terça-feira, 27 de novembro de 2018

A RUÍNA DA ANTIMUSA (Uma antevisão do futuro)

                      

                      Ch’i’ veggia per vertù de gli ultimi anni,
                      donna, de’ be’ vostr’occhi il lume spento,
                                     Il Canzonieri, XII – Petrarca

                     Que tenha a virtude de ver os últimos anos,

                     senhora, descobrir sem luz tua vista opaca
                                    O Cancioneiro, XII – Petrarca

                      This is the way the world ends
                      Not with a bang but a whimper.
                                     Eliot

I

Muitos e longos, eu os tratava com tanto zelo,
perdi-os nos ralos do tempo, se os encontrar
com que cuidado tecerei trilhas; não a trama
reta de um tear do passado, o futuro eu fiarei,
feito com a teia das tranças de meus cabelos.

A decompor-nos numa massa amorfa, matéria
crepuscular de mim e dos meus pelos. Presos
entre fios podres, os fragmentos de um verso
voarão no vale de poeira atômica, atônita poesia
que ainda se moverá meio aos sons das baratas.

Essas únicas sobreviventes do tempo copularão
sobre as secreções da estupidez e estridularão
sobre os livros e poetas, e a poesia apodrecerá
em silêncio, como hoje, numa asfixia cotidiana,
no silêncio escrito com a luz de estrelas mortas.

I


Moça, tu que nessa janela entre tantos alteres
exibes a exuberância de elípticos sem elipses
ou eclipses, já te vejo tecer com meus cabelos
a trama de um desenho involuntário: com eles
tentas destecer o tempo, mais o tear te destece.

Com os fios das horas costuras o bordado inútil,
pois quando é roto o tecido do tempo, não cerze,
e como toda falsa tecitura nem requer procura,
logo aparece o remendo na pele que envelhece.
Coses o tempo e ele desmancha seu fio fugidio,

e corre, como escorrem os suores da tua perna
fictícia, a barriga de alumínio, peitos de plástico
que entreabres à fantasia desses tantos homens
que habitam tua imaginação. Caminhas calipígia
sonhas provocar ciclones com as formas de facas

e silicones, queres concorrer com o sol nascente
com esse perfil de camafeu de camelô? Que pena
de tuas ilusões, e muita pena de teu amante: Cala!
Pede desesperado ante a voz que racha catedrais,
derruba sinfonias, mas jamais te calarás! Na nudez

contida do medo, num surdo silêncio ele implora,
ante teu estridente êxtase e o teu gozo de gralha.
Cala... Frustrado, ele cala e chora sobre teu corpo
de fêmea feita só voz; resta-lhe o sonho de te amar
nua e muda, taxidermista de uma amante de palha.

Logo tudo em ti será enfim opaco cadente silêncio
com o qual tuas mãos fiarão com minhas tranças,
tecerás sem esperanças e opaca estará tua pele,
teus cabelos opacos olhos tua língua lábios secos,
com os quais de sede à míngua mendigarás amor,

Um apenas que ainda umedeça o opaco sexo seco,
flor de impensável primavera e imprestável outono.
Verões perdidos e tua burrice serão somente inverno
fotografia sem retoques do impenetrável abandono,
pois opaca memória, nada lembrarás de tua história

Surda e cega, ceifará teu rosto a lança desse Calígula,
o tempo, degolará o passado, abandonada numa ilha
onde vegetarás esperando a morte, que virá na tarde
sem que pressintas, ou que sintas os inúteis cuidados
da estranha que em tempos remotos chamastes filha

Dedos paralisados pela pegajosa teia dos meus cabelos,

tecido feito de fio e pó, seguiremos sós voando no nada
despidos do medo, da memória, da angústia, sol da aurora
radioativa, que nos molhará com chuvas atômicas e ácidas
como ácidos eram teus fluidos, como ácido o teu veneno.

Vestida de nada, nua estarás, não essa nudez que adoras,
nua de horas, cega acordarás na derradeira luz do planeta,
que num tímido suspiro se extinguirá num verso de Eliot,
e te despirá sem erotismo, como nos despimos da poesia
no deserto onde caminhas no esplendor da tua estupidez.

No planeta descolado do sistema solar e sem gravidade
viajaremos gelados no rumo do nada ao nada, como nós
do nada ao nada vagamos pelo enigma que nos devora.
Livres das horas, esquecida a Terra que um dia terá sido,
nós flutuaremos no silêncio intangível e definitivo da morte.

Flutuaremos noutra memória, a memória morta de Deus.





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