terça-feira, 11 de setembro de 2018

ILHÉU


             Tal si dilegua, e tale
             Lascia l'età mortale
             La giovinezza.

           Canto XXXIII - IL TRAMONTO DELLA LUNA
                     Leopardi (1798 – 1837)


1

Alguns séculos antes da História
tentei viver entre os homens. Tinha
a idade cruel, vejo na desmemória,
quando quis conhecer meus iguais

Eles me receberam no silêncio oculto
que há no tumulto das gentes, se hoje
me finjo entre eles, precisei de medos,
mares e degredos, camuflei segredos

No olhar que agora uma neblina esfuma.
Vejo no porto abandonado da memória
o dia em que aportou no cais cotidiano
a nau que convidava a decifrar espumas

Com ela aprendi a esquecer os mapas
e guiar-me por bússolas sem ponteiros,
cegos astrolábios, solitário aprendizado
de naufragar nos lábios a bílis do verso.

Era um barco imenso, mas não lembro
se de ferro ou aço, se era oco o tronco,
talvez, cilada de um deus, fosse pedra,
sei que tinha um silêncio sem horizontes

Raptou-me. Ou eu me exilei das gentes
remando com as mãos por dias e noites,
num ritmo sem suor, sangue ou cansaço
no rumo cego das calmarias a uma praia,

Cujo gesto insular me desenhou na pele
os ritos da feitiçaria, e nos meus olhos
incrustou-me esses cristais da solidão
dos quais herdei a minha fobia do sono

Lá, desesperei dos portos, lá me exilei
na constante colheita de silêncio e medo,
tinha o medo de falar e o medo de calar
para sempre, um aprendiz de abandonos

Lá esqueci a forma e o traço do rosto
dos homens, e mesmo as lembranças
de mim; eu os via em lapsos de cores,
como contrastes vibrados no horizonte

2

Logo que ali pisei foi tudo paisagem
mítica, signos de florestas e bisontes
torrentes tropicais de ventos bacantes,
vi minha sede de vida enfim saciar-se

Em lisérgicas paisagens. As montanhas
respiravam por meio de flores absurdas,
e seus abruptos caules contorciam-se,
no improvável ar rarefeito dos delírios

As retinas abriam-se um abismo púrpura,
meio às vertigens paralelas do eco primal
vi a pura música das esferas recomposta
no vácuo entre o silêncio e a estridência

Fantasias de Safo em fartos mananciais
de matas e amazonas nuas de estrelas,
balé das cores na dança erótica da lua,
galopei florestas na colheita de peyotes.

3

Pouco a pouco, a praia revelou-se ilha
partiu(-se), desprendendo-se mar adentro,
fui abandonado aos tubarões, à multidão
de insetos e à imprecisa dor dos edemas

Se era em mim terra úmida petrificou-se,
e vaguei anos pelo Atlântico no destino
de ser ilha, tornei-me paisagem de pedra
e poeira, e assim me fiz perda arenosa

Naveguei vinte ventos confusos, cego
de tempo e areia, ardil de ampulhetas
partidas, pensei num pacto com o fuso
mas ele se fez surdo e furtou as agulhas

De minha bússola há muito sem norte.
Tentei um pacto com o tempo, o vento
norte encharcou de oceanos as areias
da ampulheta onde eu guardara a morte

Areia e sangue no poço de minhas retinas
dois portos para sempre despertos, dor
de mil edemas, no silêncio de endemias
de palavras eu sofri a solidão do poema

Calei-me na surdez salina dos oceanos.
As cores se acinzentaram, e vi mortos
jogados ao mar, mais de um suicídio vi
nos mastros partidos, improvisada forca

4

Por um ano vaguei em silêncio, cercado
de uma atmosfera de vidro, onde palavra
não entrava ou saía, murmurava poemas
com medo (ainda os sussurro em segredo).

Um dia, não por vontade ou força minhas,
já não as tinha, nem destroços de barco,
mas no movimento sutil da ilha desprendida
que outra vez vim dar à terra dos homens

Sempre cheios de vida, fortes e plenos
de palavras prontas, enquanto as minhas,
surdas e suadas, no silêncio eu as esculpo,
de pedra e dor minha pouca poesia moldo.

Se hoje todos eles me creem um homem
como esses do porto, é que aprendi a falar,
não para revelar a essa gente o que sou,
mas para ocultar a chave de um segredo:

Ainda prefiro o silêncio, escrito embora,
e não saberia viver sem meu degredo.


(Do livro “Soda Cáustica” – em construção)

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