I – COR DO TEMPO
A distorção difusa da luz no caos
do tempo, não sangra em sépia
apenas essas velhas fotografias
que teimam equilibrar-se na cal
da memória, inventa o passado,
falsos fatos em fuga resgatam
tantas antigas estátuas de sal,
tentando escapar de Sodoma.
Estes são os meus escombros:
mas de tudo que sonhei, velado
por um tempo tornado sombra,
na tênue aquarela deste ocaso:
porém meu sangue ainda tinge
as horas, hemorragia da esfinge
que sou e jamais me abandonará.
Apenas o oculto em cores diluídas
em cínicos suaves tons cotidianos.
II
AS CHAVES
Guardo no bolso do imaginado
a que foi minha primeira chave.
Só depois eu vi que nada abria
(aliás, sequer uma porta havia).
Desde aquela, tantas eu tive
quase todas as tenho perdido,
e mais de uma eu vi escorrer
em algum bueiro do passado.
Mudei-me de rua, casa, cidade,
mas as antigas chaves ficavam,
sempre esquecido de tirá-las
preguiçoso ante tantas portas.
Gritavam no bolso a inutilidade,
mas as guardava na esperança
quase silenciosa de outra tranca.
Hoje descubro: todas são inúteis,
nunca houve chaves, nem portas,
ainda assim guardo o gosto do aço
para me lembrar o peso de trazer
todo metal do tempo nos braços
III
ESPASMO
Danço ainda um penúltimo minueto
antes daquele com a terrível tísica.
Ela sabe que me vencerá. Sua voz
de soprano cantará a derradeira ária
da ópera inacabada. Olhos vidrados
as pernas e as mãos postas ao vento,
A pele nua e a carne opaca no último
“pas de deux” entre gestos violentos.
Breve, serei apenas o gosto de sangue
de outro espasmo da hemoptise do tempo
IV
UM MENINO ACORDA
Um menino dorme sob meu olhar mudo,
ao seu lado um vulto espreita, o mundo?
Talvez seja só minha vida, hoje estreita.
Dorme, filho, que estou muito cansado
e teu sono guarda uns poucos sonhos,
esses raros sonhos que ainda restam
rarefeitos nas madrugadas em claro.
Não acorde ainda, menino, não agora,
as suas pernas guardam velozes a vida,
porém não tão cedo, é que não lhe convém
a imagem imprópria de um pai que chora.
Mas sua vida, inquieta, chama e me ignora.
Está bem, vai, acorda e calce as chuteiras,
que meus olhos têm urgência de seu corpo,
pois sei que somente em um círculo perfeito
De seus pés desenhando velozes a poesia
de uma bola, esta a rima que resta dos dias
o penúltimo sonho que me colore as horas.
V
QUINTA DANÇA
1
Seriam seis, sei, seis seriam as danças
ainda me faltam duas, as mais difíceis:
porém como dançar sob este constante
cortante silêncio?
2
Poderiam ser seis, sete, dez milhões de danças
tantas que minha perna retesaria em câimbras
os músculos tensos, cordas da viola da gamba
de um coração que sangra retalhado em postas.
Mas é melhor parar de dançar em ritmos imaginários,
diz a voz que aprendi a ouvir, isso é desafiar o tempo,
cedo te ensinei inútil afrontar deuses em movimento,
ou se tornarão a tormenta de seu inevitável naufrágio.
VI
A SERPENTE
“Left to herself, the serpent now began
To change; her elfin blood in madness ran,
Her mouth foam’d, and the grass, therewith besprent,
Wither’d at dew so sweet and virulent”
John Keats – Lamia
Abandonada nas agruras de sua metamorfose,
o sangue de duende da serpente escorre da loucura,
sua boca espuma sobre a grama, espalha-se ao vento
murcha o verde, um orvalho tão doce quanto virulento
John Keats –Lâmia
1
Quando o tempo não nascera em mim
e eu ainda não acreditava nas tardes,
imaginava algumas idades improváveis
(eu as achava impossíveis, na verdade)
Hoje, por exemplo, me descubro por acaso
na tarde obscena de um espelho covarde
que se despede e me despe sem alarde.
