segunda-feira, 13 de julho de 2020

A DEPOSIÇAO DA CRUZ EM RUBENS, POTORNO E VOLTERRA – BREVES E DISTINTAS VISÕES SOBRE UM MESMO TEMA


       Dentre as representações de temas bíblicos, tão fértil em vários períodos da História da Arte, a “Deposição da Cruz” talvez seja a que tenha nos proporcionado as mais extraordinárias obras. Entretanto, a meu ver, foi no Barroco que atingiu o seu esplendor, e não sem motivo, pois dada à dramaticidade que traz a cena do corpo de Cristo sendo retirado da Cruz, prestou-se magnificamente ao chamado “Drama Barroco”, esse teatro que tanto amo.
       
       Porém, este destaque inicial dado ao tratamento da cena no Barroco, de modo algum me afasta do êxtase provocado por obras de outros períodos sobre o mesmo tema, em especial, no Renascimento, com Raphael, por exemplo, e, como veremos, no Maneirismo. Muito menos, óbvio, as desmerece, apenas justifica, se é que o faz realmente, a inversão cronológica deste devaneio.

       Para tentar destacar uma possível (e visível) oposição entre três artistas bastante representativos desses dois períodos sucessivos, o Maneirismo e o Barroco, inverto a cronologia e inicio por um pintor icônico do segundo (quase incluo neste texto Caravaggio, mas este merece um artigo à parte).

       As duas telas de Rubens (1577-1640) que ilustram esta publicação permitirão observar como aquele período privilegiou a concentração (Wölfflin, “Conceitos Fundamentais da História da Arte): as figuras formam um todo unitário, todavia, a despeito de formarem um só bloco coeso, cada personagem guarda a sua própria individualidade. Essa concentração, num primeiro momento, não permite a dispersão do observador, entretanto, num momento posterior, se expandirá para além do quadro, ao mundo real, libertando-o dos limites da tela e o integrando à cena representada: a "cena mundo".


      Desviando ligeiramente do assunto, a tela, ou o limite dado por qualquer suporte, mesmo no caso do Barroco, que costuma ultrapassá-la de forma virtual, ou “ideal”, fundindo o “espaço ideal” ao “espaço real” (apropriando-me de uma ideia de Bakhtin quando trata do texto literário), é uma necessária contenção para a liberdade criativa, de forma a não se diluírem as regras “do engenho e da arte”.

       É notável que mesmo nos artistas de vanguarda do século XX, quando a desconstrução formal - tanta vez excessivamente diluidora, nos tendo deixado numa encruzilhada quanto ao ponto de retorno ou de reconstrução sobre os escombros - levou a uma radical ruptura das fronteiras da obra de arte, turbando a sua fruição pelo observador, não raras vezes necessitando de uma “explicação”, (uma “bula”, como certa vez um vanguardeiro se irritou comigo) afastando um requisito fundamental em arte: o princípio da alteridade, a necessária distinção entre o emissor e o receptor, a independência e a liberdade deste último para recriá-la no tempo. Claro que não generalizo, seria estupidez, há, como em toda época, alguns artistas geniais, que vencerão o tempo, mas é inegável que foi um período que facilitou o surgimento de algumas ovacionadas e bem conhecidas nulidades. Entretanto, mesmo naquelas tentativas de ruptura (e algumas afetadas pseudorrupturas) tais limites existiam, até por absoluta imposição física do objeto material, o que me parece, além de óbvio, recomendável.

       Tais lindes, que na pintura são dados pela própria dimensão da superfície do suporte utilizado, e na escultura pela natureza de objeto material delimitado no espaço/tempo, num paralelo interessante, podem ser comparados ao tema, na poesia, e ao enredo, no romance, concentram os esforços do artista, concomitantemente liberando-o para o que verdadeiramente interessa: as questões estéticas, do poema, do texto, do escultórico ou do pictórico, além de roubar a atenção do leitor, seduzindo-o.

       Voltando ao tema da “Deposição”, no Barroco, e a concentração com que é representado, é impressionante como Rubens, em ambas as telas que ilustram esta publicação, através de diagonais que dominam o olhar, formadas precipuamente pelo corpo do Senhor morto, destaca seu protagonismo ao mesmo tempo que amalgama as personagens num bloco unitário, conduzindo a visão do leitor de forma absoluta, quase arbitrária, não deixando espaço para qualquer dispersão numa primeira leitura, indicando - e nisso Caravaggio e Velásquez eram outros dois mestres barrocos - o caminho a ser percorrido pelo olhar do observador, só permitindo o deleite com o não fundamental após esgotadas as possibilidades de leitura do tema principal, impedindo, assim, a abordagem apressada, dispersiva, afastando o leitor afoito ou leviano das questões estéticas que interessavam ao artista.

