Terminei de ler o romance “Inconfidências Mineiras – Uma História Privada da Inconfidência” (Jorge Zahar Editor – 2000), de Sônia Sant’Anna. Sempre tive o hábito de ler vários livros ao mesmo tempo, o que ultimamente se tornou meio compulsivo, pois um dos meus pânicos, dentre muitos outros, é não conseguir ler tudo que gostaria antes de morrer, ao menos livros sem os quais nos sobra uma lacuna que nos faz literariamente mancos, assim, tenho tentado mergulhar nos clássicos fundamentais, para morrer em paz, o que certamente não vou conseguir, mesmo se eu não fosse triste agnóstico faria pouca diferença, ao que me consta não há bibliotecas na eternidade.
Além desses clássicos, tento minimizar minhas responsabilidades com meu tempo, lendo alguns livros de meus contemporâneos que, por um ou outro apelo, me chamam das redes sociais ou me provocam da estante. E esse foi um deles.
Alguns motivos me levaram a lê-lo. Primeiro, por ter uma boa interação com a autora na provinciana pracinha cibernética chamada Facebook, o que neste tempo, quando chovem boçais do céu do país, deve ser cuidado com muito carinho. Além disso, é assunto que sempre despertará meu interesse, tenho convicção de que foi naquele período - e não apenas pontualmente na Inconfidência Mineira, mas por tudo que então aconteceu em Minas ao longo de algumas décadas - que o Brasil perdeu mais um bonde da História, talvez o maior deles.
Embora circunscrito à região aurífera de Minas Gerais, a efervescência dos caminhos de Minas seria a base para um país mais identificado consigo mesmo, pois desde um pouco antes, no apogeu do Ciclo do Ouro, até o esgotamento dos veios e aluviões, Minas efervescia. Pela primeira vez estivemos perto de criar uma identidade cultural e política dignas do nome, que nos inseriria num mundo onde o Iluminismo fazia o cíclico papel das utopias, que se a vida me ensinou não existirem, são sempre os motores das grandes transformações e de identidades coletivas, que fatalmente se degeneram em tiranos e tiranetes corrompidos.
Mas isso é outra história.
Foi a sanha do colonizador em sugar até a última gota de nosso ouro e sangue que adubou a revolta, como destaca Sônia, “os mineiros (...) não se conformavam com que uma boa fatia do ouro que arrancavam da terra lhes fosse tomada” (pg. 18).
Por outro lado, o Barroco Mineiro fazia sua parte na criação de uma identidade cultural, uma “linguagem” brasileira. Ao contrário do que pensam os olhares apressados ou preconceituosos, ou ambos, não era um barroco mais “tosco”, pastiche do europeu, basta postar-se dentro da Igreja de São Francisco de Assis, em Ouro Preto, cujo frontispício bastou a Drummond, no excepcional poema que leva o nome daquela igreja (“Não creio em vós para vos amar (...) Não entrarei, senhor, no templo, / seu frontispício me basta”), carinhosamente chamada pelas gentes de “Chico de Baixo” (tão Brasil...), olhar para o teto pintado por Ataíde e perceber, num êxtase agnóstico ou não, que ali está uma síntese de uma arte mulata e peculiar.
Desconheço uma representação da Madona similar àquela, o ar amatronado e levemente melancólico da santa, suas coxas grossas destacadas por entre o vestido nada esvoaçante, os lábios grossos e o nariz largo. À sua volta anjinhos mineiros igualmente mulatos tocam, posso ouvir, o “Beata Mater”, de Lobo de Mesquita. Impossível não ver ali uma senhora mineira que povoa nosso passado, uma parente ancestral num álbum de família, e não foi, como equivocadamente insistem alguns, por falta de modelos vivos semelhantes aos europeus, isso seria fácil de resolver, bastaria uma gravura entre as tantas que recebiam do Velho Mundo, mas era, sim, a criação intencional de uma linguagem pessoal, ataidiana e, sim, brasileira.
Visitar Congonhas e ver o aproveitamento do cenário das montanhas pelo Aleijadinho, para a ópera que compôs para os profetas, ouvir a música barroca e ler a sua ainda incipiente literatura, que encontraria sua maturidade exatamente nos poetas conspiradores, é, para olhares mais sensíveis, perceber que ali criava-se uma linguagem genuinamente brasileira, claro, e jamais foi diferente, que com influências da Europa, pelos ventos que vinham de Coimbra, onde estudava a elite local, que repercutiam a França e a Itália e suas referências culturais, numa antropofagia cultural “avant la letre”.
E foi justamente essa influência, como demonstra muito bem o livro de Sônia, um dos fatores determinantes da tentativa de sublevação, por exemplo, a menção à biblioteca do Cônego Luís Vieira, que era “enorme para a época – cerca de 600 volumes, entre os quais muitos considerados subversivos” (pg. 33, nota), leia-se, a Revolução Francesa e a Independência Americana que ali semearam a ideia de liberdade, ainda que tardia.
