“Poesia não se
faz com ideias, mas com palavras!”
Mallarmé a Degas (segundo Valéry)
Tem
sido recorrente este despretensioso poeta afirmar que o autor, ante sua obra,
não tem importância, ou ao menos, só tem importância para os estudiosos, não
para o leitor comum. Porém, mesmo esses leitores não deveriam pautar seu
interesse por um ou outro autor pela sua ideologia, gênero, para usar a palavra
da moda, ou o diabo que for, mas visar à obra, mesmo que estudando seu autor,
subsidiariamente, porque a obra é muito maior do que ele, pois mesquinho seu
cotidiano, e é com a obra que ele, eventualmente, engrandece.
Volto ao tema, que
já provocou conversas interessantes, e mesmo alguma irritação, mas estas
ficaram na várzea das horas, entretanto, o faço destacando questões mais
afeitas ao nosso tempo, por vezes tão enfadonho, mais urgentes, talvez.
No
mínimo, são dois os motivos que me fazem voltar ao tema, que já deveria estar
há muito superado, mas que readquiriu força, agora com outro enfoque, porque
são motivos que, digamos assim, “atualizam” a conversa, saindo esfera retórica
(quase disse acadêmica).
O primeiro deles, e talvez primeiro justo pela
urgência, cuida da mediocrização de nosso tempo. Mas o que teria uma coisa com
a outra?
Vejo, assustado, um olhar sobre a literatura e a obra de arte em
geral, ao menos por aqueles mais sujeitos a modismos e ideias de ocasião, ou a
falta delas, que não mais se confunde com a visão eminentemente sociológica ou
psicológica que pontuou a última metade do século passado, o que seria um pouco
menos trágico, seus óculos são estritamente (ou estreitamente) políticos, ou
melhor, ideológicos, o que o torna ainda mais empobrecedor.
O que se quer do
autor, hoje? Que seja ideologicamente afinado com os dogmas, sejam os da
academia, os de um partido, ou de um (pré)conceito, que seja exatamente aquilo
que dele, bem comportado, se espera: uma inteligência (vá lá) a serviço de uma
“boa causa”, de preferência igualitária, e falsamente libertadora (que ao fim é
apenas limitadora, logo, reacionária, como veremos) o que se quer do autor é,
mais do que seu texto, seu discurso.
Em poucas palavras: o que se quer do
autor é que ele concorde conosco.
Não conheço maior negação do que seja a
arte do que tais exigências (esta a palavra). Arte não é concordância, mas seu
contrário, é discordância, é radical dissonância; arte, qualquer uma, é
experimento, é conduta libertária, é linguagem individual e única. Original,
ora.
Quando eu era adolescente, e tristemente faz muito tempo, embora naquela
época, claro, pela pouca idade, isso fosse apenas intuitivo, eu insistia, em
homéricas discussões com meus amigos (estávamos em plena ditadura militar,
quando era difícil viver, mas fácil, ou melhor, simples, ou, melhor ainda,
simplório pensar, pois se pensava em preto e branco, maniqueisticamente, o bem
(nós) contra o mal (eles) e isso sem dúvida era mais confortável do que pensar
em cinza, na esfera da nuance), eu insistia que muito mais “revolucionária” do
que uma arte dita “engajada” (era assim que se chamava o politicamente correto
naqueles idos) era a arte que incomodasse, que invadisse os confortáveis
pensamentos do leitor, e o desarmasse.
Claro que evolui, ao menos imagino que
sim, era inevitável, o que involuiu foi a conversa.
Exemplificando, para
melhor entendimento: creio que Goya, Artaud e Nelson Rodrigues - para tomarmos
como exemplo um brasileiro e “reacionário” político, mas que esfrega
deliciosamente o hímem complacente da falsa moral burguesa de seu tempo em seu
próprio rosto, escandalizando-a - do ponto de vista visceral; e Velazques, pela
ironia racional, fizeram mais por uma real transformação do ser humano do que a
toda arte dita engajada, ou, atualizando, “politicamente correta”, como, por
exemplo, o talvez mais enfadonho romance jamais escrito: “A Mãe”, de Gorki,
embora fosse, como hoje, “bem intencionado”, ou mais genericamente, para não
ferir suscetibilidades, todo o “realismo socialista”, esse monumental atraso da
anteriormente excepcional arte russa.