Deposição Rubens 1 


       E era tal o domínio que tinha de sua arte, que o fez, como se pode observar, em duas direções: da esquerda para a direita, e vice-versa - e não sei, nem importa, se era destro ou canhoto - traçando uma “linha de força”, esse roteiro pré-estabelecido que conduz o olhar. Todavia, ao fim dessa condução de nosso olhar por toda superfície da tela, ele, sempre com o absoluto domínio, tanto da técnica quanto do olhar o observador, o projeta para além dos seus limites, característica já mencionada daquele período, transportando, com sua arte, o observador para além do espaço simbólico (ideal) da Arte, para o chamado “mundo real”, o Homem, comunicando, dividindo com ele o drama da existência humana, amalgamando o observador às personagens, transformando-o.
Descida da Cruza - Rubens


       

O mundo, ele parece nos lembrar, existe para além do cenário da obra representada, nos transformando em involuntárias personagens, como, aliás, assinalei em outro texto sobre “As Meninas”, de Velásquez, também publicado aqui, neste blog (Um Olhar Furtivo sobre As Meninas - Revisitando Velásquez ).

       Num contraste interessante, voltando um pouco no tempo, num período imediatamente anterior, dois outros artistas, que alguns críticos, como o já citado Wölfflin, classificam com renascentistas, mas que, ao menos nestas duas telas, me parecem mais uma patente aproximação com o Maneirismo, opinião na qual não estou sozinho, representam a “Deposição” de forma quase oposta a que o período imediatamente posterior o faria.

       Em Daniele Volterra (1509 – 1566) e Pontormo (1494 – 1557), cujo detalhe da cabeça do anjo (foto), é de uma beleza arrebatadora, não há, como no Barroco, a concentração nas personagens, ao contrário, as figuras "desagregam-se do núcleo central, entretanto, demonstrando o domínio da técnica, ao contrário do que poderia acontecer, não mergulham no caos, todas as personagens, destacados os protagonistas,  têm importância semelhante e se distribuem pela tela com absoluto equilíbrio, conferindo a necessária unidade estética, sem a qual não há arte possível, ao menos boa arte.
Pontorno (detalhe)
Pontorno

       Por outro lado, curiosamente, ao contrário do Barroco, a despeito dessa “dispersão”, as telas “limitam” a leitura, não permitindo a percepção do mundo a elas exterior, numa outra e contrária forma de contenção (e concentração, não das figuras em si, mas da e na obra) desta feita pelo espaço da superfície do quadro.
       No que respeita ao aspecto cromático, há outra
Volterra
expressiva diferença entre os artistas e os dois períodos analisados, que também destacam a oposição entre eles, tanto estética quanto filosoficamente: em Rubens, e, por assim dizer, no Barroco, o uso dos tons soturnos e o “chiaro-oscuro" realça, bem ao gosto do estilo, o gesto por si só dramático do tema, a tragédia da nossa existência.
       Na primeira tela, um centurião romano ainda veste suas roupas militares, de algoz; e, nas outras personagens, são nossos – eis que os lindes da tela foram ultrapassados, nos envolvendo - aqueles braços quase violentos de tão musculosos retirando da cruz o corpo do Senhor, que de olhos abertos parecem ainda sofrer as dores do calvário, clamando ao Pai que lhe poupasse do amargo sabor do cálice da dor. A cena expõe a canalha humana, em contraste (também tão barroco) com a perfeição do Divino, esta sim personagem principal, enquanto nós, humanos, somos aqui em tudo secundários, menores e pecadores, assassinos do Deus feito Homem, aflorando culpas (ecos da Contrarreforma?), mas, sobretudo, revelando a tragédia e a beleza de estar vivo, mesmo dentro da nossa pequena dimensão e “condição humana”, tratamento que em Caravaggio, como espero voltar em breve em outra postagem, chegou ao paroxismo. 
Rubens detalhe
       
       Em Pontorno e Volterra, ao contrário, também traduções que eram do período no qual produziram, o Maneirismo, a luz nos eleva ao Paraíso e à “Luz”, nos redime, nos faz à “imagem e semelhança” de Deus, embora “semelhança e imagem” bem distintas das tentativas observadas pela Igreja na Idade Média, nos faz quase solidários com o Senhor morto, quando o depusemos da cruz. E como diferem os braços das personagens, quase angelicais, dos braços que Rubens retratou retirando Cristo da cruz, pesados, violentos, como já destacado. As personagens, se deixam transparecer sua dor ante a cena, o fazem de forma menos dramática do que em Rubens, e mesmo o desmaio de Maria ante o sofrimento, na tela de Volterra, traduz a sua dor, mas reveste-se de diáfana leveza, nos dando a certeza do inesgotável perdão da Mãe de Deus, afastando-nos um pouco de nossa trágica humanidade, nos aproximando da dimensão espiritual de Divino. Nos redimindo.

Volterra
                                                                ... 
       
       São três faces que nos ajudaram a pensar e a traduzir
as diferenças entre a Filosofia e a Estética dos séculos XIV ao XVI em anteposição, embora em períodos sucessivos, ou por causa disso, às dos séculos XVI ao XVII. São perspectivas estéticas e filosóficas quase opostas, o que as une? Além do tema, a inefável visão da Arte, que, como tenho repetido, nos dá alguma parca esperança no ser humano.

       E isso, num tempo tão triste – e feio – como o nosso, traduz-se em alento. E resistência.

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