Fazenda Santa Bárbara, fevereiro de 2017
Para Elizabeth e Gabriel
I
Pouco mais que paisagens, somos
tantos mares que nos acovardaram.
Entre as margens da pedra poente,
a dor da miragem perdida no peito.
E esse lago, somos quase acidente.
Urgente calar todas as paisagens,
esquecer o que um dia me fizeram
e cegar as miragens que secretam,
essas imagens do que fui refletidas
na densidade das horas. E do lago.
Não falo do passado, que não existe,
o destecemos num diuturno devaneio
de reflexos imaginados, mas persiste
no borrão da vergonha, no que fomos
e ocultamos entre realidade e desejo.
Na fantasia recomposta no bordado
dos mitos particulares, não vemos
o remendo daquele ponto impreciso
onde a tessitura do real rompeu-se,
mentirosa costura de nós mesmos.
Trilhamos escombros que restaram,
ruínas destroçadas de tantos rumos,
derrotas decompostas em húmus,
o que fomos, trilhas úmidas de lama
pisando as sombras do futuro perdido.
Era esse o lago! Preciso olhar-me ali
no lago onde era proibido banhar-me.
Aprendiz do “não” marcado na carne,
e desde então tudo me foi vedado:
“Não. É proibido mergulhar no lago”
Vejo seu fundo formado por algas
sulfurosas como o fundo do inferno,
algas que abraçam meus pecados.
Ainda os ouço, padres e demônios:
“Não. Um menino morreu neste lago,’
‘Por isso esse anjo, eterno ancorado
em seu centro, apontando os rumos.
Vela, velará por suas almas”, diziam,
“ou anjos caídos ressurgirão da lama,
não no centro do lago, mas da noite”.
Ah, malditas madrugadas de pânico,
culpa cultivada; quero e não posso,
e não devo ainda mergulhar no lago,
fundo formado por algas e pântano,
num lento e lúgubre balé de culpas.
Aqueles medos que se prenderam
a meus pés para sempre, e hoje
me enredam e prendem ao fundo
da imobilidade, ao mesmo medo
que tenho do mergulho no mundo
Agora, porém, saberei projetar-me
na água turva de reflexos fugazes
e fugidios do que encontrei aqui:
paisagem das vozes e cicatrizes
da geografia esquecida de mim.
Olho no fundo do barro do tempo
minhas imagens várias refletidas,
é preciso precipitar-me no opaco
deste lago para ver-me um pouco,
corrigir as distorções difusas da luz
Remota de um anjo que jamais soube
ver como redenção, me protegendo
com zelo dos pecados que não tinha,
e por isso inventei alguns vida afora,
os que ainda posso reinvento agora
Reinvento diuturnamente esta vida
que não queriam para mim, talvez
nem mesmo eu a quisesse assim:
essa comédia sempre silenciosa
da minha solidão sem saudades.
Anjos, arcanjos, não me perdoarão
ou mesmo essa legião de demônios,
nenhum jamais vi como redenção,
todos eram mais tragédia que luz:
um menino meio às algas do lago.
Não era para isso a lavoura divina,
ó anjo diuturno que me extermina?
II
Era eu o menino ao lado do anjo,
no destino da imobilidade, papel
secundário de uma pureza interdita,
preso na lama afogado em algas
uma alma precocemente perdida.
Delicado, me retiraria das águas
no colo materno de anjo levaria
meu corpo pelos ares ao colo
de minha mãe, que num gesto
mudo e terno choraria mágoas
Do nosso amor amorto (palavra
que eu recriaria no nada amorfo
e incréu onde eu viveria), seu leite
amamentando a memória de mãe.
Meus dentes cravados nos seios
Secretam a mistura de sangue e leite
da Pietá de minha fome mais secreta
III
E se ainda não tenho a coragem
do lago, venha a vertigem, veredas,
rumos úmidos do húmus de mim.
Posso pisar os ossos do passado
posto a nu numa nuvem de folhas.
Tento não tropeçar nos escombros
da memória no medo das sombras
das ruínas desprendidas, labirintos
onde repousavam os ritos do Mal.
Os ritos ocultos do corpo libertino
E descoberto: O pelo nas mãos!
