, vingada a arte, sem que os ímpetos sensórios do cardinalato e do papado nada tenham percebido, ou pior, talvez o tenham, mas vexados de traírem-se e ficar evidente que, também eles, curiosos, andaram rondando a “pietra nera”, preferiram calar.

    Estava perpetuada a ironia. Vejam vocês o resultado, lá está, altiva (e põe altiva nisso), em plena Piazza Maggiore...

    Será que não aprenderemos nunca, ou o que nos falta mesmo é talento?




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