Para minha mãe.
Para Daniel Chaves, pelas armas.Do not go gentle into that good night,
Old age should burn and rave at close of day;
Rage, rage against the dying of the light.
(…)
And you, my father, there on the sad height,
Curse, bless, me now with your fierce tears, I pray.
Do not go gentle into that good night.
Rage, rage against the dying of the light.
Não entres nessa noite
acolhedora com doçura,
Pois a velhice deveria
arder e delirar ao fim do dia;
Odeia, odeia a luz
cujo esplendor já não fulgura.
(...)
E a ti, meu pai, te
imploro agora, lá na cúpula obscura,
Que me abençoes e
maldigas com a tua lágrima bravia.
Não entres nessa noite
acolhedora com doçura,
Odeia, odeia a luz
cujo esplendor já não fulgura
(Do not go gentle into that good night.
Dylan Thomas - Tradução de Ivan Junqueira)
1
Por essas calçadas
caminha
um homem. Triste,
ninguém
ninguém o nota ou se
importa
Os olhos no chão
procuram
as pedrinhas da sua infância.
Quem dera chutá-las
agora!
Vai ao encontro da
morte
não da sua, mas de seu
pai.
Por estas calçadas
caminho.
2
QUARTO 713
Abriu a porta,
nada mais
esperava
sabia dos olhos
e da
consciência baços
por aquela senhora
com quem
marcara um encontro
Mas entreolhos o pai
num esforço de
luz
que os olhos já não
tinham, sorriu
e aquela
sombra
num canto recolheu-se
ressentida.
Mas ainda está a
espreita
a
velha puta traiçoeira.
3
Sua vida por um fio
fino,
mantém em suspense as nossas.
4
O velho leão de letras
ainda luta!
As garras afiadas em
lixas insanas
cortam a face da velha
pantera, puta
traiçoeira. Ela se
afasta, temerosa,
porque a fúria
criativa, mesmo cinzas,
é mais forte do que
ela, maldita fera.
5
A vida por um fio
os dias por um fio
de navalha, falham
palavras
versos frases
cambaleiam
nos próprios ecos,
caleidoscópio
de vozes fragmentadas
de vidas fragmentadas.
Nada faz
sentido
A vida por um fio
os dias por um fio
que corta o que afia
a agulha que borda o
fio
desta história cujo
final não sei.
Ou sei. O afasto ou
aproximo,
conforme fio
no que a vida
me ensina
Só não ensina como se
fia
este Risco do Bordado.
6
Estranho, Velho Leão
insano,
vê-lo assim, seu carão
infinito
agora murcho e sem
bigode.
Esses tubos nada
metafóricos
trespassando sua
garganta
sem significado,
significam a vida
Estranho, Velho Leão
insano,
vê-lo assim, só, seus
olhos baços
que souberam como
poucos brilhar
e brincar de Deus,
inventando gentes.
Insano, sim, é como o
chamo, insano,
ninguém brinca de Deus
impunemente
Onde estão Fortunato, Capistrano,
Terezinha Virado? Persona
libertou-se
da pessoa, as
personagens ganharam vida,
filhas libertas do
criador. Está só, tão só,
velho, apenas seus
filhos carnais o visitam,
muito tão só,
personagem de si mesmo.
Estranho, Velho Leão
insano
(e estranha esta
palavra: “insano”
contrária a são, mas
que hoje o salva
força fúria da fome de
vida). E Rosalina?
Não, ela não,
esconjuro sua visita, dona,
com essa sua arte de
parar relógios.
Olho esse homem e
choro, ele
que ganhava a vida (e
a perdia)
inventando gentes,
riscando destinos,
homem que num
insuportável silêncio
de esgares, parece
ainda criar e nos dizer
da infinitude do
homem, da finitude da Morte.
Esse homem?
É meu pai.
7
Olho seu rosto,
me é tão conhecido,
pende do corpo frágil
que o sustém agora.
