domingo, 5 de julho de 2020

POR QUE NÃO ENTERRAMOS O CÃO? UMA LEITURA.


     Sei que tenho me repetido, mas, com algumas variações, acho importante fazê-lo: me gratifica ser testemunha de uma ressurreição, ou redescoberta, da literatura brasileira. Ressurreição ou redescoberta?

     Ambos, ressurreição, e este é um fenômeno global, por que, após as desconstruções das décadas de sessenta e setenta, à época oportunas e razoáveis, houve um impasse: como reconstruir o que em escombros estava?

   Fruto da vanguarda (ou das vanguardas) do século XX, a desconstrução formal e excessivamente conceitual, tanta vez diluidora ao limite, levou a uma radical ruptura das fronteiras da obra de arte, o que resultou turbar sua fruição. Essa realidade, embora à época talvez urgente, terminou por afetar a minha geração e as vindouras (não sou tão jovem), legando para nós, que não vivemos aquele período, ou que apenas o tangenciamos, um pesado encargo.

     Mas, para além desse aspecto, o que houve, e aqui o fenômeno é essencialmente brasileiro, foi uma redescoberta do que já existia, ou ao menos germinava.

    Com o clientelismo e o irremediável compadrio que sempre marcou as nossas relações, sejam elas econômicas e/ou culturais, o “quem é amigo ou foi aluno de quem, e por aí vamos”, aliado a uma excessiva e exclusiva preocupação com o “mercado”, de resto saudável, desde que profissional e impessoal a relação editor/autor, deu-se que não se elegiam as obras por sua qualidade, mas por uma exótica política de boa-vizinhança, vício que ainda nos consome.

      Isso, além impedir o, aqui sim, saudável experimento estético, ou marginalizando uma ou outra categoria, como a poesia, afastou o leitor, tanto o leitor comum, que não está interessado em quem é amigo de quem, bem como o leitor adicto, fiel, que se priva de roupas e lazeres para entrar nas livrarias como quem entra num templo, afinal, fazer o quê por lá? Ele se pergunta. Principalmente agora, com o comércio eletrônico, o que tristemente levou de cambulhada as pequenas e charmosas livrarias e os velhos sebos físicos, com seu delicioso sabor de livros velhos.

     Tal estado de coisas terminou por condenar autores e leitores a um isolamento, (in)voluntário mas de consequências previsíveis, a uma solidão difícil de ver romperem-se os seus muros. Claro que sem sua solidão o autor pouco escreve, por outro lado, o autor ilhéu se priva da fundamental troca com outros autores, que o faz parte da identidade cultural de um país.

     Entretanto, a disseminação dessa mesma Internet e das redes sociais, de certa forma, “furou” as inexpugnáveis fortalezas dessa realidade. Sim, essas mesmas redes sociais, constantemente acusadas de dar voz ao imbecil - e nada mais verdadeiro, haja vista as últimas eleições - proporcionou a troca entre leitores e escritores, fomentando entre estes a mútua leitura, o que desaguou, felizmente, no surgimento de inúmeras e fundamentais pequenas editoras, boa parte delas saudavelmente conduzidas também por autores. A quem interessar, esse olhar foi mais desenvolvido num artigo publicado no caderno cultural do jornal “Tribuna Feirense” ("link": Recompondo a Manhã)

     Então terá brotado do nada uma nova literatura brasileira? Do nada é o escambau, brotou dos subterrâneos nos quais a haviam aprisionado, entre as ruínas das quais lutava para emergir, brotou das prisões estéticas, econômicas e acadêmicas nas quais estava confinada.

     Dessa realidade é que tenho prazerosamente colhido uma safra de vigorosos poetas e prosadores da mais fina cepa, dos quais não citarei nomes, para, num natural esquecimento, tantos são, não ferir suscetibilidades.

     Ao ver essa espécie de renascimento caboclo, me perguntava se haveria uma unidade estética que caracterizasse essa nova literatura, e cheguei a identificar - ou apenas desejar, já que fazia algumas experiências com minha poesia nesse sentido, o que veio a refletir na minha atual produção - talvez influenciado pelas minhas leituras à época, o que poderia ser chamada “uma estética da crueldade”, que pouco tem a ver com o “teatro da crueldade”, de Antonin Artaud (“O Teatro e seu Duplo”), mas com a crueldade em si e propriamente dita, o daemon que nos habita, que é um maneira de incomodar o destinatário, a única verdadeiramente revolucionária em Arte. Posteriormente foi que percebi que me equivocara, na verdade, a unidade, se alguma havia, era a preocupação com a forma, o que é compreensível, pois após a desconstrução da qual falamos acima, a reconstrução sobre ruínas só poderia se dar pela forma.

