Náufrago, vim dar a esta
praia, uma ilha que em tudo lembra
a minha terra indigente: a mesma malária,
misérias e mazelas,
a sífilis silvando nosso sangue, além da mesma febre
amarela.
A dengue, as chagas e as chagas de toda aquela “brava gente”:
chagas
das putas e príncipes e suas gonorréias cheias de pus,
Esta ilha, eu canto
ufanista, é igual à minha, que a tantos seduz,
a hoje defunta Ilha de Santa
Cruz. Pois se é o mesmo compadrio
desde os mil réis, é o mesmo reino dos
bacharéis e seus anéis.
Tudo é tão igual, saudades, ao país onde vivi um dia, é
também
o país da euforia, uma terra que em nada deu, e que tanto daria.
Porém,
algo difere estas paragens, isso é real ou será miragem?
Aqui governa uma
rainha que se dilui no ar. E não falo do poder
dos altiplanos, cá, como lá, os
mesmos sacripantas saltimbancos
que nos governam e saqueiam desde tempos de
remotas glórias,
agora é outra rainha, bem outra história: a rediviva Rainha
Vitória,
Essa viúva misteriosamente ressuscitou entre nós, nos silêncios
das
solidões, na estridência das multidões virtuais, mas é real,
vive num castelo
fomentando ódios (nessas histórias há sempre
um castelo, urgente lugar comum),
palácio invisível que se dilui
nenhum no estuário dos olhares, nesse trovejar vazio
das vozes.
Vozes prenhes de tantos ódios estridentes nos altares catódicos,
a caótica
irridência com que a Rainha nos aprisionou na sua rede
de vidro, essa teia que
a todos falsifica, mata e ressuscita, e torna
a matar. Não pensem ser uma cópia
inversa de Alexandrina, rainha
há um século morta, ou uma Vitória torta,
altezas de sinais trocados
Ainda é a mesma rainha reencarnada, os mesmos
sinais que emana,
a mesma moral hegemônica de quem quer a todos calar.
Mentindo-se
magnânima, diz proteger quem finge amar, e impõe sua moral única.
Como
veio rediviva, fugida do Inferno – talvez seja castigo do Eterno -
veio
deformada, veio bicéfala, e seu corpo é também duas metades
Que se odeiam,
condenadas à terrível união indissolúvel dos contrários.
Metade de Vitória usa
um hábito negro, em cujas barras brotou, ó ironia,
ó lance de mistério - ou ela
bordou? dísticos morais em verde e amarelo.
Sua outra metade está nuanuanuinha
de seduções, mas não se engane,
por dentro da púbis traz a lâmina (também
moral) afiada da intolerância
Para cegar àqueles que nos recusamos a olhá-la,
não por dor ou pudor,
antes por tédio ou aversão que ignoramos a nudez de
decadente gosto,
pois não nasceu para o erótico que nos sustenta, mas para o
escândalo.
Enquanto isso a cabeça da direita esparge réquiens e rezas ao
universo,
e as vozes da marcha fúnebre calam os versos dos que insistimos
sonhar.
A outra cabeça grita um baticum diuturno que me tortura, mas me calo
senão
me censura, eu, este cretino e visceral elitista, este poeta cego
e
anacrônico, pois ela jura que aquilo é
música, e da mais alta cultura!
Só os puros de espírito, os ungidos de vagidos
de sua moral percebem.
Me escondo, pária da modernidade, numa jaula de silêncio
e harmonias.
A semelhança entre elas, não por acaso simétrica, são os fios de
sangue
que deixam escorrer pelos cantos das bocas, trazem em ambas as mãos
o
símbolo e instrumento de seu reinado: duas guilhotinas, cujas lâminas
volteadas,
uma à esquerda, à direita outra, pairam os brilhos sobre mim,
e ensaiam um
movimento sobre meu pescoço: querem-me em silêncio
Por não verem emanar de
minha poesia essa obrigatória bipolaridade.
Por isso, me calo, e por isso canto
no escuro estes versos com medo,
que ecoam como os gritos de um terrível
pesadelo: soam surdamente,
rastejam entre arbustos do manguezal podre do tempo,
sujos do óleo
do ódio sem manhãs, poesia que resvala em secretas sombras do
dia.
Melhor calar, que o tempo é de estridências, de procissões e sermões
morais:
o que ler, falar, pensar, mesmo do que rir já não posso escolher,
tempo de penitências
e pecados mortais; é calar, pois as duas cabeças
estão atentas à sibila do
sussurro sonante de qualquer cadência, ritmo
reencontrado, à metáfora que
maravilhou a insônia e à inusitada rima
Vitória, peço-lhe perdão pelo poema
insolente, e por esta poesia doente,
estes versos tísicos, perdão pelas
palavras suadas na lavra onde bateio
cascalhos de aluviões de versos secos;
úmidos de bílis e tédio transpiram
egoístas a minha vil angústia, perdão pelas
metáforas inúteis neste tempo
de utilitárias urgências, minha difícil e suicida
poesia, escrita em surdina.
Súbito, duas asas brilham no azul: a rapina de
prata crava raios nos olhos
dos versos frívolos, e tinge o céu o sangue de
metal do voo das guilhotinas.
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