Lembra meu
filho
longes embora no
espaço e no tempo.
Lembra, talvez por ser
eu
o vínculo, esse
vínculo... não,
não adjetivo, não
substantivo,
porque as palavras
hoje são
frágeis
perigosas, mesmo se necessárias
Olho meu filho,
- e a cada dia o
conheço -
é vê-lo, e entristeço,
talvez você não viva o
menino
que logo ele já quase não é
iniciado no tempo e no
espaço
O vejo, talvez por ser
eu
o elo, a ponte, o
liame.
Mas se estou entre
vocês
não estou no meio,
pois me envolve
o todo que somos, o
todo necessário.
Somos o todo,
todos amálgama
8
Imaginei que você
enganaria essa senhora
(não digo o nome, não
é pudor, mas cautela)
com as artes e as manhas de Sherazade.
Mas não, a enfrenta com a fúria de um Hamlet.
9
Falávamos de pessoa e
persona,
suas dissonâncias
seus
silêncios mútuos
Mas esquecemos de
falar, pai,
deste quarto, canto
branco
em que elas
se fundem
E em angústia e medo
me confundem
10
Rage, rage against the dying of the light.
Dylan Thomas
CORO:
- “Um fim! É preciso
um final!
Todo poema precisa de
um fim!”
- Não este.
Não haveria recomeço.
Toco, cauteloso, sua
calva dura
seu crânio esculpido
em angústia
e pânico. Bom tocá-lo
assim, quente,
como quem já não teme
ou pressente.
Enlaço meus dedos nem
tão jovens
nos seus cabelos
ásperos de brancos
como você talvez nunca
fez comigo, penteio
a fronte onde ainda
outro beijo consigo
- “Um fim! Ora, é
preciso um fim!
Toda história terá um
fim!”
- Esta não,
deixemos assim...
Outro beijo, não
aquele de adeus
que quase dei, mas
este que toca
o perfil cavado de
efígie esquálida,
despida de adereços
com que iludimos
o tempo: os óculos –
ainda serão úteis?
O ictus da arcada
frouxa dessa boca
que tanta vez explodiu
violenta e vital,
e agora cala, só seu
olhar inventa a fala.
- “Um final! É preciso
um final!
Todo poema há de ter
um fim!”
- Não este,
não haveria recomeço.
Esse seu olhar outrora
tantas vezes não
agora é sim, e chora,
chama por mim.
É nuvem, mas fala, me
reconhece filho,
seu filho, e da sua
angústia, agora minha.
Esse olhar que em toda
sua vida traíra
o veneno da criação, o
furor dos tempos
imemoriais, hoje, esse
mesmo olhar o salva
porque com ele ruge a
raiva da sua santa ira
- “Mas é preciso um
final, ora, um final!
a chave com que ele
fechava toda história!”
- Não esta, por favor,
afinal, nunca mais
abriria nada”.
Quase beijo essa sua
boca trêmula
e choro no tremor das
mãos (sequela
da luta com palavras,
“luta mais vã”)
luto, procuro, mas não
encontro tal fim
Deixarei ao abandono
estes versos
que se percam os
poemas sem fim
eis que vi a vida por
um fio, e silencio.
Deixo palavras
flutuarem no precipício
- “Mas e o fim? É
preciso um fim!
Não há história sem
fim!”
Eu sei.
Melhor deixar assim.
Volto, nem sei se
feliz ou triste
(há tanto ele
calara!), mas voltarei
aos velhos temas, a
trama da vida
foi demais para mim, e
minha poesia.
Deixo
estes versos
entre
silêncios e agonia.
Prefiro
assim.
Assim recomeço
11
Vem, pai, retorna
cansado da quarta ou quinta
margem, onde quase se
perdeu de nós,
desatracando na
direção do mar. Quase.
