quarta-feira, 30 de agosto de 2017

O AUTOR, A OBRA, O POLITICAMENTE CORRETO E CERTA INSUPORTÁVEL SENSIBLIDADE (OU COMO SER REACIONÁRIO SEM O SABER)


        “Poesia não se faz com ideias, mas com palavras!
         Mallarmé a Degas (segundo Valéry)


   Tem sido recorrente este despretensioso poeta afirmar que o autor, ante sua obra, não tem importância, ou ao menos, só tem importância para os estudiosos, não para o leitor comum. Porém, mesmo esses leitores não deveriam pautar seu interesse por um ou outro autor pela sua ideologia, gênero, para usar a palavra da moda, ou o diabo que for, mas visar à obra, mesmo que estudando seu autor, subsidiariamente, porque a obra é muito maior do que ele, pois mesquinho seu cotidiano, e é com a obra que ele, eventualmente, engrandece.

   Volto ao tema, que já provocou conversas interessantes, e mesmo alguma irritação, mas estas ficaram na várzea das horas, entretanto, o faço destacando questões mais afeitas ao nosso tempo, por vezes tão enfadonho, mais urgentes, talvez.

   No mínimo, são dois os motivos que me fazem voltar ao tema, que já deveria estar há muito superado, mas que readquiriu força, agora com outro enfoque, porque são motivos que, digamos assim, “atualizam” a conversa, saindo esfera retórica (quase disse acadêmica).

   O primeiro deles, e talvez primeiro justo pela urgência, cuida da mediocrização de nosso tempo. Mas o que teria uma coisa com a outra?

   Vejo, assustado, um olhar sobre a literatura e a obra de arte em geral, ao menos por aqueles mais sujeitos a modismos e ideias de ocasião, ou a falta delas, que não mais se confunde com a visão eminentemente sociológica ou psicológica que pontuou a última metade do século passado, o que seria um pouco menos trágico, seus óculos são estritamente (ou estreitamente) políticos, ou melhor, ideológicos, o que o torna ainda mais empobrecedor.

   O que se quer do autor, hoje? Que seja ideologicamente afinado com os dogmas, sejam os da academia, os de um partido, ou de um (pré)conceito, que seja exatamente aquilo que dele, bem comportado, se espera: uma inteligência (vá lá) a serviço de uma “boa causa”, de preferência igualitária, e falsamente libertadora (que ao fim é apenas limitadora, logo, reacionária, como veremos) o que se quer do autor é, mais do que seu texto, seu discurso.
   
   Em poucas palavras: o que se quer do autor é que ele concorde conosco.

   Não conheço maior negação do que seja a arte do que tais exigências (esta a palavra). Arte não é concordância, mas seu contrário, é discordância, é radical dissonância; arte, qualquer uma, é experimento, é conduta libertária, é linguagem individual e única. Original, ora.
   
   Quando eu era adolescente, e tristemente faz muito tempo, embora naquela época, claro, pela pouca idade, isso fosse apenas intuitivo, eu insistia, em homéricas discussões com meus amigos (estávamos em plena ditadura militar, quando era difícil viver, mas fácil, ou melhor, simples, ou, melhor ainda, simplório pensar, pois se pensava em preto e branco, maniqueisticamente, o bem (nós) contra o mal (eles) e isso sem dúvida era mais confortável do que pensar em cinza, na esfera da nuance), eu insistia que muito mais “revolucionária” do que uma arte dita “engajada” (era assim que se chamava o politicamente correto naqueles idos) era a arte que incomodasse, que invadisse os confortáveis pensamentos do leitor, e o desarmasse.

   Claro que evolui, ao menos imagino que sim, era inevitável, o que involuiu foi a conversa.

   Exemplificando, para melhor entendimento: creio que Goya, Artaud e Nelson Rodrigues - para tomarmos como exemplo um brasileiro e “reacionário” político, mas que esfrega deliciosamente o hímem complacente da falsa moral burguesa de seu tempo em seu próprio rosto, escandalizando-a - do ponto de vista visceral; e Velazques, pela ironia racional, fizeram mais por uma real transformação do ser humano do que a toda arte dita engajada, ou, atualizando, “politicamente correta”, como, por exemplo, o talvez mais enfadonho romance jamais escrito: “A Mãe”, de Gorki, embora fosse, como hoje, “bem intencionado”, ou mais genericamente, para não ferir suscetibilidades, todo o “realismo socialista”, esse monumental atraso da anteriormente excepcional arte russa.

