terça-feira, 3 de agosto de 2021

INCONFIDÊNCIAS MINEIRAS, DE SÔNIA SANT'ANNA, UMA HISTÓRIA RECONTADA

        

             Terminei de ler o romance “Inconfidências Mineiras – Uma História Privada da Inconfidência” (Jorge Zahar Editor – 2000), de Sônia Sant’Anna. Sempre tive o hábito de ler vários livros ao mesmo tempo, o que ultimamente se tornou meio compulsivo, pois um dos meus pânicos, dentre muitos outros, é não conseguir ler tudo que gostaria antes de morrer, ao menos livros sem os quais nos sobra uma lacuna que nos faz literariamente mancos, assim, tenho tentado mergulhar nos clássicos fundamentais, para morrer em paz, o que certamente não vou conseguir, mesmo se eu não fosse triste agnóstico faria pouca diferença, ao que me consta não há bibliotecas na eternidade.

        
        Além desses clássicos, tento minimizar minhas responsabilidades com meu tempo, lendo alguns livros de meus contemporâneos que, por um ou outro apelo, me chamam das redes sociais ou me provocam da estante. E esse foi um deles.

    Alguns motivos me levaram a lê-lo. Primeiro, por ter uma boa interação com a autora na provinciana pracinha cibernética chamada Facebook, o que neste tempo, quando chovem boçais do céu do país, deve ser cuidado com muito carinho. Além disso, é assunto que sempre despertará meu interesse, tenho convicção de que foi naquele período - e não apenas pontualmente na Inconfidência Mineira, mas por tudo que então aconteceu em Minas ao longo de algumas décadas - que o Brasil perdeu mais um bonde da História, talvez o maior deles.

    Embora circunscrito à região aurífera de Minas Gerais, a efervescência dos caminhos de Minas seria a base para um país mais identificado consigo mesmo, pois desde um pouco antes, no apogeu do Ciclo do Ouro, até o esgotamento dos veios e aluviões, Minas efervescia. Pela primeira vez estivemos perto de criar uma identidade cultural e política dignas do nome, que nos inseriria num mundo onde o Iluminismo fazia o cíclico papel das utopias, que se a vida me ensinou não existirem, são sempre os motores das grandes transformações e de identidades coletivas, que fatalmente se degeneram em tiranos e tiranetes corrompidos.

            Mas isso é outra história.

        Foi a sanha do colonizador em sugar até a última gota de nosso ouro e sangue que adubou a revolta, como destaca Sônia, “os mineiros (...) não se conformavam com que uma boa fatia do ouro que arrancavam da terra lhes fosse tomada” (pg. 18).

    Por outro lado, o Barroco Mineiro fazia sua parte na criação de uma identidade cultural, uma “linguagem” brasileira. Ao contrário do que pensam os olhares apressados ou preconceituosos, ou ambos, não era um barroco mais “tosco”, pastiche do europeu, basta postar-se dentro da Igreja de São Francisco de Assis, em Ouro Preto, cujo frontispício bastou a Drummond, no excepcional poema que leva o nome daquela igreja (“Não creio em vós para vos amar (...) Não entrarei, senhor, no templo, / seu frontispício me basta”), carinhosamente chamada pelas gentes de “Chico de Baixo” (tão Brasil...), olhar para o teto pintado por Ataíde e perceber, num êxtase agnóstico ou não, que ali está uma síntese de uma arte mulata e peculiar.


        Desconheço uma representação da Madona similar àquela, o ar amatronado e levemente melancólico da santa, suas coxas grossas destacadas por entre o vestido nada esvoaçante, os lábios grossos e o nariz largo. À sua volta anjinhos mineiros igualmente mulatos tocam, posso ouvir, o “Beata Mater”, de Lobo de Mesquita. Impossível não ver ali uma senhora mineira que povoa nosso passado, uma parente ancestral num álbum de família, e não foi, como equivocadamente insistem alguns, por falta de modelos vivos semelhantes aos europeus, isso seria fácil de resolver, bastaria uma gravura entre as tantas que recebiam do Velho Mundo, mas era, sim, a criação intencional de uma linguagem pessoal, ataidiana e, sim, brasileira.

 

   
Visitar Congonhas e ver o aproveitamento do cenário das montanhas pelo Aleijadinho, para a ópera que compôs para os profetas, ouvir a música barroca e ler a sua ainda incipiente literatura, que encontraria sua maturidade exatamente nos poetas conspiradores, é, para olhares mais sensíveis, perceber que ali criava-se uma linguagem genuinamente brasileira, claro, e jamais foi diferente, que com influências da Europa, pelos ventos que vinham de Coimbra, onde estudava a elite local, que repercutiam a França e a Itália e suas referências culturais, numa antropofagia cultural “avant la letre”.

        E foi justamente essa influência, como demonstra muito bem o livro de Sônia, um dos fatores determinantes da tentativa de sublevação, por exemplo, a menção à biblioteca do Cônego Luís Vieira, que era “enorme para a época – cerca de 600 volumes, entre os quais muitos considerados subversivos” (pg. 33, nota), leia-se, a Revolução Francesa e a Independência Americana que ali semearam a ideia de liberdade, ainda que tardia.

        Os anos que antecederam à Inconfidência foram o apogeu e a decadência do Ciclo do Ouro seus últimos suspiros, e as minas secas, e isso transparece límpido no romance de Sônia, a massa crítica que possibilitou a conspiração que, como o ouro, esgotou-se pela traição antes de explodir. Mais tarde, como sempre, é pena, nossa independência nos foi concedida, quase uma epígrafe do país, pelo filho do Imperador da colônia, antes que um aventureiro lançasse mão, retrato da histórica leniência com que tratamos nossos opressores, que não por acaso hoje se repete.

    Mas a Inconfidência não foi o único movimento de sublevação contra o colonizador, a riqueza cultural que ali efervescia era construção de uma identidade cultural condição necessária e propícia para revoltas por liberdade, cujos “tristes inventores / já são réus - pois se atreveram / a falar em Liberdade / (que ninguém sabe o que seja)” como cantou Cecília Meireles no “Romanceiro da Inconfidência”.