E é com a sede dos
desertos que me chamam
esses olhos que me
atravessam e atravessam
quartos paredes e
distâncias. E o impossível.
Como me chamavam (eu
entendia, e eu vinha,
conheço seus sinais),
os mesmos olhos aflitos
quando acenavam da
terceira margem. Sofríamos
Talvez pelo tanto e
igual silêncio da quarta margem
é que me olha outra
vez com a avidez de quem vive,
e me chama, como me
chamava meio às chamas.
Que importa, agora, se
estamos todos aqui, pai,
nas margens reais, ou
quase, do fio desta vida?
Estamos todos em
flores, filhos e personagens
mesmo os que hoje não
nada mais lhe dizem.
Que importa agora?
Aporta nestas margens
porque era de fúria o
oco da canoa, e resistiu
era de aço, o arco da
vida, e tenso ao limite, resistiu,
fez-se voo. Somos
todos, filhos e personagens, flores,
mas flores vivas. Bem
vivas. E acenamos. Aceno.
Vem, pai.
By the grave and stern decorum of the countenance it wore,
"Though thy crest be shorn and shaven thou," I said, "art
sure no craven,
Ghastly, grim, and ancient raven, wandering from the nightly shore.
Tell me what the lordly name is on the Night's Plutonian shore."
Quoth the raven, "Nevermore."
The
Haven
Edgar Allan Poe
E esta ave estranha e
escura fez sorrir minha amargura
Com o solene decoro de
seus ares rituais.
"Tens o aspecto
tosquiado", disse eu, "mas de nobre e ousado,
Ó velho corvo emigrado
lá das trevas infernais!
Dize-me qual o teu
nome lá nas trevas infernais."
Disse o corvo,
"Nunca mais".
O Corvo
Edgar
Allan Poe
Tradução Fernando Pessoa
Rompeu-se o fio, pai
não o prenderei mais
com minha esperança
nossas mãos ainda
presas
- a sua esfria
lentamente -
se despedem sem querer
não há vontade em seus
dedos,
e a dos meus são agora
inúteis.
Se despedem, você se
desprende
na direção do mar,
gesto silencioso.
Já não há terceira ou
quarta margem
nesse rio sem rumo
onde você vai.
Eis enfim o final:
Nunca
mais.
Não sei que forma
usar, se alguma é possível. Não por uma questão de estilo, parece óbvio, não há
estilo possível ante a morte, a morte real, assim como é difícil por sob forma o
desatino.
Terceira e quarta
margem, hoje as descubro tão próximas.
Não sei que forma, por
desespero.
Deixo que meus dedos
fluam
no rumo do que é
impossível fluir,
caminho entre palavras
e paradoxos,
um labirinto sem fio
ou Ariadne.
Você dizia que a
diferença entre poesia e prosa era só questão de ritmo (nunca concordei),
então, qual o ritmo possível destes dias dodecafônicos, destes dias dissonantes
e sem forma?
Lembro-me, e as
lembranças se embaralham, sem ordem cronológica, sem se preocuparem se são ou
não reais. O que importa? Já há realidade demais na sua ausência.
Nesse volteio de imagens que se substituem veloz
e intensamente, lembro-me, eu ainda era jovem, jovem demais talvez, sabendo que
meu ritmo rumava para poesia, você me deu para ler “Procura da Poesia”, do
Drummond, onde, em lição de carpintaria, ele ensina:
“Não faças versos
sobre acontecimentos.
Não há criação nem
morte perante a poesia
(...)
A poesia (não tire
poesia das coisas)
elide sujeito e objeto”.
Qual forma?
Deixo a mão desaguar
sobre as possibilidades.
e ela sempre retorna à
frase, ao verso fatais:
Nunca mais.
Palavras que desabam
como pesadas cortinas, acabou-se o enredo (quase disse a farsa, não seria real
no seu caso, ao contrário, se alguém sofreu intensamente a própria realidade
foi você).
a Indesejada das
Gentes sorri,
diz, com rara,
crueldade demais:
Nunca
mais.