     Mas eis que me deparo com a excepcional prosa de Theo Alves em “por que não enterramos o cão?” (Editora Patuá, 2020 – à venda em por que não enterramos o cão? Editora Patuá), sobre o qual modestamente pretendo dividir minhas impressões.

     Não sou crítico, apenas um poeta que gosta de refletir sobre o que lê, e se o que lê o movimenta, se detém e escreve sobre o que leu, como aprendeu com Macedónio Fernandez. Ali estava algo próximo ao que havia, embora erroneamente generalizando, imaginado: uma “estética da crueldade”, uma literatura que se utiliza da crueldade para incomodar o leitor, da linhagem do fabuloso e sofrido (teve um vida infeliz, que encerrou com seu suicídio) uruguaio Horácio Quiroga (Cuentos de amor de locura y de muerte - 1917), não influência - aliás difíceis de identificar na literatura de Theo, o que demonstra maturidade estética - mas linhagem literária mesmo.

     Entretanto, reduzi-la a apenas este aspecto seria, como veremos, injustamente empobrecê-la. Sua literatura é bem mais do que isso.

    Theo já diz ao que vem logo no primeiro e excepcional conto que, não por acaso, dá nome ao livro e o apresenta: “por que não enterramos o cão?”. Ali está indicado o que espera o leitor em todo o percurso do livro, além de algo próximo a uma crueldade, como dito, a linguagem econômica, a repetição que impõe um ritmo ao leitor (afinal, por que não enterramos o cão?), além da força das frases, algumas de um vigor poético arrebatador, tal a concisão e virulência.

     A crueldade, sim, perpassa todo livro, a começar pelo título. Mas não a crueldade pura e simples, o que soaria exibicionismo e/ou preciosismo, algo como um “épater la bourgeoisie” adolescente e tardio, mas a crueldade temperada pela ironia, para que o leitor não saiba se o que sente é medo, espanto (e não há arte sem espanto), cumplicidade pela leitura erudita, para aqueles que percebam as referências, ou esboce o leve sorriso do esgar de um morto, ou os quatro estados concomitantemente: medo, espanto, cumplicidade e a aflição que sentimos ao nos deparar com o esgar do sorriso de um morto.

     Eu falei em morte? Sim, a “indesejada das gentes” atravessa todo livro com sua cruel permanência e certeza. Não a morte como finitude, como fim da existência, ou de algum conto, solução em regra desastrosa que alguns autores incorrem, esse pecado elencado por Forster em “Aspects of the Novel” (Aspectos do Romance), livro hoje injustamente não compreendido, que dizia, se bem me lembro da minha leitura ancestral, que a pior forma de acabar um livro é o autor “assassinar” o protagonista. O que temos em Theo não é “um” morto, antes, são inúmeros tipos de mortos, como inúmeros os tipos de vivos.

     Um cão está morto. Qualquer um? Não, “o cão”, covarde e cruelmente atirado ao rio como lixo por aqueles que amava (e serão vários os mortos tratados como lixo ao longo do livro), e, neste caso, pois como disse há outros tipos de mortos, não é o morto que insiste em permanecer vivo, como veremos, mas é o seu corpo entre os “escombros (...), os dentes e ossos de todos os cães do mundo que foram deixados ali (...) brotarão finalmente sob o concreto da ponte”, Só então o cão poderá ser (será?) enterrado, abandonando os “relógios (que) estrebucham em quase-silêncio”, e o “hipopótamo corpulento enforcado em sua coleira”. Sim, há algo de fantástico nessa literatura, mas não de “realismo mágico”, nome que, de resto, não sei – ou sei - por que nutro especial antipatia.

     E serão diferentes os mortos que carregaremos livro afora (e depois dele também). Há os que se conformam com a morte, estes, como o cão, nos fazem descobrir que “o tempo é quase nada na vida de um morto; é na verdade o descuido ingênuo que separa um lado do outro” (“quase nada” – pg 27), e outros mortos resignados (“para o enterro de papai” – pg 57, de tom levemente “sofocliano”, em “Electra”, peça sobre a qual, tal Édipo Rei, Freud equivocada ou maliciosamente nos legaria sua leitura).

