quarta-feira, 24 de abril de 2019

O VIGIA DE SONHOS




Perco noites nos rumos do rumor do medo,
tateio minhas sombras por todos os lados,
erro e procuro no leste do negro quando
ou mesmo se virá o dia, pois já demora
e preciso ter a certeza de que estou vivo.
Essa é minha doença e a minha agonia:
a de querer ser vigia do sono das gentes.


O pio de uma coruja trinca a madrugada,
angústia do voo dos pássaros noturnos,
afinal aponta a leste um sol que estala
no mesmo ponto do pequeno horizonte
do rio. Contrário a mim, não tem pressa,
sabe, como sei, um dia anoiteceremos,
levando conosco os restos de uma tarde.


Por isso tem calma em trazer o pesado
fardo do dia. Caio em estado de poesia.
Mas nela não cabe a visão do jovem nu,
mal coberto por um sujo véu esverdeado:
a camisola de hospital. Olhos esgazeados
perambula ruas. Leva bandagens e gazes
bandeiras de um país invisível, fincadas


na pele verde, nas veias azuladas de lua
a palidez de uma aquarela do desespero.
Na mão direita o soro que roubou na fuga,
um resto de razão ou instinto. Na esquerda,
o coletor transborda o mijo quente, resumo
de sua vida na fumaça do “crack”, ele o cola
ao rosto, buscando o seu calor e esperança.


Presas nos dedos convulsos e craquelados
as ataduras do leito caem no rastro do resto
dos sonhos, um novelo que deixa para trás
precocemente desfeito. Recolho da calçada
um resto de verso, talvez colá-lo com zelo.
Rima inútil, o frágil cesto de palavras rasga
com os cacos dessa métrica do desespero.


Nada que importa aos homens em sociedade
cabe na poesia, precária como a luz do dia.
É tanto o que não cabe que calo, tenho medo
de não mais caber daquilo que jamais coube,
e sobrar das noites insones e dias acordado
em excesso versos dissonantes que não posso,
não sei: a realidade não admite consonâncias.


Com medo de emudecer, poemo, e minha voz
treme entredentes de frio e fome, mas encontra
um verso avaro que nada guarda, resta-lhe
apenas aquilo que pressente e o que sobra:
a maldição da vigília e das manhãs, certeza
de ser apenas um indigente vigia dos sonhos,
tantos sonhos perdidos que trazem as gentes.


Do livro “Soda Cáustica Soda” – breve.

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