Os anos que antecederam à Inconfidência foram o apogeu e a decadência do Ciclo do Ouro seus últimos suspiros, e as minas secas, e isso transparece límpido no romance de Sônia, a massa crítica que possibilitou a conspiração que, como o ouro, esgotou-se pela traição antes de explodir. Mais tarde, como sempre, é pena, nossa independência nos foi concedida, quase uma epígrafe do país, pelo filho do Imperador da colônia, antes que um aventureiro lançasse mão, retrato da histórica leniência com que tratamos nossos opressores, que não por acaso hoje se repete.
Mas a Inconfidência não foi o único movimento de sublevação contra o colonizador, a riqueza cultural que ali efervescia era construção de uma identidade cultural condição necessária e propícia para revoltas por liberdade, cujos “tristes inventores / já são réus - pois se atreveram / a falar em Liberdade / (que ninguém sabe o que seja)” como cantou Cecília Meireles no “Romanceiro da Inconfidência”.
Não foi, como equivocadamente pode parecer, um fato isolado. Várias foram as sedições que a antecederam, como a do Morro Vermelho, a Conspiração do Rio das Velhas, de São Francisco e a Batalha da Cachoeira, sem falar nas mais notórias como Emboabas; a Revolta de Vila Rica, mais conhecida como revolta de Filipe dos Santos (“morreu Felipe dos Santos: / outros, porém, nascerão”, do mesmo Romanceiro, de Cecília); desembocando na Inconfidência Mineira. Francisco Campos, que foi, embora notório reacionário, fundamental para o estudo da nossa História, conhecido como “o Heródoto brasileiro”, este título horroroso, assustado dizia que “as Minas (...) não tiveram infância. Nasceram como a Deosa de Athenas, já feitas e armadas”.
“Inconfidências” limita-se a determinada sublevação, a mais famosa delas, no que faz bem, pois foi o mais rico e próximo a ser bem sucedido, pela sofisticação de suas lideranças, que a autora ressalta com os necessários cuidados. É um livro que, como toda boa literatura, permite a leitura em diferentes “camadas”, seja o ouro de mina, seja o de aluvião - para ficarmos numa metáfora homogênea - a depender do leitor, tanto podendo ser lido na “superfície”, didático que é, por qualquer aluno que esteja se iniciando na História do Brasil (ensino tão em falta nos dias de hoje, e que a cada dia tem se tornado mais urgente), como por um leitor com uma visão mais acurada sobre o assunto, entres os quais, com desabusada imodéstia que foge ao meu natural, me incluo.
E isso é saudável, pois as diversas leituras possíveis são a demonstração que todo bom livro deve libertar-se do autor e entregar-se ao olhar peculiar de cada leitor que dele se aproxima, que dele se apropria, percepção que vem sendo evitada, numa nada recomendável tendência acadêmica de preocupar-se mais com o autor do que com a obra, esquecendo-se que esta daquele se liberta, o que tem provocado cataratas de bobagens por aí (recentemente escrevi um artigo sobre isso para a “Revista Texto Território” (link).
Embora seja um romance, a autora não fantasia a realidade, mas a recria na visão da vida cotidiana das suas personagens, deixando claro, o que é absolutamente saudável, que o que movia a quase totalidade dos Inconfidentes eram os interesses contrariados pela Coroa, a velha e boa pecúnia, que não fede, mas que, além de fazerem parte da elite daquela comunidade, eram também lideranças intelectuais, e são esses dois fatores que sempre moveram todas as revoluções. Todas. Só um incurável e ingênuo romântico para crer que pode ser de outra maneira, o povo por si só derrubando os tiranos.
O livro destaca que eles nada tinham de heróis da pátria, ao contrário, eram exploradores da mão-de-obra escrava, como tantos de então, e os padres que ali estavam mantinham a tradição do contrabando do ouro , o pastoreio, além das almas, do ouro reluzente, pois, por estarem livres das revistas nos postos de controle, podiam levar grandes quantidades de ouro dos armazéns do Colégio dos Jesuítas, isentas de tributos e de direitos alfandegários, como menciona Kenneth Maxwell em “A Devassa da Devassa – A Inconfidência Mineira: Brasil e Portugal, 1750 – 1808”. E assim Sônia também sublinha, neste livro de grande cuidado na pesquisa dos fatos históricos, expondo sem a frieza dos historiadores, mas a riqueza de boa ficcionista que é, quando na boca do Cônego Luiz Vieira grava este comentário: “- No caso de Rolin, até que o governador teve suas razões (...) Rolim é o maior contrabandista de pedras destas bandas” (pg 48).
Também me parece saltar do livro a imagem real de Tiradentes, nem o ingênuo que mal sabia o que fazia, afinal, o Alferes era um “engenheiro que concebeu um sistema para a melhoria do abastecimento de água para a cidade do Rio de Janeiro”, mais tarde “posto em prática quando a Corte portuguesa se transferiu para o Brasil” (pg 65) , esse ingênuo herói quase rousseauniano jamais existiu, embora, creio, talvez fosse um dos poucos idealistas por ali; tampouco foi o símbolo pintado pela República, na busca de um herói que justificasse a quartelada, que paulatinamente os pintores acadêmicos da nossa primeira ditadura transformaram num Jesus Cristo tropical.
