(Ou ainda levaremos outros 451 anos para aprender
alguma coisa?)
Das coisas que mais me deliciam é quando um artista, fazendo
uso de seu gênio, engenho e arte, para sobreviver às exigências seu mecenas, o
ironiza, no limite da crueldade e do sarcasmo, e, mais importante, sem que este
perceba.
Talvez o mais genial nessa difícil (e arriscada) tarefa tenha sido
Velásquez. Imaginem quão insuportável deve ser para o artista ter, todo santo
dia, um membro da Família Real torrando sua paciência para pintar sua glória, “beleza”,
riqueza e poder para deleite dos séculos.
Enquanto Goya refugiava-se no
atelier para deixar fugir entre as sombras seus demônios, realizando, na Fase Negra, dos
mais impressionantes testemunhos do desespero humano, Velásquez, fazendo uso da
razão e da técnica, encontrou outra forma: registrou a feiura insuperável dos
Bourbon, com seus queixos de espreguiçadeira, chegando mesmo a anular a
importância do casal Filipe IV e sua mulher, Mariana, em "As Meninas", e,
mais interessante, tendo a maestria de comunicar ao observador sua vitória
sobre a Real Família, para gáudio dos séculos (tenho um texto sobre essa minha leitura).
Recentemente
tive a oportunidade de conhecer das mais deliciosas manifestações desse tipo,
em Bolonha, em sua versão fescenina, que por lá alguns juram ser uma lenda, o
que duvido muito, dada a, digamos, verossimilhança da coisa. Todavia, mesmo se
for uma lenda, fico com ela, que é sempre, além de mais saborosa, mais
verossímil do que a realidade.
Romanceemos um pouco, que sem isso a vida não
tem a menor graça.
Em 1563, Pier Donato Cesi, Cardeal de nobilíssima linhagem,
encomendou uma escultura de Netuno a Giambologna, a ser colocada em destaque na
Piazza Maggiore, para homenagear o Papa Pio IV, então em pleno exercício do seu
poder sobre o sagrado e o profano, talvez querendo demonstrar seu domínio sobre
mares e terras.
O problema é que o artista teria recebido instruções de que
seu Netuno – “afinal, um Papa homenagearemos” - não tivesse seu outro “tridente”
(ou seria mais apropriado chamá-lo "monodente") muito avantajado.
De
fato, ao olharmos a belíssima escultura de frente, podemos notar que Netuno não
teria sido excepcionalmente bem aquinhoado pelos deuses, de forma a fazer
felizes Salácia, Ceres e Medusa, dentre outros amores do namorador deus.
Ocorre
que, irritado com a censura que lhe impunha o Cardeal, ou mesmo com o fato de
ter perdido, três anos antes, para Ammannati a disputa da escultura de Netuno a
ser instalada na Piazza de la Signoria, em Florença, mais provavelmente com ambos, pois vira o
pagamento escapar-lhe entres os dedos, ao invés de protestar em redes sociais, que,
de resto, à época deviam ser meio precárias, contra esse “absurdo autoritário”,
e, coitado, sequer podendo levantar seu dedo em riste, vociferando
"fascista!", por absoluta impossibilidade cronológica.
Hábil e sub-repticiamente,
o dedo que Giambologna levantou não foi o seu, mas o polegar do deus romano, o que,
auxiliado pela luz do dia, faz com que, de um ponto bem determinado da piazza, local
onde foi colocada uma pedra negra apelidada pelo povo "la vergogna",
tenhamos, até hoje, a divertidíssima visão de um Netuno com um invejável
tridente (ou seria "monodente"?), pronto para enfrentar as mais
terríveis tempestades da moral cardinalícia, dos pundonores papais e as mais
gulosas deusas.
Haveria de ser engraçado ver moçoilas excitadas, circunspectos
varões (êpa! desculpem o involuntário trocadilho) e alguns bispos invejosos
discretamente tangenciando "la pietra nera della vergogna", entre o
escândalo e a curiosidade, onde, quase
cinco séculos depois, eu, minha mulher e meu filho (“de nove anos? Amoral irresponsável!”.
Amoral és tu, mente devassa e devastada, ele ainda não associou causa e efeito,
mas sabe o que tem entre as pernas inocentes) demos gargalhadas que hão de
ecoar pelos séculos.
Arte? Sim, e das boas, fruto de minucioso trabalho que
seguiu as mais estritas regras “do engenho e da arte”, regras estas jamais
escritas de forma canônica, por absoluta incompatibilidade, pois, como nos ensinou
Corneille: a Arte “é algo, sem dúvida, com
regras, mas não se sabe quais”.
Estava, senhores, vingada a arte, sem que os
ímpetos sensórios do cardinalato e do papado nada tenham percebido, ou pior, talvez
o tenham, mas vexados de traírem-se e ficar evidente que, também eles,
curiosos, andaram rondando a “pietra nera”, preferiram calar.
Estava
perpetuada a ironia. Vejam vocês o resultado, lá está, altiva (e põe altiva
nisso), em plena Piazza Maggiore...
Será que não aprenderemos nunca, ou o
que nos falta mesmo é talento?
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