        Não foi, como equivocadamente pode parecer, um fato isolado. Várias foram as sedições que a antecederam, como a do Morro Vermelho, a Conspiração do Rio das Velhas, de São Francisco e a Batalha da Cachoeira, sem falar nas mais notórias como Emboabas; a Revolta de Vila Rica, mais conhecida como revolta de Filipe dos Santos (“morreu Felipe dos Santos: / outros, porém, nascerão”, do mesmo Romanceiro, de Cecília); desembocando na Inconfidência Mineira. Francisco Campos, que foi, embora notório reacionário, fundamental para o estudo da nossa História, conhecido como “o Heródoto brasileiro”, este título horroroso, assustado dizia que “as Minas (...) não tiveram infância. Nasceram como a Deosa de Athenas, já feitas e armadas”.

        “Inconfidências” limita-se a determinada sublevação, a mais famosa delas, no que faz bem, pois foi o mais rico e próximo a ser bem sucedido, pela sofisticação de suas lideranças, que a autora ressalta com os necessários cuidados. É um livro que, como toda boa literatura, permite a leitura em diferentes “camadas”, seja o ouro de mina, seja o de aluvião - para ficarmos numa metáfora homogênea - a depender do leitor, tanto podendo ser lido na “superfície”, didático que é, por qualquer aluno que esteja se iniciando na História do Brasil (ensino tão em falta nos dias de hoje, e que a cada dia tem se tornado mais urgente), como por um leitor com uma visão mais acurada sobre o assunto, entres os quais, com desabusada imodéstia que foge ao meu natural, me incluo.

        E isso é saudável, pois as diversas leituras possíveis são a demonstração que todo bom livro deve libertar-se do autor e entregar-se ao olhar peculiar de cada leitor que dele se aproxima, que dele se apropria, percepção que vem sendo evitada, numa nada recomendável tendência acadêmica de preocupar-se mais com o autor do que com a obra, esquecendo-se que esta daquele se liberta, o que tem provocado cataratas de bobagens por aí (recentemente escrevi um artigo sobre isso para a “Revista Texto Território” (link).

    Embora seja um romance, a autora não fantasia a realidade, mas a recria na visão da vida cotidiana das suas personagens, deixando claro, o que é absolutamente saudável, que o que movia a quase totalidade dos Inconfidentes eram os interesses contrariados pela Coroa, a velha e boa pecúnia, que não fede, mas que, além de fazerem parte da elite daquela comunidade, eram também lideranças intelectuais, e são esses dois fatores que sempre moveram todas as revoluções. Todas. Só um incurável e ingênuo romântico para crer que pode ser de outra maneira, o povo por si só derrubando os tiranos.

        O livro destaca que eles nada tinham de heróis da pátria, ao contrário, eram exploradores da mão-de-obra escrava, como tantos de então, e os padres que ali estavam mantinham a tradição do contrabando do ouro , o pastoreio, além das almas, do ouro reluzente, pois, por estarem livres das revistas nos postos de controle, podiam levar grandes quantidades de ouro dos armazéns do Colégio dos Jesuítas, isentas de tributos e de direitos alfandegários, como menciona Kenneth Maxwell em “A Devassa da Devassa – A Inconfidência Mineira: Brasil e Portugal, 1750 – 1808”. E assim Sônia também sublinha, neste livro de grande cuidado na pesquisa dos fatos históricos, expondo sem a frieza dos historiadores, mas a riqueza de boa ficcionista que é, quando na boca do Cônego Luiz Vieira grava este comentário: “- No caso de Rolin, até que o governador teve suas razões (...) Rolim é o maior contrabandista de pedras destas bandas” (pg 48).

    Também me parece saltar do livro a imagem real de Tiradentes, nem o ingênuo que mal sabia o que fazia, afinal, o Alferes era um “engenheiro que concebeu um sistema para a melhoria do abastecimento de água para a cidade do Rio de Janeiro”, mais tarde “posto em prática quando a Corte portuguesa se transferiu para o Brasil” (pg 65) , esse ingênuo herói quase rousseauniano jamais existiu, embora, creio, talvez fosse um dos poucos idealistas por ali; tampouco foi o símbolo pintado pela República, na busca de um herói que justificasse a quartelada, que paulatinamente os pintores acadêmicos da nossa primeira ditadura transformaram num Jesus Cristo tropical.

    Como disse acima, havia, sim, um caldo de cultura para um movimento de libertação, a admiração pela independência americana, sua Constituição, que, destaque-se, Tiradentes conhecia, mesmo não sendo um jurista da estirpe de Tomás Antônio Gonzaga. Este, aliás, escreveu um belo “Tratado de Direito Natural”, além de, na modesta opinião deste poeta, o melhor dentre os muitos bons poetas que ali estavam.

        Não só pelos belos versos que escreveu para a ninfeta Marília, que espreitava pelas persianas, enquanto ela, recém-desperta, passeava pelo seu quintal (“Quando apareces / Na madrugada, / Mal embrulhada / Na larga roupa, / E desgrenhada / Sem fita, ou flor; / Ah! que então brilha / A natureza! / Estão se mostra / Tua beleza / Inda maior”). O livro que escreveu anonimamente, e, como tantos livros “anônimos”, mais assinado do que jamais fora, para esculhambar o governador Cunha Menezes, por ele deliciosamente apelidado “Fanfarrão Minésio”, é, embora alguns sonetos para Marília também o sejam, bela altitude poética. Encoberto pelo seu “anonimato”, libertou-se ele também das amarras da estética reinante, tendo sido quase uma ruptura com os cânones poéticos de então.

        Falando nos poetas, Sônia faz deles um interessante e verdadeiro retrato: só escreviam versos exaltando suas musas para lerem nos saraus, onde elas presenciavam apenas como ouvintes, mudas e supostamente enlevadas, mas eram traídas nas alcovas, nas senzalas e abandonadas meses a fio sem notícias de seus vates, como o bem descrito abandono de Bárbara por Alvarenga Peixoto, enquanto ela passava por dificuldades com o marido irresponsável e ausente, que a fazia sofrer sem recursos e notícias: “poemas, porém, chegavam regularmente. Num deles dirigido a “Bárbara Bela, do Norte Estrela”, (...) A pobre senhora, com credores diariamente à sua porta, (...) chegava a desejar que se tivesse casado com algum rude e honesto fazendeiro” (pg 39).

        Atravessa as páginas do romance a opressão que sofriam as mulheres, entretanto, num relato sem maniqueísmos, sem manifestos, tudo com muita sutileza, com recomendam a boa técnica literária e a inteligência. E vejam que se trata de um romance histórico, tão propício a bandeiras desfraldadas, gênero a que alguns estupidamente torcem o nariz, esquecendo-se de um romancista menor, que fez como pano de fundo de seu vasto romance a História da França, um tal de Proust.