Denunciava as minhas oferendas,
ritos no altar de Onã: a serpente
a personificação do mal, mulher
a única encarnação da serpente
Despida na escamação das cobras
com suas cores mutantes e formas
inconclusas, as vulvas devoradoras
de falos, vulcões, quem nos salvaria?
Sacrifício, sacramentos. A luz do dia?
Encoberto por Hélio, um deus pagão,
Eros me beatificara em sonhos e sol.
Silêncio sol, zela pelo silêncio do anjo.
Não revela os segredos fesceninos
da cumplicidade insone de meninos.
Pois o dia sempre virá, trazendo a lua
nua entre as algas, agora calmas de luz.
IV
Já não me protejo de quem fui
e me projeto no lago, nada mais
me serve o anjo senão a certeza
de que ele nunca teve asas reais,
mas braços estáticos que acenam
Adeus. As algas puxam para o fundo
e para além de mim, me envolvem
enfim no que fui, sou e serei: o fundo
do lago. Me debato nas correntezas
do tempo, nos valões do redemunho,
Tudo que fui morrerá comigo, lago
tornado rio e feroz cabeça d’água
arrastando meu corpo com as almas
turbilhão de pecados, preces, algas,
palavras e tantos poemas perdidos
Estou órfão de mim, do colo materno,
por isso o anjo não sabe o que fazer
do meu corpo e esta alma perdida.
Estou órfão, um homem sem infância
arrastado ao fundo de águas infames
Por isso, o anjo não sabe quem velará
pelo meu corpo sem colo e sem Deus,
sem esperança de um passado, adeus
de um homem irremediavelmente só
vendo seu corpo de menino no fundo
Da solidão desse território de mortos,
dos que não cremos, solidão da poesia,
do verso escrito num tempo de surdos,
este tempo dos lagos sujos e turvos,
e minha palavra impossível e inaudita.
V
Como nadar no terror destes dias
que tecem o meu tempo presente,
que me priva da palavra possível
e pressente entre algas uma fábula
sem memória que me arrasta vivo
Para além dos mortos? Desaprendi
a nadar na infância no lago, a alma
que insistiam em me dar revoltou-se
tornou-se espírito, por isso esse anjo,
demônio cego, não desistiu de mim.
Ronda à minha volta, se parte de dia,
de noite volta assombrando o poema,
em cada dobra de sangue do poente.
E assim, anjo ou homem, ele morrerá,
morto para sempre em mim, a morte
Oculta e eterna e diariamente repetida,
minha morte no fundo do lago refletida.
VI
Já não me protejo, me projeto no lago,
não mais temo esse anjo pela certeza:
ele nunca teve asas reais, mas braços
estáticos que acenam adeus. As algas
puxam para o fundo, para além de mim,
Debato-me nos redemunhos, valões
do tempo me envolvem, mas recuso
meu destino de ser eu o lodo de mim,
não serei o fundo do lago, ou tudo
que serei morrerá comigo. Súbito,
Lembro num dia de inverno, no longe
entre as montanhas que ainda hoje
tatuam a floração diária das manhãs,
o recompus transitivo, verso a verso,
o verbo que os homens desconjugaram.
Numa construção lírica, eu vi brotar,
palavra por palavra, uma rima tardia
para o verbo amar. E vi surgir do vale
do seu ventre outro verbo que venceria
muito mais que este lodo imaginário
Era um mar real e amniótico. Úmido
ainda de sal e placenta e sangue
eu o vi emergir, o enigma da vida,
me ensinando a nadar com fúria,
na afetuosa cólera de sermos mar.
Cansados (ele não), nos deitamos,
sol possível na tormenta humana,
nas margens que ninguém profana,
as margens de nós três, rio e porto
mar alto e continente num só corpo
Tiramos com calma algas e a lama
dos corpos mútuos, uma a uma,
gesto mudo de paciência e precisão
de quem vê tecer sua teia e ignora
a cruel máquina do tear das horas
Aproximando-me da borda da morte.
Mas tudo é vida em volta, úmidos
de nós, descansamos nas margens
desse lago ora reduzido à memória,
e acalentamos os corpos afluentes
Nos braços da simplicidade meridiana,
na solar delicadeza da vida cotidiana
Para Elizabeth e Gabriel
I
Pouco mais que paisagens, somos
tantos mares que nos acovardaram.