   E isso simplesmente porque enquanto os primeiros incomodam e desestruturam o “conforto” do leitor, com os outros, como Brecht (xiiii, mexi num vespeiro) apenas se concorda, o que no mais das vezes apenas conforta, não movendo o leitor sequer um centímetro de seu “entusiasmo” pretensamente “revolucionário”, “moderno”, “político”, o que, mais uma vez, me parece na verdade reacionário. E caso o leitor não comungue daquela ideologia, é simples, discorda, fecha o livro e vai cuidar da vida. Trata-se, é evidente, apenas de convencer os anteriormente convencidos, nada alterando a realidade circundante.

   E qual a consequencia prática disso, que, assustado, venho constatando com apavorante frequencia?

   Ler um autor pelas suas opiniões pessoais ou ideológicas é buscar nele “boas intenções”, e nada mais perigoso do que a arte “bem intencionada”, que é a própria negação da arte.
E, mais grave, e este é o ponto, para ser um autor incensado basta estar “bem intencionado”. O sujeito pode escrever a mais redundante estupidez que, num toque mágico, se tornará um escritor aplaudido a golpes de confete.

   Então basta isso? Sim, amiguinho, é muito fácil! Você não precisa saber escrever, pensar muito menos, e, regozije-se! nem ler você precisará mais, essa árdua e enfadonha atividade, basta ser “bem intencionado” e, pimba! eis o gênio! Eis pronto o escritor! Ah, não se esqueça de acrescentar a incansável frequencia a lançamentos, feiras (talvez com direito à xepa) e festivais. Um escritor que não sabe escrever, e não lê, pois não sai dos necessários eventos culturais, afinal, é preciso se promover e divertir-se, e não há tempo útil para tudo isso. Mas, quem se importa? é prenhe de boas intenções! Deixemos de delicadezas: é politicamente correto.

   O segundo ponto, consequencia fatal, é tão ou mais perigoso do que o primeiro, mas apenas pode angustiar uma ou outra alma mais delicada, e quase disse sensível, esta palavra que, repentinamente, tornou-se polissêmica.
Sim, falo do chamado “leitor sensível”.

   E aqui confesso minha ignorância, fruto talvez de meu exílio voluntário, tão afastado das modas. A primeira vez que ouvi essa expressão, “leitor sensível”, ingenuamente acreditei tratar-se apenas do velho e bom leitor dotado de refinada sensibilidade, sonho de todo escritor. Inocente...

  Depois descobri, horrorizado, que eram leitores contratados pelas editoras para “filtrar” livros e autores que pudessem ferir suscetibilidades “bem pensantes”, “politicamente corretas”... mas, vejam, não foi por ideologia ou algo assim que surgiu essa quase nova profissão, claro, que isso não é com eles, mas razões estritamente mercadológicas! Afinal, pecunia non olet...

   Ora, isso não seria amarra ideológica da arte, ou, no limite, semelhante a uma ditadura do gosto, do “bom gosto”? Isso, e que se irritem os ouvidos afinados com o espectro esquerdo do cérebro, não seria a mais pura e simples ditadura do mercado, do, oh! capital?

  Ou mesmo, como prefere meu amigo Murilo Mendes, escritor que dos sertões ecoa a contemporaneidade, isso nada mais é do que a mais deslavada censura! E pior, feita exatamente por aqueles que receberam da Constituição a imunidade tributária, os editores, aqueles que têm o dever ético-jurídico de devolver em cultura transgressora ou de difícil comercialização o dinheiro público que poderia ter ido para a saúde ou educação. Tudo em nome do “mercado”.

   Concluindo, uma arte “politicamente correta” e o leitor que busca mais o conforto intelectual de uma concordância ideológica, uma ideia – para relembrar o famoso aforismo de Mallarmé que me serviu de epígrafe – ao invés de uma arte que incomode, dilacere, ou mesmo, com deleite, emocione ou fascine, me parece fácil constatar, é o que posso imaginar de mais conservador em matéria de arte, ou, mais incisivamente, reacionário.

   Reacionário no sentido lato da palavra. 

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