        E Sônia cumpre bem o traçado a que se propôs. Sua pesquisa, repito, é, como não poderia deixar de ser, ou falsearia o que falseado não pode ser, num romance que se pretenda histórico, desceu aos detalhes que bem o demonstram o conhecimento sobre o que pretendeu escrever.

        Grande era o intercâmbio entre estudantes brasileiros e europeus, fazendo ecoar por aqui a ideia libertária daquela época. Sônia cita o ilustrativo exemplo de “Domingos Vida Barbosa Laje, que estudara medicina na França, portador da notícia de que comerciantes franceses estavam dispostos a enviar reforços caso a rebelião se concretizasse (...) morreu no degredo” (pg 55).

        Mas este não foi um caso isolado, me fascina também uma apagada personagem nos livros de História, mas que simboliza bem a sofisticação e o envolvimento, embora tanta vez meio ingênuo, daquele grupo de revoltosos com as notícias da Independência Americana e os ecos tardios da Revolução Francesa. Um desses estudantes foi José Joaquim da Maia, natural do Rio de Janeiro, que cursava a Universidade de Montpellier. Esse rapaz ousou mesmo dirigir-se a Thomas Jefferson, então Ministro dos Estados Unidos junto ao governo francês, e obteve dele uma entrevista que se realizou em Nimes.

        Nesses contatos com o ministro americano, Maia tentou conseguir, sem êxito porém, o apoio dos Estados Unidos para a independência do Brasil. Como se pode notar por esses dois exemplos, o movimento era à vera. Sem entrar no mérito da participação de cada inconfidente, o que Sônia faz com cuidadas descrições que não cabem nos estritos limites de uma resenha, o que nos interessa aqui é a sua contextualização nos acontecimentos mundiais movidos pelo Iluminismo, o que a autora deixa claríssimo, com riquezas de detalhes, mas com o sabor da vida privada que se encontra com mais facilidade nos bons romances do que nos livros de História.

    Mas já me alongo demasiado, leiam o livro, o que será bem mais enriquecedor, pois, além dos fatos históricos relevantes para conhecer um lado falseado da nossa História, oculto sobre as tintas das banais patriotadas, é também um relato bastante saboroso da vida privada de então.

    E caso o leitor seja um estudante, ou pai de um, que esteja se aproximando de nossa esquecida e vilipendiada História, eis uma boa oportunidade. “Inconfidências Mineiras” consegue o raro prodígio de ser didático sem ser enfadonho.

    Enfim, uma bela leitura.



quarta-feira, 2 de setembro de 2020

O FILHO DE NEFELE


     Cem mil mortos.
    Comecei a escrever este poema quando completamos noventa mil mortos, para dar tempo de trabalhá-lo, porque sabia inevitável, tal o descaso do facínora que nos governa, que chegaríamos à triste e emblemática marca de cem mil filhos, mães, pais e amores mortos. Por mórbida coincidência, chegamos a essa marca no dia dos pais.

                                               


     Nefele (Nuvem), na mitologia grega, foi um “eídolon” (imagem) de Hera, moldada de nuvens por Zeus para enganar Ixíon, que a perseguia. Dessa estranha união nasceram os centauros, seres monstruosos, bestiais e sanguinários, que se alimentavam de carne crua.
     De tempos em tempos nasce um descendente de Nefele e Ixíon.


     Dois mil mortos,
                                               não sou coveiro.

     Cinco mil mortos,
                                             e daí?
                                             
     Cem mil mortos.
                                            E agora?

     o que dirá, mitômano, que não poderia ser coveiro,
     que eles jamais cospem no rosto da dor. Elo perdido
     um proto-humano. Morte tampouco posso chamá-lo
     dela não lhe cabe nem nome nem ofício, ela triunfa

     no Tempo, ao passo que a sua memória sucumbirá
     no opaco de um passado a ser esquecido. Coveiro
     não é, morte tampouco, quem é você, traste, afinal?
     Um herdeiro de Nefele, nefasto filho de uma nuvem,

     um centauro bêbado, um bastardo bestial, no qual
     a Morte cavalga triunfante. Vai, tritura sob as patas
     os corpos sem velórios, cospe nos olhos dos órfãos
     a seiva do seu veneno, deixa no seu rastro o adágio

     dissonante do horror que a morte rege. Ah, carrasco,
     funde com as lágrimas os escarros que diariamente
     nos atira ao rosto, faz uma mistura lilás como a flor
     da dor não pranteada e com a borra do nosso asco,

     fermenta o mosto desse vinagre. Brinda com a morte
     sua herança, bêbado de ódio delira com as miragens
     dos esgotos da História, dança macabra na memória
     a imagem do bronze profano do Cão que você adora,

     Belzebu fardado que com tesão você cultiva e lustra
     cujo nome é uma rima rica tão infamante que a ânsia
     cala, ajoelhe-se a seus pés, beije-os como um lúgubre
     Brilhante, o sobrenome das sombras das masmorras.

     Masturbe-se com o balé do horror, cicatriz que o tempo
     não sutura, pois agora que tem os seus próprios mortos.
     vai e goza, que no cio da sua boca, no esgar do sorriso
     de lagarto corre um fino fio dos rios de sangue nascidos

     da cultura
                                             da dor
                                                                                   da Morte


     e da tortura.













FOTO O GLOBO CAPA 09/08/2020

     OUÇA O AUTOR LENDO ESTE POEMA EM: https://youtu.be/ubGjk0CjoW8
                                                               


domingo, 30 de agosto de 2020

DOZE MINUTOS E TRINTA E OITO SEGUNDOS


São cento e quatorze mil setecentos e setenta e dois mortos.

Segunda-feira, dia 24 de agosto de 2020, cinco da manhã.
O sol não é como ele, a essa hora já acordado e os olhos
abertos de dor e medo. Levanta-se, vai ao banheiro, vê-se
no espelho apalpa o rosto amarrotado de tempo e de sono.
Ainda está vivo, certifica-se. Com cuidado, degrau a degrau
desce as escadas. Vai até à cozinha. Tem sede, muita sede.
Novamente sobe as escadas e passa pelo mesmo banheiro
olha-se no mesmo espelho de há pouco há séculos rachado,
novamente apalpa o rosto para certificar-se. Do que mesmo?
Volta ao quarto pelo mesmo corredor, deprimido se deita, ele
sua solidão e o relógio que nunca se cansa: são cinco e doze.

São cento e quatorze mil setecentos e oitenta e cinco mortos.