Eu, nu e só, ante a luz difusa deste ocaso,
existiria ainda alguma manhã possível?
Nesta hora do dia, de Lâmia, a serpente
mítica de Keats, restou apenas a víbora,
pois a mulher que a habitava, de repente
caiu morta. Todos os mitos estão mortos,
não há mito possível depois do meio dia,
há muito já sepultamos as antigas utopias,
sem esperanças recolhemos seus corpos.
2
Depois do meio-dia, só as manhãs existem
porque as noites são longas e os dias infinitos.
Contamos os passos do demo na madrugada
que se o sono é pouco, muitas são suas patas
Só restou do tempo esta pequena ampulheta
envolvida pelo amor de uma serpente medonha,
que no lugar da areia escorre apenas peçonha
(e corre veloz, rarefeita areia, rarefeito tempo).
O céu escurece dos espectros dos que amei
e hoje estão numa tarde inexistente, quisera
crer e talvez saber rezar, mas a esta hora
nesta tarde sem memória, a morte é apenas
uma realidade que insiste em ser em mim.
Mas a visão mais trágica que aflora da tarde
é descobrir por baixo da nudez da serpente
descarnada: sou eu que me dispo no poente
desencarnado de qualquer esperança banal,
sem deus ou mito que me resgate da noite
em mim é que habita inteiro meu próprio mal,
Lâmia sou eu, no fumo desta tarde em chamas
Que se dissipa cruel na velocidade do tempo,
na imagem sépia da solidão de quem não crê,
a mesma solidão desesperada dos que tateiam
nos livros o lampejo disso que chamam Homem
O que nos faz cada vez mais sós sob a tarde,
cada vez mais longe dos homens cotidianos.
Muito depois descobrimos: não buscávamos
o Homem, mas nossa solidão nas montanhas
Foi então que vi aflorar do ventre da serpente
sons do riso de escárnio dos que me odiaram,
apenas eles já não gargalham no eco do tempo,
só um silêncio negro lhes escorre entre dentes.
Foram eles que moldaram este barro que sou,
seco, a carcaça quebradiça e falsamente frágil
da cerâmica que eu vesti no meio daquela tarde.
Do barro do ódio que o oleiro moldou a moringa
que matou minha sede nos desertos dos desprezos
e no desespero dos exílios, antes de me habituar
à solidão cultivada dos que caminham em silêncio.
Todos moldaram o barro onde desenho palavras
Pois do barro ao pó serei, e do pó ao nada, nada
mais que o retorno ao silêncio que me antecedeu
(a única esperança é que serei o húmus da terra,
a ceia que um dia servirei a um pasto de vermes).
3
(PERMANÊNCIA)
Poucos me ouvem na luz desta tarde que maravilha,
são os que hoje me tocam e forjam em minha pele
outra forma de mim, moldada de carne e tempo
me tingem de esperança de outros ventos e ilhas
Na aquarela luminosa da tarde dissolvida nas cores
de horizontes ocasionais, o beijo da minha carne
me protege do ocaso, e canta um coro de tenores
das vésperas da liturgia sagrada de ser-me três.
Por nós ainda sopra em mim outro canto vespertino,
por um menino voltaram no eco os sinos das manhãs,
pois com a sua mãe firmei, naquele selo de sangue,
um pacto com a esperança de outro rumo e destino.
Por ele saberei colher os frutos de outras manhãs
e de algum poema sem poentes, e lhe prometo, filho:
Por você eu ainda fico.
Obrigado por compartilhar sua poesia. Esse mundo anda tão mal que a poesia ameniza um pouco nossas dores e nossas revoltas...
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