DESESPERO E FUGA

Estranhas as coincidências da linguagem e da arte, universal por natureza (ou não será arte, Schellling, “Filosofia da Arte”).

Numa visita a um museu esbarro numa tela de Otto Friedrich, “Fugato aus dem Zyklus Rhythmen”, de 1913. Talvez uma tela pela qual eu passasse sem dar muita importância, mas logo meu olhar cravou, e descobri ali, imaginei, a ilustração para um trecho de um poema meu, publicado no meu último livro, “Soda Cáustica Soda” (Editora Patuá, 2019): “A Procissão dos Enfermos no Cais do Desterro”.

Eis o poema e a tela. Devem falar por si mesmos. 

(...)

6 – DESESPERO

Um olho se entretece a outro olho que a um outro olho procura,
na trama da esperança de saber se um dia haverá um homem,
um só, que tenha fugido do drama de ser o próprio inferno, traga
notícias de um vento que enfunará velas, e revelará os mistérios
de uma fuga que a poucos prometerá. Essa tessitura de olhares
cruzados, trai o ódio por onde transpira a impossível esperança.

(...)

Alguns poucos ainda buscam por bússolas tontas sussurrando
o vento norte, mas não há vento nem norte, não há esperança
de fuga, só uma porta ainda os separa do tempo dos homens,
a mesma porta que os levará para fora do tempo e dos homens.
Ombro a ombro, suores em febre misturam-se afluentes, roçam
as peles em pânico no rumor da força da multidão amalgamada
na fúria de quem descobriu um insepulto fim, sem escatologias.

Uma morte sem cadáveres da qual eles morrem todos os dias.

7 – FUGA

Eis o cheiro da fuga do homem: suores, urina e excremento,
ainda resta uma réstia de fé: eles chutam cabeças exangues
mas não é a vida o que tecem em pânico, é o furor da fuga
que cega, é apenas outro ponto do próprio e profano sudário.
Uma última esperança! Correm entre poças de merda e sangue,
mas súbito súcubos ou anjos impedem o êxodo e a esperança.
Quem lhes virou as costas, Deus ou Demo? Mas isso importa?

Pois jamais saberemos se existe o homem além daquela porta.

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