Pai, quase cheguei a
escrever o trecho dos Coríntios, quando tudo nos fazia crer que você venceria
essa velha puta:
Não fiz tal desafio.
Não tive coragem.
Ainda bem, soaria agora
estranha ironia. O faço hoje, quando a ironia é impossível, já não há desafio,
e a pergunta carrega em si a própria resposta.
Vejo você partir e não
sei sequer chorar (sei que farei isso mais tarde, agora, por exemplo, enquanto
escrevo, ou quando estivemos a sós).
Nunca mais.
Tudo se veste de nunca
mais.
As coisas mais
prosaicas, coisas que nada têm com você, repetem: nunca mais, nunca mais.
Volto para casa,
depois de deixá-lo, venho nesta estrada tão conhecida.
Tanta vez passei e
passarei por ela, desde de que escolhi, rumo contrário ao mar, aquela margem de
rio para ver crescer meu filho. Hoje, está diferente, olho para o asfalto e
ouço: nunca mais.
Nunca mais passarei
aqui outra vez, após vê-lo. Como as águas daquele rio, será talvez a mesma e
outra estrada, a mesmas curvas que regem seu ritmo, e que parecem se repetir,
mas são outras, a mesma estrada, mas hoje ela transborda de você, porque há, em
cada curva, a frase, o verso, ...ai:
“Nunca mais”.
Horácio. Lembro,
lembrei-me dele agora, vendo um desses andarilhos da estrada, ambulatoriamente
perseguindo a vida de olhos vidrados, sempre indo ou vindo de lugar algum,
romeiros do nada.
Horácio, não o poeta,
mas o doidinho da rua da minha infância. Como vocês se entendiam! E isso me
assustava.
Horácio, que estranhos
versos lia nos papéis que chutava e que voavam rente ao chão?
Lixo para alguns, eram
talvez a literatura da loucura,
Seu próprio enredo em
branco.
Depois esbravejava
contra postes
gigantes, Quixote sem
Cervantes.
Como vocês se entendiam!
Sempre uma nota na mão, quando se encontravam, que ele recebia sem sorrir, mas
o olhar cúmplice denunciava aquela inusitada amizade, entre o escritor e a
personagem jamais criada. Nota, de resto, inútil, nada que verdadeiramente
interessava a Horácio a ele faltava, água, um prato de comida entregue de qualquer
muro. Sempre aparecia alguém, nem que fosse para chamar o irmão, entregador do
armazém, quando os surtos ventavam violentos do norte, e Horácio sumia por um
tempo.
Um Botafogo mais
amável, mais ameno. Mais humano.
Mais tarde, também
entendi Horácio. Com ele e com o tempo aprendi que a loucura, quando sob
calmaria, é mansa, embora profundamente angustiada. Uma noite, já adolescente,
eu namorava a solidão no escuro da praça, Horácio se aproximou de mim, apontou
para o prédio recém-construído, onde antes havia a casa abandonada dos medos da
minha infância, e mastigando palavras, misturando frases, contou-me de uma
casa, de uma mulher, de uma surra da polícia. E o passado desconhecido daquela
casa demolida revelou-se das brumas da loucura, e o de Horácio ainda mais se
enevoou. Passamos a ser, desde então, três amigos. Estranha amizade. Uma puta,
não sei se amor, loucura ou morte, uma surra, todas fatais, e me ele disse:
Nunca mais.
Esta frase, este verso
que só hoje, mais de quarenta anos depois, ganha sentido. E o perde.
...
Deixo, pai, seu corpo
confinado nessa fatia de chão que sequer é sua, e partirei para outras terras
ao norte. Sei que você não se importará que eu vá ao mundo, pois me ensinou,
lição última, quando se agarrava com ânsia, força e ódio ao fio que a nós o
prendia, que a vida é para ser comida a colheradas. Com prazer, ódio e dor.