Excerto do livro “A DEMÊNCIA DO TEMPO (Poesia para não enlouquecer ou manual de sobrevivência- um diário poético da quarentena sob o signo de um Poder demente)” – em andamento

sexta-feira, 31 de julho de 2020

CIÊNCIA EXATA


3,54%      morrerão
                apenas
0,33%      serão chorados
58,65%                               festejados

falecerão
39,33547%                          nos leitos lotados
                                            dos hospitais
37,495%                              enterrados sem lágrimas
relembrados
                                            em fotos digitais,
13,43%
                                             abandonados

                                             agonizarão nas esquinas
                                             num aquário vazio
                                             o ar tardio

38,87%
                                             apodrecerão em dados
                                             rigorosamente científicos

fedendo fendendo
absurdos abismos

                                             Também morrerão:

87, 1254671954832% de minha mãe
79,24458988741543% da mulher que amo
91,33333333333333% de meus filhos

                                                                    e pagarei com a dízima
                                                                    o dízimo devido à dor

desses, do que faltar para os 100%
                                                                    33,4% serão memórias
66,6% (mísera cabala)                                vagas imagens
                                                                    dos corpos
                                                                    nas covas solitárias

súbito, num susto no átimo de 0,000000001% de um segundo verei

               no sinal 


                                                      %



per
                                                     cen
                                                                                                      tual

                                                   o símbolo sinistro
                                                                           o signo do silêncio

                                                                           de uma forca
                onde meu corpo
                balançará ao vento
                                                                           21,5454789%
                do tempo.

                                                                           Em 100% do Nada


Ouça o autor lendo este poema em: https://youtu.be/8uxsZwvFrLo





terça-feira, 14 de julho de 2020

BABILÔNIA, O QUE É? ONDE É?


      -“Te Baylon, / Babylon, te te / chaldae ty ranne. / Arguo (...) cano” - Habacuc (Cap. 1)

      - “A ti, Babilônia, / Babilônia, a ti, a ti / caldeus tiranos / Argúo (...) e canto” - Habacuc (Cap. 1) – Inscrição na escultura do Profeta Habacuc, do Aleijadinho, no Santuário do Bom Jesus do Matosinho, Congonhas do Campo, Minas Gerais.

Sob a regência de um céu de outono
e de um mulato aleijado, dito Antônio,
cantou Habacuc nosso carma e pena.
Com a sua pena de pedra, o profeta
contou o que viu no veio da cantaria:

A perda de outra Caldeia construída
sobre fundações da falsidade e ira,
contou dos porões de pedra, paredes
erguidas dos gritos granito martírios
ecos, alvenaria da dor e da mentira.

Na pedra da infâmia viu Babilônia
desabar sobre nós. Nada ouvimos,
não somos caldeus e nos fingimos
pedras, e nos tornamos este povo
enjeitado por Deus à própria sorte.

Não escutamos e somos culpados
pelas pragas, sangue nos rios e rãs
pagãs e pela peste que aqui grassa,
gafanhotos vindos no dorso do vento
soprado das ventas de um Incitatus

atemporal, um arremedo de Calígula
que foi pelo povo coroado e cospe
calamidades, vitupérios e bravatas.
Veio envolto em bandeiras bicolores,
meio ao fogo de florestas calcinadas.

As lâminas das lanças decepavam
tribos e dissipavam raças na fumaça
do real, essa nossa parca realidade,
tempo concreto que jamais tivemos
(as pragas purgam o nosso sangue).

“Babilônia!” Grita Incitatus excitado,
ele louva sua loucura, o gozo espúrio
que ejacula sobre nossas cabeças,
enquanto freme e treme bandeiras,
e bananas que banalizam Babilônia.

Esse equino exibe entre os dentes
as palavras de poetas impotentes.
Ah, Habacuc, profeta que previste
na pedra-sabão o nosso presente,
mas pedras surdas não te ouvimos.

Agora é tarde, e para nosso estupor
espalharam-se por nós a estupidez
o horror: Babilônia, o que é? Onde?
Quem sabe seria outra Jerusalém
desabada em “B” semeando ruínas.

Ah, Babilônia, de tropical infâmia
ah, Jerusalém ou talvez Babilônia
ou talvez Caldéia ou talvez Judéia
ou nova Nínive talvez Jerusalém.
Outra Babilônia em B. O que é?


                                                    Onde é?





segunda-feira, 13 de julho de 2020

A DEPOSIÇAO DA CRUZ EM RUBENS, POTORNO E VOLTERRA – BREVES E DISTINTAS VISÕES SOBRE UM MESMO TEMA


       Dentre as representações de temas bíblicos, tão fértil em vários períodos da História da Arte, a “Deposição da Cruz” talvez seja a que tenha nos proporcionado as mais extraordinárias obras. Entretanto, a meu ver, foi no Barroco que atingiu o seu esplendor, e não sem motivo, pois dada à dramaticidade que traz a cena do corpo de Cristo sendo retirado da Cruz, prestou-se magnificamente ao chamado “Drama Barroco”, esse teatro que tanto amo.
       
       Porém, este destaque inicial dado ao tratamento da cena no Barroco, de modo algum me afasta do êxtase provocado por obras de outros períodos sobre o mesmo tema, em especial, no Renascimento, com Raphael, por exemplo, e, como veremos, no Maneirismo. Muito menos, óbvio, as desmerece, apenas justifica, se é que o faz realmente, a inversão cronológica deste devaneio.

       Para tentar destacar uma possível (e visível) oposição entre três artistas bastante representativos desses dois períodos sucessivos, o Maneirismo e o Barroco, inverto a cronologia e inicio por um pintor icônico do segundo (quase incluo neste texto Caravaggio, mas este merece um artigo à parte).

       As duas telas de Rubens (1577-1640) que ilustram esta publicação permitirão observar como aquele período privilegiou a concentração (Wölfflin, “Conceitos Fundamentais da História da Arte): as figuras formam um todo unitário, todavia, a despeito de formarem um só bloco coeso, cada personagem guarda a sua própria individualidade. Essa concentração, num primeiro momento, não permite a dispersão do observador, entretanto, num momento posterior, se expandirá para além do quadro, ao mundo real, libertando-o dos limites da tela e o integrando à cena representada: a "cena mundo".