Como disse acima, havia, sim, um caldo de cultura para um movimento de libertação, a admiração pela independência americana, sua Constituição, que, destaque-se, Tiradentes conhecia, mesmo não sendo um jurista da estirpe de Tomás Antônio Gonzaga. Este, aliás, escreveu um belo “Tratado de Direito Natural”, além de, na modesta opinião deste poeta, o melhor dentre os muitos bons poetas que ali estavam.
Não só pelos belos versos que escreveu para a ninfeta Marília, que espreitava pelas persianas, enquanto ela, recém-desperta, passeava pelo seu quintal (“Quando apareces / Na madrugada, / Mal embrulhada / Na larga roupa, / E desgrenhada / Sem fita, ou flor; / Ah! que então brilha / A natureza! / Estão se mostra / Tua beleza / Inda maior”). O livro que escreveu anonimamente, e, como tantos livros “anônimos”, mais assinado do que jamais fora, para esculhambar o governador Cunha Menezes, por ele deliciosamente apelidado “Fanfarrão Minésio”, é, embora alguns sonetos para Marília também o sejam, bela altitude poética. Encoberto pelo seu “anonimato”, libertou-se ele também das amarras da estética reinante, tendo sido quase uma ruptura com os cânones poéticos de então.
Falando nos poetas, Sônia faz deles um interessante e verdadeiro retrato: só escreviam versos exaltando suas musas para lerem nos saraus, onde elas presenciavam apenas como ouvintes, mudas e supostamente enlevadas, mas eram traídas nas alcovas, nas senzalas e abandonadas meses a fio sem notícias de seus vates, como o bem descrito abandono de Bárbara por Alvarenga Peixoto, enquanto ela passava por dificuldades com o marido irresponsável e ausente, que a fazia sofrer sem recursos e notícias: “poemas, porém, chegavam regularmente. Num deles dirigido a “Bárbara Bela, do Norte Estrela”, (...) A pobre senhora, com credores diariamente à sua porta, (...) chegava a desejar que se tivesse casado com algum rude e honesto fazendeiro” (pg 39).
Atravessa as páginas do romance a opressão que sofriam as mulheres, entretanto, num relato sem maniqueísmos, sem manifestos, tudo com muita sutileza, com recomendam a boa técnica literária e a inteligência. E vejam que se trata de um romance histórico, tão propício a bandeiras desfraldadas, gênero a que alguns estupidamente torcem o nariz, esquecendo-se de um romancista menor, que fez como pano de fundo de seu vasto romance a História da França, um tal de Proust.
E Sônia cumpre bem o traçado a que se propôs. Sua pesquisa, repito, é, como não poderia deixar de ser, ou falsearia o que falseado não pode ser, num romance que se pretenda histórico, desceu aos detalhes que bem o demonstram o conhecimento sobre o que pretendeu escrever.
Grande era o intercâmbio entre estudantes brasileiros e europeus, fazendo ecoar por aqui a ideia libertária daquela época. Sônia cita o ilustrativo exemplo de “Domingos Vida Barbosa Laje, que estudara medicina na França, portador da notícia de que comerciantes franceses estavam dispostos a enviar reforços caso a rebelião se concretizasse (...) morreu no degredo” (pg 55).
Mas este não foi um caso isolado, me fascina também uma apagada personagem nos livros de História, mas que simboliza bem a sofisticação e o envolvimento, embora tanta vez meio ingênuo, daquele grupo de revoltosos com as notícias da Independência Americana e os ecos tardios da Revolução Francesa. Um desses estudantes foi José Joaquim da Maia, natural do Rio de Janeiro, que cursava a Universidade de Montpellier. Esse rapaz ousou mesmo dirigir-se a Thomas Jefferson, então Ministro dos Estados Unidos junto ao governo francês, e obteve dele uma entrevista que se realizou em Nimes.
Nesses contatos com o ministro americano, Maia tentou conseguir, sem êxito porém, o apoio dos Estados Unidos para a independência do Brasil. Como se pode notar por esses dois exemplos, o movimento era à vera. Sem entrar no mérito da participação de cada inconfidente, o que Sônia faz com cuidadas descrições que não cabem nos estritos limites de uma resenha, o que nos interessa aqui é a sua contextualização nos acontecimentos mundiais movidos pelo Iluminismo, o que a autora deixa claríssimo, com riquezas de detalhes, mas com o sabor da vida privada que se encontra com mais facilidade nos bons romances do que nos livros de História.
Mas já me alongo demasiado, leiam o livro, o que será bem mais enriquecedor, pois, além dos fatos históricos relevantes para conhecer um lado falseado da nossa História, oculto sobre as tintas das banais patriotadas, é também um relato bastante saboroso da vida privada de então.
E caso o leitor seja um estudante, ou pai de um, que esteja se aproximando de nossa esquecida e vilipendiada História, eis uma boa oportunidade. “Inconfidências Mineiras” consegue o raro prodígio de ser didático sem ser enfadonho.
Enfim, uma bela leitura.