Vida, enfim.
Por isso vim.
Olho esse rio do
norte, um vento frio gela e transforma lágrimas em lâminas salgadas, que tento
disfarçar, cortam meu rosto e esta cidade imensa, exagerada, tão diferente de
Duas Pontes! Mesmo assim, você está nela, não me pergunte como, mas está,
vestido de “nunca mais”.
Que forma?
Forma nenhuma, não há
forma possível ante esta curva de rio, rio frio do norte
lhe é estranho.
Porque o traz?
Talvez pela estranheza
talvez pelo silêncio
Porque onde há
silêncio
o vejo, ali você está.
Nunca mais.
Tudo que leva ao
silêncio me leva a você.
Um rio, uma rua, um
quadro. O silêncio melancólico de De Chirico, “A Melancolia da Partida” da “Gare
de Montparnasse, essa despedida...
Silêncio,
melancolia e silêncio
Escrevi, um dia:
"O silêncio é
horrível",
Depois, outros tempos,
outra vida, corrigi:
"O silêncio é
urgente, para melhor alumbrar a beleza
Plena e transcendente
da mulher que amo"
O que é, afinal, o
silêncio?
Só o que restou
de nós.
"The rest is silence"
Tudo que leva ao
silêncio me leva a você. Nele, em e no silêncio, reconstruo a sua imagem, não
por acaso, exatamente da forma como você construía seus romances: num fluxo de
consciência e através de monólogos interiores, e só nos resta, além do
silêncio, o onírico a reconstruir.
Sonhos.
Feitos, desfeitos,
talvez refeitos, um
dia.
Sonhos demais.
Nunca mais.Sai o trem da estação
de Montparnasse, onde sequer estou - ao contrário, é outro país, outro
continente - apenas um quadro de De Chirico, que soa ausente.
Para onde vai?
Vai o trem, volta no
tempo,
volta trem, não há
outro rumo
senão voltar. Ir, para voltar.
Montparnasse Paris,
Belo Horizonte Monte
Santo
Patos pathos Duas
Pontes
Vejo a cidadezinha
onde sua alma habitava,
vejo a Casa da Ponte.
Onde todo menino se iniciava.
Pai, me ensina, é urgente,
como me iniciar nas coisas da morte?
Puta, que goza e nos escarra a face.
Me ensina, pai, é urgente, peço-lhe,
como traçarei este Risco do Bordado?
O trenzinho volta, foi para voltar
apenas você e seu trem, máquina
maldita, só partem, pai. Nunca mais.
Há só silêncio, sua mão – tão fria
tão quente – já não me pode falar
tenho que descobrir, sozinho
o rumo desse trem que não admite atrasos.
...
Dizem que a morte nos causa um imenso vazio.
Mentira. Ao menos assim não sinto. Sua imagem transborda em mim, logo, não há
vazio algum. Talvez as coisas é que se vistam de um vazio infinito, porque
perdem significado. São coisas impossíveis, como é impossível é o mundo
objetivo, que irremediavelmente se esvazia. Coisas demais, coisas fatais.
Nunca mais.
Se é que dirão alguma coisa, talvez tenham ficado atônitas, talvez não, o que é mais provável, pois ganharam vida própria e não conhecem ou não se importam com o destino de deus, de quem as criou, dando-lhes vida. Ficam em estado escuro de livros, em estado de personagens, até que algum leitor as liberte e as reinvente, e assim o reconte, não o pai que eu conheci, mas outro que imaginam, e que me é estranho. Ou não.
Você sabia que o autor, ante a obra, nada importa (e com isso concordo) é apenas “um leitor privilegiado, e não dos melhores”, mas sempre haverá um ou outro leitor, que entre uma página e outra, entre um capítulo e outro, baixará o livro e fará a fatal e indesejada pergunta: quem foi esse homem? E você ressurgirá, múltiplo como sempre foi, onde sempre esteve, em cada pessoa e em a cada persona.
