terça-feira, 30 de maio de 2017

LAGO REVISITADO (Um estranho poema de amor)

              Fazenda Santa Bárbara, fevereiro de 2017
              
                                         Para Elizabeth e Gabriel


I


Pouco mais que paisagens, somos

tantos mares que nos acovardaram.

Entre as margens da pedra poente,

a dor da miragem perdida no peito.

E esse lago, somos quase acidente.



Urgente calar todas as paisagens,

esquecer o que um dia me fizeram

e cegar as miragens que secretam,

essas imagens do que fui refletidas

na densidade das horas. E do lago.



Não falo do passado, que não existe,

o destecemos num diuturno devaneio

de reflexos imaginados, mas persiste

no borrão da vergonha, no que fomos

e ocultamos entre realidade e desejo.



Na fantasia recomposta no bordado

dos mitos particulares, não vemos

o remendo daquele ponto impreciso

onde a tessitura do real rompeu-se,

mentirosa costura de nós mesmos.



Trilhamos escombros que restaram,

ruínas destroçadas de tantos rumos,

derrotas decompostas em húmus,

o que fomos, trilhas úmidas de lama

pisando as sombras do futuro perdido.



Era esse o lago! Preciso olhar-me ali

no lago onde era proibido banhar-me.

Aprendiz do “não” marcado na carne,

e desde então tudo me foi vedado:

“Não. É proibido mergulhar no lago”



Vejo seu fundo formado por algas

sulfurosas como o fundo do inferno,

algas que abraçam meus pecados.

Ainda os ouço, padres e demônios:

“Não. Um menino morreu neste lago,’



‘Por isso esse anjo, eterno ancorado

em seu centro, apontando os rumos.

Vela, velará por suas almas”, diziam,

“ou anjos caídos ressurgirão da lama,

não no centro do lago, mas da noite”.



Ah, malditas madrugadas de pânico,

culpa cultivada; quero e não posso,

e não devo ainda mergulhar no lago,

fundo formado por algas e pântano,

num lento e lúgubre balé de culpas.



Aqueles medos que se prenderam

a meus pés para sempre, e hoje

me enredam e prendem ao fundo

da imobilidade, ao mesmo medo

que tenho do mergulho no mundo



Agora, porém, saberei projetar-me

na água turva de reflexos fugazes

e fugidios do que encontrei aqui:

paisagem das vozes e cicatrizes

da geografia esquecida de mim.



Olho no fundo do barro do tempo

minhas imagens várias refletidas,

é preciso precipitar-me no opaco

deste lago para ver-me um pouco,

corrigir as distorções difusas da luz



Remota de um anjo que jamais soube

ver como redenção, me protegendo

com zelo dos pecados que não tinha,

e por isso inventei alguns vida afora,

os que ainda posso reinvento agora



Reinvento diuturnamente esta vida

que não queriam para mim, talvez

nem mesmo eu a quisesse assim:

essa comédia sempre silenciosa

da minha solidão sem saudades.



Anjos, arcanjos, não me perdoarão

ou mesmo essa legião de demônios,

nenhum jamais vi como redenção,

todos eram mais tragédia que luz:

um menino meio às algas do lago.



Não era para isso a lavoura divina,

ó anjo diuturno que me extermina?



II



Era eu o menino ao lado do anjo,

no destino da imobilidade, papel

secundário de uma pureza interdita,

preso na lama afogado em algas

uma alma precocemente perdida.



Delicado, me retiraria das águas

no colo materno de anjo levaria

meu corpo pelos ares ao colo

de minha mãe, que num gesto

mudo e terno choraria mágoas



Do nosso amor amorto (palavra

que eu recriaria no nada amorfo

e incréu onde eu viveria), seu leite

amamentando a memória de mãe.

Meus dentes cravados nos seios



Secretam a mistura de sangue e leite

da Pietá de minha fome mais secreta



III



E se ainda não tenho a coragem

do lago, venha a vertigem, veredas,

rumos úmidos do húmus de mim.

Posso pisar os ossos do passado

posto a nu numa nuvem de folhas.



Tento não tropeçar nos escombros

da memória no medo das sombras

das ruínas desprendidas, labirintos

onde repousavam os ritos do Mal.

Os ritos ocultos do corpo libertino



E descoberto: O pelo nas mãos!