      Desviando ligeiramente do assunto, a tela, ou o limite dado por qualquer suporte, mesmo no caso do Barroco, que costuma ultrapassá-la de forma virtual, ou “ideal”, fundindo o “espaço ideal” ao “espaço real” (apropriando-me de uma ideia de Bakhtin quando trata do texto literário), é uma necessária contenção para a liberdade criativa, de forma a não se diluírem as regras “do engenho e da arte”.

       É notável que mesmo nos artistas de vanguarda do século XX, quando a desconstrução formal - tanta vez excessivamente diluidora, nos tendo deixado numa encruzilhada quanto ao ponto de retorno ou de reconstrução sobre os escombros - levou a uma radical ruptura das fronteiras da obra de arte, turbando a sua fruição pelo observador, não raras vezes necessitando de uma “explicação”, (uma “bula”, como certa vez um vanguardeiro se irritou comigo) afastando um requisito fundamental em arte: o princípio da alteridade, a necessária distinção entre o emissor e o receptor, a independência e a liberdade deste último para recriá-la no tempo. Claro que não generalizo, seria estupidez, há, como em toda época, alguns artistas geniais, que vencerão o tempo, mas é inegável que foi um período que facilitou o surgimento de algumas ovacionadas e bem conhecidas nulidades. Entretanto, mesmo naquelas tentativas de ruptura (e algumas afetadas pseudorrupturas) tais limites existiam, até por absoluta imposição física do objeto material, o que me parece, além de óbvio, recomendável.

       Tais lindes, que na pintura são dados pela própria dimensão da superfície do suporte utilizado, e na escultura pela natureza de objeto material delimitado no espaço/tempo, num paralelo interessante, podem ser comparados ao tema, na poesia, e ao enredo, no romance, concentram os esforços do artista, concomitantemente liberando-o para o que verdadeiramente interessa: as questões estéticas, do poema, do texto, do escultórico ou do pictórico, além de roubar a atenção do leitor, seduzindo-o.

       Voltando ao tema da “Deposição”, no Barroco, e a concentração com que é representado, é impressionante como Rubens, em ambas as telas que ilustram esta publicação, através de diagonais que dominam o olhar, formadas precipuamente pelo corpo do Senhor morto, destaca seu protagonismo ao mesmo tempo que amalgama as personagens num bloco unitário, conduzindo a visão do leitor de forma absoluta, quase arbitrária, não deixando espaço para qualquer dispersão numa primeira leitura, indicando - e nisso Caravaggio e Velásquez eram outros dois mestres barrocos - o caminho a ser percorrido pelo olhar do observador, só permitindo o deleite com o não fundamental após esgotadas as possibilidades de leitura do tema principal, impedindo, assim, a abordagem apressada, dispersiva, afastando o leitor afoito ou leviano das questões estéticas que interessavam ao artista.

Deposição Rubens 1 


       E era tal o domínio que tinha de sua arte, que o fez, como se pode observar, em duas direções: da esquerda para a direita, e vice-versa - e não sei, nem importa, se era destro ou canhoto - traçando uma “linha de força”, esse roteiro pré-estabelecido que conduz o olhar. Todavia, ao fim dessa condução de nosso olhar por toda superfície da tela, ele, sempre com o absoluto domínio, tanto da técnica quanto do olhar o observador, o projeta para além dos seus limites, característica já mencionada daquele período, transportando, com sua arte, o observador para além do espaço simbólico (ideal) da Arte, para o chamado “mundo real”, o Homem, comunicando, dividindo com ele o drama da existência humana, amalgamando o observador às personagens, transformando-o.
Descida da Cruza - Rubens


       

O mundo, ele parece nos lembrar, existe para além do cenário da obra representada, nos transformando em involuntárias personagens, como, aliás, assinalei em outro texto sobre “As Meninas”, de Velásquez, também publicado aqui, neste blog (Um Olhar Furtivo sobre As Meninas - Revisitando Velásquez ).

       Num contraste interessante, voltando um pouco no tempo, num período imediatamente anterior, dois outros artistas, que alguns críticos, como o já citado Wölfflin, classificam com renascentistas, mas que, ao menos nestas duas telas, me parecem mais uma patente aproximação com o Maneirismo, opinião na qual não estou sozinho, representam a “Deposição” de forma quase oposta a que o período imediatamente posterior o faria.

       Em Daniele Volterra (1509 – 1566) e Pontormo (1494 – 1557), cujo detalhe da cabeça do anjo (foto), é de uma beleza arrebatadora, não há, como no Barroco, a concentração nas personagens, ao contrário, as figuras "desagregam-se do núcleo central, entretanto, demonstrando o domínio da técnica, ao contrário do que poderia acontecer, não mergulham no caos, todas as personagens, destacados os protagonistas,  têm importância semelhante e se distribuem pela tela com absoluto equilíbrio, conferindo a necessária unidade estética, sem a qual não há arte possível, ao menos boa arte.
Pontorno (detalhe)
Pontorno

       Por outro lado, curiosamente, ao contrário do Barroco, a despeito dessa “dispersão”, as telas “limitam” a leitura, não permitindo a percepção do mundo a elas exterior, numa outra e contrária forma de contenção (e concentração, não das figuras em si, mas da e na obra) desta feita pelo espaço da superfície do quadro.
       No que respeita ao aspecto cromático, há outra
Volterra
expressiva diferença entre os artistas e os dois períodos analisados, que também destacam a oposição entre eles, tanto estética quanto filosoficamente: em Rubens, e, por assim dizer, no Barroco, o uso dos tons soturnos e o “chiaro-oscuro" realça, bem ao gosto do estilo, o gesto por si só dramático do tema, a tragédia da nossa existência.
       Na primeira tela, um centurião romano ainda veste suas roupas militares, de algoz; e, nas outras personagens, são nossos – eis que os lindes da tela foram ultrapassados, nos envolvendo - aqueles braços quase violentos de tão musculosos retirando da cruz o corpo do Senhor, que de olhos abertos parecem ainda sofrer as dores do calvário, clamando ao Pai que lhe poupasse do amargo sabor do cálice da dor. A cena expõe a canalha humana, em contraste (também tão barroco) com a perfeição do Divino, esta sim personagem principal, enquanto nós, humanos, somos aqui em tudo secundários, menores e pecadores, assassinos do Deus feito Homem, aflorando culpas (ecos da Contrarreforma?), mas, sobretudo, revelando a tragédia e a beleza de estar vivo, mesmo dentro da nossa pequena dimensão e “condição humana”, tratamento que em Caravaggio, como espero voltar em breve em outra postagem, chegou ao paroxismo. 
Rubens detalhe
       