Entre as margens da pedra poente,
a dor da miragem perdida no peito.
E esse lago, somos quase acidente.
Urgente calar todas as paisagens,
esquecer o que um dia me fizeram
e cegar as miragens que secretam,
essas imagens do que fui refletidas
na densidade das horas. E do lago.
Não falo do passado, que não existe,
o destecemos num diuturno devaneio
de reflexos imaginados, mas persiste
no borrão da vergonha, no que fomos
e ocultamos entre realidade e desejo.
Na fantasia recomposta no bordado
dos mitos particulares, não vemos
o remendo daquele ponto impreciso
onde a tessitura do real rompeu-se,
mentirosa costura de nós mesmos.
Trilhamos escombros que restaram,
ruínas destroçadas de tantos rumos,
derrotas decompostas em húmus,
o que fomos, trilhas úmidas de lama
pisando as sombras do futuro perdido.
Era esse o lago! Preciso olhar-me ali
no lago onde era proibido banhar-me.
Aprendiz do “não” marcado na carne,
e desde então tudo me foi vedado:
“Não. É proibido mergulhar no lago”
Vejo seu fundo formado por algas
sulfurosas como o fundo do inferno,
algas que abraçam meus pecados.
Ainda os ouço, padres e demônios:
“Não. Um menino morreu neste lago,’
‘Por isso esse anjo, eterno ancorado
em seu centro, apontando os rumos.
Vela, velará por suas almas”, diziam,
“ou anjos caídos ressurgirão da lama,
não no centro do lago, mas da noite”.
Ah, malditas madrugadas de pânico,
culpa cultivada; quero e não posso,
e não devo ainda mergulhar no lago,
fundo formado por algas e pântano,
num lento e lúgubre balé de culpas.
Aqueles medos que se prenderam
a meus pés para sempre, e hoje
me enredam e prendem ao fundo
da imobilidade, ao mesmo medo
que tenho do mergulho no mundo
Agora, porém, saberei projetar-me
na água turva de reflexos fugazes
e fugidios do que encontrei aqui:
paisagem das vozes e cicatrizes
da geografia esquecida de mim.
Olho no fundo do barro do tempo
minhas imagens várias refletidas,
é preciso precipitar-me no opaco
deste lago para ver-me um pouco,
corrigir as distorções difusas da luz
Remota de um anjo que jamais soube
ver como redenção, me protegendo
com zelo dos pecados que não tinha,
e por isso inventei alguns vida afora,
os que ainda posso reinvento agora
Reinvento diuturnamente esta vida
que não queriam para mim, talvez
nem mesmo eu a quisesse assim:
essa comédia sempre silenciosa
da minha solidão sem saudades.
Anjos, arcanjos, não me perdoarão
ou mesmo essa legião de demônios,
nenhum jamais vi como redenção,
todos eram mais tragédia que luz:
um menino meio às algas do lago.
Não era para isso a lavoura divina,
ó anjo diuturno que me extermina?
II
Era eu o menino ao lado do anjo,
no destino da imobilidade, papel
secundário de uma pureza interdita,
preso na lama afogado em algas
uma alma precocemente perdida.
Delicado, me retiraria das águas
no colo materno de anjo levaria
meu corpo pelos ares ao colo
de minha mãe, que num gesto
mudo e terno choraria mágoas
Do nosso amor amorto (palavra
que eu recriaria no nada amorfo
e incréu onde eu viveria), seu leite
amamentando a memória de mãe.
Meus dentes cravados nos seios
Secretam a mistura de sangue e leite
da Pietá de minha fome mais secreta
III
E se ainda não tenho a coragem
do lago, venha a vertigem, veredas,
rumos úmidos do húmus de mim.
Posso pisar os ossos do passado
posto a nu numa nuvem de folhas.
Tento não tropeçar nos escombros
da memória no medo das sombras
das ruínas desprendidas, labirintos
onde repousavam os ritos do Mal.
Os ritos ocultos do corpo libertino
E descoberto: O pelo nas mãos!