Um leitor, um singelo e indiscreto leitor o reviverá e a seus múltiplos. Melhor assim, este era seu melhor traço, seu ser múltiplo, “trezentos, trezentos e cinquenta”, algumas vezes múltiplo em excesso.
E foi um leitor a
talvez mais emocionante presença que vi em sua missa... sei, não ligaria para
isso, de missa, quase certo que não, se sentiria mesmo incomodado. Mas mesmo
sabendo que não é a melhor hora de confessá-lo, devo dizer-lhe, pai: não foi
para você essa missa, foi para nós, que aqui ficamos com a sua ausência.
Foi um leitor, uma
leitora, mais precisamente.
Não foi a presença de
sua mulher, “nossa mãe”, como você a chamava, ela estava presente, claro, e me
emocionou, assim como penso que a emocionei, lendo para e sobre você; nem a
presença comovida dos meus irmãos (estavam todos lá? não lembro); ou a minha
presença. Estas, cada um carregou consigo os seus motivos, ou não, suas
lembranças, cada um, em devaneio, lembrou de suas histórias, como também seus
amigos, quase todos agora como você, mortos. Estávamos ali para sentir a sua
falta, e nos consolarmos. Mas havia um vínculo quase carnal entre nós, mesmo
entre você e seus amigos mortos.
E sua leitora, o que a
trazia? Talvez nem fosse das mais profundas, e daí? O que fazia ali? O que
buscava? Não sei, ninguém a conhecia, ela saberia? Sei que depois falou comigo:
“sou apenas uma leitora, amo os livros do seu pai”. Olhei-a, o que fazia ali? E
a abracei, como uma velha amiga.
Depois da missa, deve
ter voltado para casa, aberto um livro para conversar com você, imaginá-lo,
lembrar, no caso, do não acontecido, exatamente como também o fazemos.
A única diferença é
que ela o terá mais presente do que nós, sempre ao alcance da mão.
A única diferença é
que, para ela, a frase terrível não soará jamais.
Nunca mais.
As imagens vão e vem,
vinham, agora vão apenas, nos desvãos desta tarde de primavera que se recusa a
acabar. Sua mão já não segura a minha, e não mais a acaricio, estão fixas,
frias, sobre a barriga, entre flores, patética primavera.
Assim acabam as
manhãs, assim acabam as tardes e as noites. As estações. Assim acaba a vida,
simples e dificilmente.
Pode ir, meu pai, é
chegada a hora.
Rompeu-se o fio
não o prenderei mais
com minha esperança
Rompe-se também este
fio que ainda nos unia, este fio inútil, pois nada mais prendia, prende ou
prenderá.
Não há mar possível
nesta sala amorfa e mal cheirosa, mas o vejo caminhando na direção do
horizonte. Tento, mas não consigo evitar o lugar comum, já que de mar falávamos.
Sorrio, ainda me resta alguma quase autocrítica, e você quase sorri também.
Sorrio também porque
um dia segui um conselho de um amigo, e tenho certeza de que tudo foi dito
entre nós. Nada, nada ficou para falar, por isso choro. Mas sorrio.
Rompeu-se o fio
não o prenderei mais
com minha esperança
nossas mãos se
despedem
vai na direção do mar,
lentamente.
Nunca mais...
É chegada a hora, sei
que não me é dado mais retê-lo.
Apenas aceno. Nada
digo:
Adeus pai,
Adeus amigo.
Caro. Rememoração bela e forte como deve ser uma carta ao pai. Na tradição judaica qdo lembramos alguém q partiu complementamos “ q sua alma permaneça atada ao feixe dos viventes” . É o q vc se faz lao recordá-lo para todos nós . Grande abraço
ResponderExcluirObrigado, li, sim, como pode ver, seu comentário, abraço
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