   Contudo, há também cadáveres que insistem em não ser enterrados, não por amarem a vida, mas por desprezarem os vivos e ignorarem a morte, sendo por aqueles desprezados, quando não odiados, e que muita vez conseguem finalmente enterrá-los, mas com o desprezo dos ressentidos, “rapidamente, como enterravam a merda que cagavam pela manhã” (“papai está morto” - pg 152).

     Ou o tão cruelmente amado (e este impressiona pela virulência), levado no colo de uma mãe possessiva, que preferiria, a vê-lo morto, a terrível doença que se alastrava pelo corpo do filho, pois assim poderia egoística e/ou sadicamente prendê-lo junto de si, aos seus seios, quem sabe secos e murchos de nojo, pois “as feridas na pele do menino guardado em lençóis traziam um cheiro purulento de morte fresca (contraste quase barroco – observação minha) para o quarto. a mãe aspirava com força e pedia a deus, não que o curasse, mas não o deixasse morrer” (o menino da sua mãe – pg. 93).

    São os mortos que não se querem mortos ou que insistem em não ser enterrados, jogando no nosso rosto sua indesejada permanência, o morto que, como o cão que não enterramos, se recusa a ser esquecido e a precipitar-se no Nada.

  Assim também o parricida (“o libertador” – pg 143) cuja permanência do pai o perseguirá, e mesmo reconhecendo que compreendera as lições por ele dada ao longo da vida, e por isso mesmo, livre de qualquer culpa, revelará que “nunca precisei que ele me perdoasse por tê-lo matado”. E eis um exemplo da ironia contendo a crueldade.

    Ou ainda os (patéticos) ditadores que de tal forma se aferram ao Poder que não percebem que já morreram e foram esquecidos (“como se chama o presidente?” pg 67). Ou o general, este da espécie de mortos que não admitem o próprio fim que “(...) cansado, morrera tantas vezes este ano que não sabia mais calculá-las (...) era talvez hora de entregar o governo aos civis” (“o general amanhã” – pg 85), um espelho onde podem se ver, mas se recusam, todos os ditadores. E qualquer semelhança desses dois contos com o atual estado de coisas no Brasil não é mera coincidência.


FACA E PALAVRA

    O tema, na poesia, bem como o enredo, na prosa, são formas de contenção do autor, para que este possa (de)limitar o necessário devaneio criativo, e sua palavra atenha-se ao que realmente interessa em qualquer forma de arte: as questões estéticas, suas e de seu tempo. O resto é transbordamento do enredo, concessões várias para “facilitar” a vida do leitor, subliteratura, enfim; ou propaganda mal disfarçada de ideologias várias, a “boa intenção” política, rasteira e simplista, que limitada apenas a isso, quando não contida e valorizada pela forma, também faz da literatura ruínas, igualmente subliteratura. E Theo não incorre em nenhum desses pecados, sua literatura, saudavelmente, evita a obviedade ideológica, bem como dialoga com o leitor, sem, no entanto, deixar-se seduzir por ele, muito menos ser subserviente.

     Como já mencionado, há uma repetição formal e temática, como a fatídica pergunta: “por que não enterramos o cão?” Ou “mãos” que se repetem e se espalham livro afora, ora cruéis, ora solidárias, mas de uma igualmente cruel utilidade, “(...) um monstrengo atado ao coto de seu braço (...) que não servia para quaisquer das funções de uma mão”. (“a mão do ferreiro – pg. 31).

    O livro nos impõe um ritmo quase sufocante, que faz o leitor perguntar-se por quanto tempo o autor sustentará esse “dó de peito” numa variação em torno de temas bem definidos, temas estes, como deve ser na boa literatura, que não são de fácil digestão, se prestam apenas para prender a atenção o leitor, levando-o às questões trabalhadas pelo autor.

   E se falamos nelas, nas questões estético-formais, necessariamente chegamos à força poética das frases deste livro. Mas, leitor improvável, alto lá! Nem me passa pela cabeça dizer que em Theo há poesia em prosa, muito menos prosa poética, seria desastroso, assim como é detestável o poeta que acha que a poesia é “prosa empilhadinha”, como definiu certa vez João Cabral, pega-se um ideia (sempre ela, a maldita ideia avacalhando o poema, já que este não é feito daquela, como ironizou Mallarmé) e sai-se cortando as frases, empilhando-as e, pimba! lá estará (estaria) o poema.