E isso simplesmente porque enquanto os
primeiros incomodam e desestruturam o “conforto” do leitor, com os outros, como
Brecht (xiiii, mexi num vespeiro) apenas se concorda, o que no mais das vezes
apenas conforta, não movendo o leitor sequer um centímetro de seu “entusiasmo”
pretensamente “revolucionário”, “moderno”, “político”, o que, mais uma vez, me
parece na verdade reacionário. E caso o leitor não comungue daquela ideologia, é
simples, discorda, fecha o livro e vai cuidar da vida. Trata-se, é evidente,
apenas de convencer os anteriormente convencidos, nada alterando a realidade
circundante.
E qual a consequencia prática disso, que, assustado, venho
constatando com apavorante frequencia?
Ler um autor pelas suas opiniões
pessoais ou ideológicas é buscar nele “boas intenções”, e nada mais perigoso do
que a arte “bem intencionada”, que é a própria negação da arte.
E, mais
grave, e este é o ponto, para ser um autor incensado basta estar “bem
intencionado”. O sujeito pode escrever a mais redundante estupidez que, num
toque mágico, se tornará um escritor aplaudido a golpes de confete.
Então
basta isso? Sim, amiguinho, é muito fácil! Você não precisa saber escrever,
pensar muito menos, e, regozije-se! nem ler você precisará mais, essa árdua e
enfadonha atividade, basta ser “bem intencionado” e, pimba! eis o gênio! Eis pronto
o escritor! Ah, não se esqueça de acrescentar a incansável frequencia a lançamentos,
feiras (talvez com direito à xepa) e festivais. Um escritor que não sabe
escrever, e não lê, pois não sai dos necessários eventos culturais, afinal, é
preciso se promover e divertir-se, e não há tempo útil para tudo isso. Mas,
quem se importa? é prenhe de boas intenções! Deixemos de delicadezas: é
politicamente correto.
O segundo ponto, consequencia fatal, é tão ou mais
perigoso do que o primeiro, mas apenas pode angustiar uma ou outra alma mais
delicada, e quase disse sensível, esta palavra que, repentinamente, tornou-se polissêmica.
Sim,
falo do chamado “leitor sensível”.
E aqui confesso minha ignorância, fruto
talvez de meu exílio voluntário, tão afastado das modas. A primeira vez que
ouvi essa expressão, “leitor sensível”, ingenuamente acreditei tratar-se apenas
do velho e bom leitor dotado de refinada sensibilidade, sonho de todo escritor.
Inocente...
Depois descobri, horrorizado, que eram leitores contratados pelas
editoras para “filtrar” livros e autores que pudessem ferir suscetibilidades “bem
pensantes”, “politicamente corretas”... mas, vejam, não foi por ideologia ou
algo assim que surgiu essa quase nova profissão, claro, que isso não é com
eles, mas razões estritamente mercadológicas! Afinal, pecunia non olet...
Ora,
isso não seria amarra ideológica da arte, ou, no limite, semelhante a uma ditadura
do gosto, do “bom gosto”? Isso, e que se irritem os ouvidos afinados com o
espectro esquerdo do cérebro, não seria a mais pura e simples ditadura do
mercado, do, oh! capital?
Ou mesmo, como prefere meu amigo Murilo Mendes,
escritor que dos sertões ecoa a contemporaneidade, isso nada mais é do que a
mais deslavada censura! E pior, feita exatamente por aqueles que receberam da
Constituição a imunidade tributária, os editores, aqueles que têm o dever
ético-jurídico de devolver em cultura transgressora ou de difícil
comercialização o dinheiro público que poderia ter ido para a saúde ou educação.
Tudo em nome do “mercado”.
Concluindo, uma arte “politicamente correta” e o
leitor que busca mais o conforto intelectual de uma concordância ideológica, uma
ideia – para relembrar o famoso aforismo de Mallarmé que me serviu de epígrafe –
ao invés de uma arte que incomode, dilacere, ou mesmo, com deleite, emocione ou
fascine, me parece fácil constatar, é o que posso imaginar de mais conservador
em matéria de arte, ou, mais incisivamente, reacionário.
Reacionário no
sentido lato da palavra.
Nenhum comentário:
Postar um comentário