Denunciava as minhas oferendas,

ritos no altar de Onã: a serpente

a personificação do mal, mulher

a única encarnação da serpente



Despida na escamação das cobras

com suas cores mutantes e formas

inconclusas, as vulvas devoradoras

de falos, vulcões, quem nos salvaria?

Sacrifício, sacramentos. A luz do dia?



Encoberto por Hélio, um deus pagão,

Eros me beatificara em sonhos e sol.

Silêncio sol, zela pelo silêncio do anjo.

Não revela os segredos fesceninos

da cumplicidade insone de meninos.



Pois o dia sempre virá, trazendo a lua

nua entre as algas, agora calmas de luz.



IV



Já não me protejo de quem fui

e me projeto no lago, nada mais

me serve o anjo senão a certeza

de que ele nunca teve asas reais,

mas braços estáticos que acenam



Adeus. As algas puxam para o fundo

e para além de mim, me envolvem

enfim no que fui, sou e serei: o fundo

do lago. Me debato nas correntezas

do tempo, nos valões do redemunho,



Tudo que fui morrerá comigo, lago

tornado rio e feroz cabeça d’água

arrastando meu corpo com as almas

turbilhão de pecados, preces, algas,

palavras e tantos poemas perdidos



Estou órfão de mim, do colo materno,

por isso o anjo não sabe o que fazer

do meu corpo e esta alma perdida.

Estou órfão, um homem sem infância

arrastado ao fundo de águas infames



Por isso, o anjo não sabe quem velará

pelo meu corpo sem colo e sem Deus,

sem esperança de um passado, adeus

de um homem irremediavelmente só

vendo seu corpo de menino no fundo



Da solidão desse território de mortos,

dos que não cremos, solidão da poesia,

do verso escrito num tempo de surdos,

este tempo dos lagos sujos e turvos,

e minha palavra impossível e inaudita.



V



Como nadar no terror destes dias

que tecem o meu tempo presente,

que me priva da palavra possível

e pressente entre algas uma fábula

sem memória que me arrasta vivo



Para além dos mortos? Desaprendi

a nadar na infância no lago, a alma

que insistiam em me dar revoltou-se

tornou-se espírito, por isso esse anjo,

demônio cego, não desistiu de mim.



Ronda à minha volta, se parte de dia,

de noite volta assombrando o poema,

em cada dobra de sangue do poente.

E assim, anjo ou homem, ele morrerá,

morto para sempre em mim, a morte



Oculta e eterna e diariamente repetida,

minha morte no fundo do lago refletida.



VI



Já não me protejo, me projeto no lago,

não mais temo esse anjo pela certeza:

ele nunca teve asas reais, mas braços

estáticos que acenam adeus. As algas

puxam para o fundo, para além de mim,



Debato-me nos redemunhos, valões

do tempo me envolvem, mas recuso

meu destino de ser eu o lodo de mim,

não serei o fundo do lago, ou tudo

que serei morrerá comigo. Súbito,



Lembro num dia de inverno, no longe

entre as montanhas que ainda hoje

tatuam a floração diária das manhãs,

o recompus transitivo, verso a verso,

o verbo que os homens desconjugaram.



Numa construção lírica, eu vi brotar,

palavra por palavra, uma rima tardia

para o verbo amar. E vi surgir do vale

do seu ventre outro verbo que venceria

muito mais que este lodo imaginário



Era um mar real e amniótico. Úmido

ainda de sal e placenta e sangue

eu o vi emergir, o enigma da vida,

me ensinando a nadar com fúria,

na afetuosa cólera de sermos mar.



Cansados (ele não), nos deitamos,

sol possível na tormenta humana,

nas margens que ninguém profana,

as margens de nós três, rio e porto

mar alto e continente num só corpo



Tiramos com calma algas e a lama

dos corpos mútuos, uma a uma,

gesto mudo de paciência e precisão

de quem vê tecer sua teia e ignora

a cruel máquina do tear das horas



Aproximando-me da borda da morte.

Mas tudo é vida em volta, úmidos

de nós, descansamos nas margens

desse lago ora reduzido à memória,

e acalentamos os corpos afluentes



Nos braços da simplicidade meridiana,

na solar delicadeza da vida cotidiana







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