       Em Pontorno e Volterra, ao contrário, também traduções que eram do período no qual produziram, o Maneirismo, a luz nos eleva ao Paraíso e à “Luz”, nos redime, nos faz à “imagem e semelhança” de Deus, embora “semelhança e imagem” bem distintas das tentativas observadas pela Igreja na Idade Média, nos faz quase solidários com o Senhor morto, quando o depusemos da cruz. E como diferem os braços das personagens, quase angelicais, dos braços que Rubens retratou retirando Cristo da cruz, pesados, violentos, como já destacado. As personagens, se deixam transparecer sua dor ante a cena, o fazem de forma menos dramática do que em Rubens, e mesmo o desmaio de Maria ante o sofrimento, na tela de Volterra, traduz a sua dor, mas reveste-se de diáfana leveza, nos dando a certeza do inesgotável perdão da Mãe de Deus, afastando-nos um pouco de nossa trágica humanidade, nos aproximando da dimensão espiritual de Divino. Nos redimindo.

Volterra
                                                                ... 
       
       São três faces que nos ajudaram a pensar e a traduzir
as diferenças entre a Filosofia e a Estética dos séculos XIV ao XVI em anteposição, embora em períodos sucessivos, ou por causa disso, às dos séculos XVI ao XVII. São perspectivas estéticas e filosóficas quase opostas, o que as une? Além do tema, a inefável visão da Arte, que, como tenho repetido, nos dá alguma parca esperança no ser humano.

       E isso, num tempo tão triste – e feio – como o nosso, traduz-se em alento. E resistência.

domingo, 5 de julho de 2020

POR QUE NÃO ENTERRAMOS O CÃO? UMA LEITURA.


     Sei que tenho me repetido, mas, com algumas variações, acho importante fazê-lo: me gratifica ser testemunha de uma ressurreição, ou redescoberta, da literatura brasileira. Ressurreição ou redescoberta?

     Ambos, ressurreição, e este é um fenômeno global, por que, após as desconstruções das décadas de sessenta e setenta, à época oportunas e razoáveis, houve um impasse: como reconstruir o que em escombros estava?

   Fruto da vanguarda (ou das vanguardas) do século XX, a desconstrução formal e excessivamente conceitual, tanta vez diluidora ao limite, levou a uma radical ruptura das fronteiras da obra de arte, o que resultou turbar sua fruição. Essa realidade, embora à época talvez urgente, terminou por afetar a minha geração e as vindouras (não sou tão jovem), legando para nós, que não vivemos aquele período, ou que apenas o tangenciamos, um pesado encargo.

     Mas, para além desse aspecto, o que houve, e aqui o fenômeno é essencialmente brasileiro, foi uma redescoberta do que já existia, ou ao menos germinava.

    Com o clientelismo e o irremediável compadrio que sempre marcou as nossas relações, sejam elas econômicas e/ou culturais, o “quem é amigo ou foi aluno de quem, e por aí vamos”, aliado a uma excessiva e exclusiva preocupação com o “mercado”, de resto saudável, desde que profissional e impessoal a relação editor/autor, deu-se que não se elegiam as obras por sua qualidade, mas por uma exótica política de boa-vizinhança, vício que ainda nos consome.

      Isso, além impedir o, aqui sim, saudável experimento estético, ou marginalizando uma ou outra categoria, como a poesia, afastou o leitor, tanto o leitor comum, que não está interessado em quem é amigo de quem, bem como o leitor adicto, fiel, que se priva de roupas e lazeres para entrar nas livrarias como quem entra num templo, afinal, fazer o quê por lá? Ele se pergunta. Principalmente agora, com o comércio eletrônico, o que tristemente levou de cambulhada as pequenas e charmosas livrarias e os velhos sebos físicos, com seu delicioso sabor de livros velhos.

     Tal estado de coisas terminou por condenar autores e leitores a um isolamento, (in)voluntário mas de consequências previsíveis, a uma solidão difícil de ver romperem-se os seus muros. Claro que sem sua solidão o autor pouco escreve, por outro lado, o autor ilhéu se priva da fundamental troca com outros autores, que o faz parte da identidade cultural de um país.

     Entretanto, a disseminação dessa mesma Internet e das redes sociais, de certa forma, “furou” as inexpugnáveis fortalezas dessa realidade. Sim, essas mesmas redes sociais, constantemente acusadas de dar voz ao imbecil - e nada mais verdadeiro, haja vista as últimas eleições - proporcionou a troca entre leitores e escritores, fomentando entre estes a mútua leitura, o que desaguou, felizmente, no surgimento de inúmeras e fundamentais pequenas editoras, boa parte delas saudavelmente conduzidas também por autores. A quem interessar, esse olhar foi mais desenvolvido num artigo publicado no caderno cultural do jornal “Tribuna Feirense” ("link": Recompondo a Manhã)

     Então terá brotado do nada uma nova literatura brasileira? Do nada é o escambau, brotou dos subterrâneos nos quais a haviam aprisionado, entre as ruínas das quais lutava para emergir, brotou das prisões estéticas, econômicas e acadêmicas nas quais estava confinada.

     Dessa realidade é que tenho prazerosamente colhido uma safra de vigorosos poetas e prosadores da mais fina cepa, dos quais não citarei nomes, para, num natural esquecimento, tantos são, não ferir suscetibilidades.

     Ao ver essa espécie de renascimento caboclo, me perguntava se haveria uma unidade estética que caracterizasse essa nova literatura, e cheguei a identificar - ou apenas desejar, já que fazia algumas experiências com minha poesia nesse sentido, o que veio a refletir na minha atual produção - talvez influenciado pelas minhas leituras à época, o que poderia ser chamada “uma estética da crueldade”, que pouco tem a ver com o “teatro da crueldade”, de Antonin Artaud (“O Teatro e seu Duplo”), mas com a crueldade em si e propriamente dita, o daemon que nos habita, que é um maneira de incomodar o destinatário, a única verdadeiramente revolucionária em Arte. Posteriormente foi que percebi que me equivocara, na verdade, a unidade, se alguma havia, era a preocupação com a forma, o que é compreensível, pois após a desconstrução da qual falamos acima, a reconstrução sobre ruínas só poderia se dar pela forma.

     Mas eis que me deparo com a excepcional prosa de Theo Alves em “por que não enterramos o cão?” (Editora Patuá, 2020 – à venda em por que não enterramos o cão? Editora Patuá), sobre o qual modestamente pretendo dividir minhas impressões.

