Não é a primeira vez que publico este poema no “blog”, alguns já devem conhecê-lo. Quando o escrevi já temia sua circunstancialidade. O poema com carga numa determinada circunstância corre o seriíssimo risco de tornar-se datado, e ficar com gosto de passado, perdendo a perenidade, que deve caracterizar a arte. Não que eu ache que o poeta deva viver fora de seu tempo, ao contrário, o artista deve nele inserir-se, fruto que é de suas gasseteanas circunstâncias, porém a arte, a meu ver, quando boa, deve revestir-se de transcendência. Em resumo, a obra de arte deve transcender seu autor e seu tempo, da mesma forma que se o artista se alienar de sua contemporaneidade perderá o seu sentido.
Quando estava fazendo a revisão de meu livro, “Soda Cáustica Soda”, que acaba de sair pela Editora Patuá (vejam o “link” abaixo), tive sérias dúvidas quanto à oportunidade de incluir um poema escrito sob o calor de uma eleição conflitante e temeroso com o que antevia (não era difícil). Resolvi deixar, ainda faltaria um bom tempo para a sua intranscendência tornar-se insuportável, quando isso acontecesse, porém, já seria história, e esta é inevitável.
Hoje, lendo notícias sobre a apologia da violência, milícias e grupos paramilitares de extrema direita (não finjamos que não são isso, pois são exatamente isso) invadindo uma igreja onde se celebrava um culto com delicioso sabor ecumênico e interracial, em pânico, percebo: tristemente, nada que rescenda a violência, autoritarismos e ditaduras perderá sua transcendência, e como gostaria de estar enganado.
Daí me lembrei do estupendo livro de entrevistas que Elizabeth Roudinesco fez com Jacques Derrida. Lá, o filósofo pontuava que, exatamente por essa permanência do monstro, alguns marcos civilizatórios alcançados, dentre eles a democracia, os direitos das mulheres, negros e a questão ecológica, deles não se pode retroceder, pois, independentemente de aspectos culturais e indentitários, são conquistas de toda humanidade, e não de um só grupo.
Por isso, a necessidade de jamais esquecermos o fascismo, o nazismo, o stalinismo e demais formas de manifestação de bestialidade humana.
Mais triste do que feliz, constato que este poema, que faz parte do livro recém-lançado, mantem intacta a sua necessária transcendência. A mim, ao meu tempo, ao meu país.
Adoraria estar enganado, temo não estar, alimentamos a víbora, ela está parindo aos nossos pés seus filhotes.
A PELE I
A serpente, não se iluda, jamais morre ou envelhece
apenas se despe, enquanto ela mesma outra
retece.
Seu ovo é sempre recomeço, nunca início ou herança,
se a vemos morta,
é que finge, já tece nosso tropeço.
A serpente não grita, sibilina,
sussurra, nos hipnotiza,
precisa pedra paralisa prepara o bote em quem a pisa.
Hermafrodita
de duas cabeças, confunde quem a ouve,
as vozes antagônicas, mas é una, embora
vária pareça.
Seus dois lábios sibilam e seduzem com lábia medonha,
oferece as duas línguas no beijo bifurcado de peçonha.
Na escuridão da nossa
estupidez, nas sombras da nudez,
não vemos o veneno viscoso que escorre do sexo
imundo
A mistura de sangue e
sêmen fecunda o ventre do horror,
e espalha frutos do amor maldito: esses ovos
de chumbo
I
Poderíamos,
mas não queremos, ouvir das sombras os sons
do seu corpo, pois ela já se
arrasta no meio de nós, nas ruas
o seu espectro se esgueira por entre as pernas
das gentes.
Foge entre as frestas
das portas da história e das janelas
cegas entreabertas da memória. Não as vê?
Há uma legião
delas, estandartes negros, a marcha marcial em procissão.
Tudo nelas é opaco, nas
mãos um crucifixo, pois as serpentes
primeiro apropriam-se dos símbolos e dos
signos das gentes,
coagulando o sangue das crenças para roubar-lhes as almas.
Plantam seus próprios
signos por toda parte, sua simbologia,
símbolos de si mesmas, os ícones da
morte e fetiches da dor,
levam o cadáver de Eros, necrófilas, gritam: “morte ao
prazer!”
Levantam em cada praça um altar, cibernético ou real: enorme
estrutura
de metal, um cubo sem paredes, no meio desse espaço
flutua um neon lilás que
balança no vento ao som do serpentário.
“Vazio”. Esse o signo
que desenharam, eis o que desejam de nós,
esse o seu mandamento e seu sermão
das montanhas (nas mãos
ocultam os cravos e a coroa, precisam dar à morte outra
ocasião)
II
Lembrem-se daquele dia em que uma legião delas esteve em Praga,
Viena,
em Paris mais de uma vez fizeram ninhos de cores múltiplas,
em Moscou,
Nanínbia, em Auschwitz e Gullak, imensa foi a ninhada.
Em nuestra America,
nestes tristes trópicos, sempre mudam de pele,
seduzem com miragens a multidão
mesmerizada pelos olhos verdes,
as mentiras da puta insidiosa a quem tanto
amamos. A cobra tropical
já despiu sua roupa, deixou sobre as árvores a
antiga pele, a diáfana
lingerie, véu da noiva para quem, mesmo traídos,
cantamos um tango,
“mostrá tu risa!”, sangue e lágrimas jorram dos nossos
joelhos: “vuelve
chorra!” A cínica, sorri cicia sussurra roça nas pernas o
“esse” do corpo,
falo e fêmea, homens e mulheres nos entregamos. Conhecemos sua
voz,
sempre o mesmo soprano, sibila da serpente, por que então a seguimos?
A serpente outra vez espalhou os seus ovos, e já eclodiram entre nós,
brotaram entre as gentes
as pequenas cobras, inocularam a discórdia,
o veneno do ódio, tambores ritmados
anunciam as trombetas da morte,
São as exéquias do amor. E
enquanto sangramos fraticidas, ela cicia
num gozo suicida, sua língua derrama
em nossos ventres seu veneno
invisível, o seu sêmen em nossas bocas. E sobre nossos cadáveres.
(Do livro “Soda Cáustica Soda”
- Cidades – As Erosões da Pedra - vejam "links" ao final)
Excertos de CIDADES (AS EROSÕES DA PEDRA) - Do livro “Soda Cáustica Soda” – jÁ À VENDA, NO “SITE” DA EDITORA PATUÁ Comprem aqui
Curtam a página do livro neste "link": vejam a página do livro Soda Cáustica Soda
Forte.Muito atual.Gostode como vc vai conectando fatos e idéias.Tempos ,lugares, não tem como não pensar diante deste poema. Construído e lapidado . Adorei reler. Abraço amigo.
ResponderExcluirAdorei o blog vou voltar sempre.Vou passar pro meu filho poeta jovem,21 anos, vai ajudá-lo no ofício. O nome dele é Pedro Avila. Escreveu um bom artigo sobre Melo e Castro e foi selecionado para uma Antologia de jovens poetas em língua portuguesa. Está aí na UFF.Forma o ano que vem. Veremos, pois está difícil a vida acadêmica desses meninos.
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