     E, menos mal, não escreve poesia “em forma de prosa”, (como os pintores românticos, criticados por Goethe exatamente por isso) mas frases que trazem em si um vigor poético que poucas vezes, por mais que procuremos, encontramos em alguns poetas. Vejamos alguns exemplos:

    Logo no primeiro conto, sempre ele, no primeiro parágrafo, Theo derruba o leitor, tornando-o como um cão não enterrado, que se deitava “por séculos sob a goiabeira”, o mesmo cão que, como todos de sua espécie são dignos de inveja pois “vivem sem arrastar o peso do passado e sem antecipar a apneia do futuro”. E será na reminiscência do passado que o autor nos mostrará “as árvores se esticando no olho da paisagem” (pg 57), entretanto, não faz uso da precária metáfora do tempo como um rio que não cessa de passar, ao contrário, é “como um berço de seixos de um rio morto (outro morto) há séculos numa terra em que não há tempo” (pg 65 – parênteses meus).

   Poderia ainda pinçar inúmeras frase que demonstrariam essa força poética que perpassa o livro, mas me tornaria enfadonho para o leitor, que espera por uma resenha, e não uma tese, que bem merece esse livro. As aqui mencionadas bastarão para que ele perceba o que sublinho. Porém, há uma incontornável, deixar de destacá-la seria trair a minha própria leitura, e matá-la com a mesma “faca (que) rasgava a barriga do peixe como se abrisse nuvens, de onde escorreria uma chuva vermelha e viscosa” (pg 125 – os parênteses são meus). Irretocável.

    Mas esse pinçar de frases é apenas outra leitura possível desse livro, que como toda arte de qualidade permite inúmeras outras, como escamas de um livro-peixe rasgadas de acordo com a bagagem do leitor, pois há também uma espécie de “jogo” bastante interessante: prospectar o ouro de aluvião, quando citações explícitas, ou nos veios da terra, quando meras referências, mais difíceis de identificar, entre os inúmeros autores que sustentam o edifício intelectual de Theo.

    Assim, é com prazer que encontramos e bateamos, pois citado explicitamente, nesse rio onde os cães jamais se enterram, a poesia de Cabral em o “Cão sem Plumas” (o mesmo cão que não enterramos?), de “pelos/plumas (...) terá o cão se tornado rio, como em joão cabral?” (pg 12) ou as “folhas de relva, para achar no abandono a poesia de Whitman” (pg 13), ou na leitura de um “livro em que na capa há de brilhar o nome perene de dom quixote” (pg 89).

     E o ouro de veio, de prospecção mais custosa, meras referências a Fernando Pessoa (“lembro tão bem de eu ainda menino e ninguém estava morto” – pg 55) ou um Dostoiévski renascido num “raskólnikov capaz de relevar a culpa” (pg 143) ou o tom levemente drummondiano de “O Caso do Vestido”, em “outro prato à mesa” (pg. 39), ou, ainda e novamente, João Cabral, agora velado, quando Theo nos apresenta a um “homem só lâmina” (pg 157) e na dura realidade do sertão dos neologismos de Guimarães Rosa (“jagunçaria, jagunçagem, como joão rosa ensinava a chamar” – pg 158/9), aqui citado entre o explícito e o implícito, afinal “joão rosa” pode ser qualquer um.

     Certamente o leitor com mais bagagem do que este precário poeta encontrará outras minas, rios outros.


xxx

    O entusiasmo, no sentido ritual que lhe davam os órficos, celebrado nos altares de Baco, pode levar o leitor descuidado, ou açodado, o que é um quase pleonasmo, a ler o livro de cambulhada, pois assim nos impõe o seu ritmo, mas ao leitor se pede, ou melhor, se exige calma, para que o deguste, para que não cometa o crime de beber toda a taça num só gole, desperdiçando o vinho, profanando o rito a Dioniso. Além de ser leitura equivocada, não é permitida pelo texto, pois se cada conto guarda mares abissais, a serem atravessados com cuidado e calma, por outro lado, o livro nos impõe um ritmo de fazer estancar o fôlego, nos carrega na força das correntezas, e é preciso que o leitor se deixe afogar levado pelas correntezas, pois, frágeis, os escombros do cão que ele também é se deixarão arrastar pelas mãos precisas do autor, como uma linha de força numa tela de Rubens, que conduz arbitrariamente nosso olhar. Maestria.

    A esse leitor restará, ao fechá-lo lamentando seu fim, a memória desse livro ecoando no paladar do espírito, que, como toda boa literatura, sempre guardará o sentido da persistência e da palavra, e passará o restante de seus dias de lucidez perguntando-se: “afinal, por que não enterramos o ‘por que não enterramos o cão?’”.

     Porque não queremos.
     E porque não podemos.








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