     Não sou crítico, apenas um poeta que gosta de refletir sobre o que lê, e se o que lê o movimenta, se detém e escreve sobre o que leu, como aprendeu com Macedónio Fernandez. Ali estava algo próximo ao que havia, embora erroneamente generalizando, imaginado: uma “estética da crueldade”, uma literatura que se utiliza da crueldade para incomodar o leitor, da linhagem do fabuloso e sofrido (teve um vida infeliz, que encerrou com seu suicídio) uruguaio Horácio Quiroga (Cuentos de amor de locura y de muerte - 1917), não influência - aliás difíceis de identificar na literatura de Theo, o que demonstra maturidade estética - mas linhagem literária mesmo.

     Entretanto, reduzi-la a apenas este aspecto seria, como veremos, injustamente empobrecê-la. Sua literatura é bem mais do que isso.

    Theo já diz ao que vem logo no primeiro e excepcional conto que, não por acaso, dá nome ao livro e o apresenta: “por que não enterramos o cão?”. Ali está indicado o que espera o leitor em todo o percurso do livro, além de algo próximo a uma crueldade, como dito, a linguagem econômica, a repetição que impõe um ritmo ao leitor (afinal, por que não enterramos o cão?), além da força das frases, algumas de um vigor poético arrebatador, tal a concisão e virulência.

     A crueldade, sim, perpassa todo livro, a começar pelo título. Mas não a crueldade pura e simples, o que soaria exibicionismo e/ou preciosismo, algo como um “épater la bourgeoisie” adolescente e tardio, mas a crueldade temperada pela ironia, para que o leitor não saiba se o que sente é medo, espanto (e não há arte sem espanto), cumplicidade pela leitura erudita, para aqueles que percebam as referências, ou esboce o leve sorriso do esgar de um morto, ou os quatro estados concomitantemente: medo, espanto, cumplicidade e a aflição que sentimos ao nos deparar com o esgar do sorriso de um morto.

     Eu falei em morte? Sim, a “indesejada das gentes” atravessa todo livro com sua cruel permanência e certeza. Não a morte como finitude, como fim da existência, ou de algum conto, solução em regra desastrosa que alguns autores incorrem, esse pecado elencado por Forster em “Aspects of the Novel” (Aspectos do Romance), livro hoje injustamente não compreendido, que dizia, se bem me lembro da minha leitura ancestral, que a pior forma de acabar um livro é o autor “assassinar” o protagonista. O que temos em Theo não é “um” morto, antes, são inúmeros tipos de mortos, como inúmeros os tipos de vivos.

     Um cão está morto. Qualquer um? Não, “o cão”, covarde e cruelmente atirado ao rio como lixo por aqueles que amava (e serão vários os mortos tratados como lixo ao longo do livro), e, neste caso, pois como disse há outros tipos de mortos, não é o morto que insiste em permanecer vivo, como veremos, mas é o seu corpo entre os “escombros (...), os dentes e ossos de todos os cães do mundo que foram deixados ali (...) brotarão finalmente sob o concreto da ponte”, Só então o cão poderá ser (será?) enterrado, abandonando os “relógios (que) estrebucham em quase-silêncio”, e o “hipopótamo corpulento enforcado em sua coleira”. Sim, há algo de fantástico nessa literatura, mas não de “realismo mágico”, nome que, de resto, não sei – ou sei - por que nutro especial antipatia.

     E serão diferentes os mortos que carregaremos livro afora (e depois dele também). Há os que se conformam com a morte, estes, como o cão, nos fazem descobrir que “o tempo é quase nada na vida de um morto; é na verdade o descuido ingênuo que separa um lado do outro” (“quase nada” – pg 27), e outros mortos resignados (“para o enterro de papai” – pg 57, de tom levemente “sofocliano”, em “Electra”, peça sobre a qual, tal Édipo Rei, Freud equivocada ou maliciosamente nos legaria sua leitura).

   Contudo, há também cadáveres que insistem em não ser enterrados, não por amarem a vida, mas por desprezarem os vivos e ignorarem a morte, sendo por aqueles desprezados, quando não odiados, e que muita vez conseguem finalmente enterrá-los, mas com o desprezo dos ressentidos, “rapidamente, como enterravam a merda que cagavam pela manhã” (“papai está morto” - pg 152).

     Ou o tão cruelmente amado (e este impressiona pela virulência), levado no colo de uma mãe possessiva, que preferiria, a vê-lo morto, a terrível doença que se alastrava pelo corpo do filho, pois assim poderia egoística e/ou sadicamente prendê-lo junto de si, aos seus seios, quem sabe secos e murchos de nojo, pois “as feridas na pele do menino guardado em lençóis traziam um cheiro purulento de morte fresca (contraste quase barroco – observação minha) para o quarto. a mãe aspirava com força e pedia a deus, não que o curasse, mas não o deixasse morrer” (o menino da sua mãe – pg. 93).

    São os mortos que não se querem mortos ou que insistem em não ser enterrados, jogando no nosso rosto sua indesejada permanência, o morto que, como o cão que não enterramos, se recusa a ser esquecido e a precipitar-se no Nada.

  Assim também o parricida (“o libertador” – pg 143) cuja permanência do pai o perseguirá, e mesmo reconhecendo que compreendera as lições por ele dada ao longo da vida, e por isso mesmo, livre de qualquer culpa, revelará que “nunca precisei que ele me perdoasse por tê-lo matado”. E eis um exemplo da ironia contendo a crueldade.

    Ou ainda os (patéticos) ditadores que de tal forma se aferram ao Poder que não percebem que já morreram e foram esquecidos (“como se chama o presidente?” pg 67). Ou o general, este da espécie de mortos que não admitem o próprio fim que “(...) cansado, morrera tantas vezes este ano que não sabia mais calculá-las (...) era talvez hora de entregar o governo aos civis” (“o general amanhã” – pg 85), um espelho onde podem se ver, mas se recusam, todos os ditadores. E qualquer semelhança desses dois contos com o atual estado de coisas no Brasil não é mera coincidência.


FACA E PALAVRA

    O tema, na poesia, bem como o enredo, na prosa, são formas de contenção do autor, para que este possa (de)limitar o necessário devaneio criativo, e sua palavra atenha-se ao que realmente interessa em qualquer forma de arte: as questões estéticas, suas e de seu tempo. O resto é transbordamento do enredo, concessões várias para “facilitar” a vida do leitor, subliteratura, enfim; ou propaganda mal disfarçada de ideologias várias, a “boa intenção” política, rasteira e simplista, que limitada apenas a isso, quando não contida e valorizada pela forma, também faz da literatura ruínas, igualmente subliteratura. E Theo não incorre em nenhum desses pecados, sua literatura, saudavelmente, evita a obviedade ideológica, bem como dialoga com o leitor, sem, no entanto, deixar-se seduzir por ele, muito menos ser subserviente.