Denunciava as minhas oferendas,
ritos no altar de Onã: a serpente
a personificação do mal, mulher
a única encarnação da serpente
Despida na escamação das cobras
com suas cores mutantes e formas
inconclusas, as vulvas devoradoras
de falos, vulcões, quem nos salvaria?
Sacrifício, sacramentos. A luz do dia?
Encoberto por Hélio, um deus pagão,
Eros me beatificara em sonhos e sol.
Silêncio sol, zela pelo silêncio do anjo.
Não revela os segredos fesceninos
da cumplicidade insone de meninos.
Pois o dia sempre virá, trazendo a lua
nua entre as algas, agora calmas de luz.
IV
Já não me protejo de quem fui
e me projeto no lago, nada mais
me serve o anjo senão a certeza
de que ele nunca teve asas reais,
mas braços estáticos que acenam
Adeus. As algas puxam para o fundo
e para além de mim, me envolvem
enfim no que fui, sou e serei: o fundo
do lago. Me debato nas correntezas
do tempo, nos valões do redemunho,
Tudo que fui morrerá comigo, lago
tornado rio e feroz cabeça d’água
arrastando meu corpo com as almas
turbilhão de pecados, preces, algas,
palavras e tantos poemas perdidos
Estou órfão de mim, do colo materno,
por isso o anjo não sabe o que fazer
do meu corpo e esta alma perdida.
Estou órfão, um homem sem infância
arrastado ao fundo de águas infames
Por isso, o anjo não sabe quem velará
pelo meu corpo sem colo e sem Deus,
sem esperança de um passado, adeus
de um homem irremediavelmente só
vendo seu corpo de menino no fundo
Da solidão desse território de mortos,
dos que não cremos, solidão da poesia,
do verso escrito num tempo de surdos,
este tempo dos lagos sujos e turvos,
e minha palavra impossível e inaudita.
V
Como nadar no terror destes dias
que tecem o meu tempo presente,
que me priva da palavra possível
e pressente entre algas uma fábula
sem memória que me arrasta vivo
Para além dos mortos? Desaprendi
a nadar na infância no lago, a alma
que insistiam em me dar revoltou-se
tornou-se espírito, por isso esse anjo,
demônio cego, não desistiu de mim.
Ronda à minha volta, se parte de dia,
de noite volta assombrando o poema,
em cada dobra de sangue do poente.
E assim, anjo ou homem, ele morrerá,
morto para sempre em mim, a morte
Oculta e eterna e diariamente repetida,
minha morte no fundo do lago refletida.
VI
Já não me protejo, me projeto no lago,
não mais temo esse anjo pela certeza:
ele nunca teve asas reais, mas braços
estáticos que acenam adeus. As algas
puxam para o fundo, para além de mim,
Debato-me nos redemunhos, valões
do tempo me envolvem, mas recuso
meu destino de ser eu o lodo de mim,
não serei o fundo do lago, ou tudo
que serei morrerá comigo. Súbito,
Lembro num dia de inverno, no longe
entre as montanhas que ainda hoje
tatuam a floração diária das manhãs,
o recompus transitivo, verso a verso,
o verbo que os homens desconjugaram.
Numa construção lírica, eu vi brotar,
palavra por palavra, uma rima tardia
para o verbo amar. E vi surgir do vale
do seu ventre outro verbo que venceria
muito mais que este lodo imaginário
Era um mar real e amniótico. Úmido
ainda de sal e placenta e sangue
eu o vi emergir, o enigma da vida,
me ensinando a nadar com fúria,
na afetuosa cólera de sermos mar.
Cansados (ele não), nos deitamos,
sol possível na tormenta humana,
nas margens que ninguém profana,
as margens de nós três, rio e porto
mar alto e continente num só corpo
Tiramos com calma algas e a lama
dos corpos mútuos, uma a uma,
gesto mudo de paciência e precisão
de quem vê tecer sua teia e ignora
a cruel máquina do tear das horas
Aproximando-me da borda da morte.
Mas tudo é vida em volta, úmidos
de nós, descansamos nas margens
desse lago ora reduzido à memória,
e acalentamos os corpos afluentes
Nos braços da simplicidade meridiana,
na solar delicadeza da vida cotidiana
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