terça-feira, 13 de março de 2018

A ESTRANHÍSSIMA HISTÓRIA DA RAINHA VITÓRIA BICÉFALA QUE NOS GOVERNA E TEM O OLHAR FIXO EM MINHA ÚNICA CABEÇA


Náufrago, vim dar a esta praia, uma ilha que em tudo lembra
a minha terra indigente: a mesma malária, misérias e mazelas,
a sífilis silvando nosso sangue, além da mesma febre amarela.
A dengue, as chagas e as chagas de toda aquela “brava gente”:
chagas das putas e príncipes e suas gonorréias cheias de pus,


Esta ilha, eu canto ufanista, é igual à minha, que a tantos seduz,
a hoje defunta Ilha de Santa Cruz. Pois se é o mesmo compadrio
desde os mil réis, é o mesmo reino dos bacharéis e seus anéis.
Tudo é tão igual, saudades, ao país onde vivi um dia, é também
o país da euforia, uma terra que em nada deu, e que tanto daria.


Porém, algo difere estas paragens, isso é real ou será miragem?
Aqui governa uma rainha que se dilui no ar. E não falo do poder
dos altiplanos, cá, como lá, os mesmos sacripantas saltimbancos
que nos governam e saqueiam desde tempos de remotas glórias,
agora é outra rainha, bem outra história: a rediviva Rainha Vitória,


Essa viúva misteriosamente ressuscitou entre nós, nos silêncios
das solidões, na estridência das multidões virtuais, mas é real,
vive num castelo fomentando ódios (nessas histórias há sempre
um castelo, urgente lugar comum), palácio invisível que se dilui
nenhum no estuário dos olhares, nesse trovejar vazio das vozes.


Vozes prenhes de tantos ódios estridentes nos altares catódicos,
a caótica irridência com que a Rainha nos aprisionou na sua rede
de vidro, essa teia que a todos falsifica, mata e ressuscita, e torna
a matar. Não pensem ser uma cópia inversa de Alexandrina, rainha
há um século morta, ou uma Vitória torta, altezas de sinais trocados


Ainda é a mesma rainha reencarnada, os mesmos sinais que emana,
a mesma moral hegemônica de quem quer a todos calar. Mentindo-se
magnânima, diz proteger quem finge amar, e impõe sua moral única.
Como veio rediviva, fugida do Inferno – talvez seja castigo do Eterno -
veio deformada, veio bicéfala, e seu corpo é também duas metades


Que se odeiam, condenadas à terrível união indissolúvel dos contrários.
Metade de Vitória usa um hábito negro, em cujas barras brotou, ó ironia,
ó lance de mistério - ou ela bordou? dísticos morais em verde e amarelo.
Sua outra metade está nuanuanuinha de seduções, mas não se engane,
por dentro da púbis traz a lâmina (também moral) afiada da intolerância


Para cegar àqueles que nos recusamos a olhá-la, não por dor ou pudor,
antes por tédio ou aversão que ignoramos a nudez de decadente gosto,
pois não nasceu para o erótico que nos sustenta, mas para o escândalo.
Enquanto isso a cabeça da direita esparge réquiens e rezas ao universo,
e as vozes da marcha fúnebre calam os versos dos que insistimos sonhar.


A outra cabeça grita um baticum diuturno que me tortura, mas me calo
senão me censura, eu, este cretino e visceral elitista, este poeta cego
e anacrônico, pois ela jura que aquilo é música, e da mais alta cultura!
Só os puros de espírito, os ungidos de vagidos de sua moral percebem.
Me escondo, pária da modernidade, numa jaula de silêncio e harmonias.


A semelhança entre elas, não por acaso simétrica, são os fios de sangue
que deixam escorrer pelos cantos das bocas, trazem em ambas as mãos
o símbolo e instrumento de seu reinado: duas guilhotinas, cujas lâminas
volteadas, uma à esquerda, à direita outra, pairam os brilhos sobre mim,
e ensaiam um movimento sobre meu pescoço: querem-me em silêncio


Por não verem emanar de minha poesia essa obrigatória bipolaridade.
Por isso, me calo, e por isso canto no escuro estes versos com medo,
que ecoam como os gritos de um terrível pesadelo: soam surdamente,
rastejam entre arbustos do manguezal podre do tempo, sujos do óleo
do ódio sem manhãs, poesia que resvala em secretas sombras do dia.


Melhor calar, que o tempo é de estridências, de procissões e sermões
morais: o que ler, falar, pensar, mesmo do que rir já não posso escolher,
tempo de penitências e pecados mortais; é calar, pois as duas cabeças
estão atentas à sibila do sussurro sonante de qualquer cadência, ritmo
reencontrado, à metáfora que maravilhou a insônia e à inusitada rima


Vitória, peço-lhe perdão pelo poema insolente, e por esta poesia doente,
estes versos tísicos, perdão pelas palavras suadas na lavra onde bateio
cascalhos de aluviões de versos secos; úmidos de bílis e tédio transpiram
egoístas a minha vil angústia, perdão pelas metáforas inúteis neste tempo
de utilitárias urgências, minha difícil e suicida poesia, escrita em surdina.


Súbito, duas asas brilham no azul: a rapina de prata crava raios nos olhos
dos versos frívolos, e tinge o céu o sangue de metal do voo das guilhotinas.




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