     Como já mencionado, há uma repetição formal e temática, como a fatídica pergunta: “por que não enterramos o cão?” Ou “mãos” que se repetem e se espalham livro afora, ora cruéis, ora solidárias, mas de uma igualmente cruel utilidade, “(...) um monstrengo atado ao coto de seu braço (...) que não servia para quaisquer das funções de uma mão”. (“a mão do ferreiro – pg. 31).

    O livro nos impõe um ritmo quase sufocante, que faz o leitor perguntar-se por quanto tempo o autor sustentará esse “dó de peito” numa variação em torno de temas bem definidos, temas estes, como deve ser na boa literatura, que não são de fácil digestão, se prestam apenas para prender a atenção o leitor, levando-o às questões trabalhadas pelo autor.

   E se falamos nelas, nas questões estético-formais, necessariamente chegamos à força poética das frases deste livro. Mas, leitor improvável, alto lá! Nem me passa pela cabeça dizer que em Theo há poesia em prosa, muito menos prosa poética, seria desastroso, assim como é detestável o poeta que acha que a poesia é “prosa empilhadinha”, como definiu certa vez João Cabral, pega-se um ideia (sempre ela, a maldita ideia avacalhando o poema, já que este não é feito daquela, como ironizou Mallarmé) e sai-se cortando as frases, empilhando-as e, pimba! lá estará (estaria) o poema.

     E, menos mal, não escreve poesia “em forma de prosa”, (como os pintores românticos, criticados por Goethe exatamente por isso) mas frases que trazem em si um vigor poético que poucas vezes, por mais que procuremos, encontramos em alguns poetas. Vejamos alguns exemplos:

    Logo no primeiro conto, sempre ele, no primeiro parágrafo, Theo derruba o leitor, tornando-o como um cão não enterrado, que se deitava “por séculos sob a goiabeira”, o mesmo cão que, como todos de sua espécie são dignos de inveja pois “vivem sem arrastar o peso do passado e sem antecipar a apneia do futuro”. E será na reminiscência do passado que o autor nos mostrará “as árvores se esticando no olho da paisagem” (pg 57), entretanto, não faz uso da precária metáfora do tempo como um rio que não cessa de passar, ao contrário, é “como um berço de seixos de um rio morto (outro morto) há séculos numa terra em que não há tempo” (pg 65 – parênteses meus).

   Poderia ainda pinçar inúmeras frase que demonstrariam essa força poética que perpassa o livro, mas me tornaria enfadonho para o leitor, que espera por uma resenha, e não uma tese, que bem merece esse livro. As aqui mencionadas bastarão para que ele perceba o que sublinho. Porém, há uma incontornável, deixar de destacá-la seria trair a minha própria leitura, e matá-la com a mesma “faca (que) rasgava a barriga do peixe como se abrisse nuvens, de onde escorreria uma chuva vermelha e viscosa” (pg 125 – os parênteses são meus). Irretocável.

    Mas esse pinçar de frases é apenas outra leitura possível desse livro, que como toda arte de qualidade permite inúmeras outras, como escamas de um livro-peixe rasgadas de acordo com a bagagem do leitor, pois há também uma espécie de “jogo” bastante interessante: prospectar o ouro de aluvião, quando citações explícitas, ou nos veios da terra, quando meras referências, mais difíceis de identificar, entre os inúmeros autores que sustentam o edifício intelectual de Theo.

    Assim, é com prazer que encontramos e bateamos, pois citado explicitamente, nesse rio onde os cães jamais se enterram, a poesia de Cabral em o “Cão sem Plumas” (o mesmo cão que não enterramos?), de “pelos/plumas (...) terá o cão se tornado rio, como em joão cabral?” (pg 12) ou as “folhas de relva, para achar no abandono a poesia de Whitman” (pg 13), ou na leitura de um “livro em que na capa há de brilhar o nome perene de dom quixote” (pg 89).

     E o ouro de veio, de prospecção mais custosa, meras referências a Fernando Pessoa (“lembro tão bem de eu ainda menino e ninguém estava morto” – pg 55) ou um Dostoiévski renascido num “raskólnikov capaz de relevar a culpa” (pg 143) ou o tom levemente drummondiano de “O Caso do Vestido”, em “outro prato à mesa” (pg. 39), ou, ainda e novamente, João Cabral, agora velado, quando Theo nos apresenta a um “homem só lâmina” (pg 157) e na dura realidade do sertão dos neologismos de Guimarães Rosa (“jagunçaria, jagunçagem, como joão rosa ensinava a chamar” – pg 158/9), aqui citado entre o explícito e o implícito, afinal “joão rosa” pode ser qualquer um.

     Certamente o leitor com mais bagagem do que este precário poeta encontrará outras minas, rios outros.


xxx

    O entusiasmo, no sentido ritual que lhe davam os órficos, celebrado nos altares de Baco, pode levar o leitor descuidado, ou açodado, o que é um quase pleonasmo, a ler o livro de cambulhada, pois assim nos impõe o seu ritmo, mas ao leitor se pede, ou melhor, se exige calma, para que o deguste, para que não cometa o crime de beber toda a taça num só gole, desperdiçando o vinho, profanando o rito a Dioniso. Além de ser leitura equivocada, não é permitida pelo texto, pois se cada conto guarda mares abissais, a serem atravessados com cuidado e calma, por outro lado, o livro nos impõe um ritmo de fazer estancar o fôlego, nos carrega na força das correntezas, e é preciso que o leitor se deixe afogar levado pelas correntezas, pois, frágeis, os escombros do cão que ele também é se deixarão arrastar pelas mãos precisas do autor, como uma linha de força numa tela de Rubens, que conduz arbitrariamente nosso olhar. Maestria.

    A esse leitor restará, ao fechá-lo lamentando seu fim, a memória desse livro ecoando no paladar do espírito, que, como toda boa literatura, sempre guardará o sentido da persistência e da palavra, e passará o restante de seus dias de lucidez perguntando-se: “afinal, por que não enterramos o ‘por que não enterramos o cão?’”.

     Porque não queremos.
     E porque não podemos.